15 Setembro 2023
Alguns trechos da entrevista do Padre Antonio Spadaro com o cardeal designado Victor Manuel Fernandes, escolhido pelo Papa Francisco como novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé. A conversa está publicada hoje na revista La Civiltà Cattolica.
A entrevista é de Antonio Spadaro, publicada por La Stampa, 14-09-2023.
Excelência, qual a relação entre a fé e a razão?
A Igreja rejeita o fideísmo, defende o valor da razão e a necessidade do diálogo entre a fé e a razão, que não estão em contradição. Mas cuidado, porque às vezes se coloca no centro da Igreja "uma" específica razão, uma série de princípios que regem tudo, mesmo que em última análise se trate de uma forma mentis, mais filosófica do que teológica, à qual todo o resto deve se submeter, e que no final toma o lugar da Revelação. Portanto, aqueles que determinam a interpretação correta da Revelação e da verdade seriam aqueles que possuem essa forma mentis, essa maneira de pensar, essa única estrutura possível de princípios racionais. Só eles seriam "sérios", "inteligentes", "fiéis". Isso explica o poder que alguns eclesiásticos arrogam para si, chegando a estabelecer o que o Papa pode ou não dizer, e apresentando-se como depositários da legitimidade e da unidade da fé. Em última análise, a forma mentis da qual eles se consideram guardiões absolutos é uma fonte de poder que se quer proteger contra tudo. Não é a razão, é o poder.
A relação entre a teologia e a vida do povo de Deus aplica-se especialmente à teologia moral. Como entende essa relação?
A teologia moral não pode ignorar como enfrentam a vida as pessoas mais pobres, excluídas dos benefícios da sociedade, que encaram todos os dias a luta pela sobrevivência.
Nessa linha se coloca uma nova consideração sobre o peso dos condicionamentos no discernimento. A esse respeito, Francisco propôs um passo muito importante para a teologia moral.
Fez isso acolhendo as orientações dos bispos da Região de Buenos Aires a respeito da aplicação da Amoris laetitia. Eles falam sobre a possibilidade de que os divorciados em nova união vivam em continência, mas acrescentam que "em outras circunstâncias mais complexas, e quando não tenha sido possível obter uma declaração de nulidade, a opção citada pode de fato não ser viável".
Afirmam então que "apesar disso, um caminho de discernimento é igualmente possível. Quando se chega a reconhecer que, num caso concreto, existem limites que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade, especialmente quando uma pessoa considera que cairia em outra falta prejudicando os filhos da nova união, a Amoris laetitia abre a possibilidade de acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia". Francisco enviou-lhes imediatamente uma carta formal, confirmando que o sentido do capítulo VIII da Amoris laetitia é esse. Mas acrescentou: "Não há outras interpretações". Não é necessário esperar respostas diferentes do Papa. Tanto as orientações quanto a carta do Pontífice foram publicadas nas Acta Apostolicae Sedis, juntamente com um rescrito que os declara "autêntico magistério". Consequentemente, não há mais dúvidas, e é claro que o discernimento que leve em conta os condicionamentos ou os fatores atenuantes pode ter consequências também na disciplina sacramental.
O senhor tem um interesse específico na renovação da moral?
“O que me motiva é a preocupação em ressaltar a primazia da caridade na teologia moral. Isso se coloca em relação com a caridade não só entendida como forma ou motivação do discernimento moral, mas também como seu conteúdo próprio, com real impacto quando as decisões precisam ser tomadas em nível pessoal ou pastoral”.
Em suma, uma moral reduzida ao cumprimento dos mandamentos não responderia a essa dinâmica?
Absolutamente não.
Vamos ao trabalho que o aguarda.
O Papa pediu para "colocar em diálogo o conhecimento teológico com a vida do santo povo de Deus".
Ao apresentar-me, juntamente com meus títulos acadêmicos, Francisco lembrou que eu fui pároco de Santa Teresita. Já é evidente que para o Papa é bastante importante que o conhecimento teológico não se dobre apenas de cima para "iluminar" o povo de Deus, mas que se deixe estimular, que se deixe ferir e desarmar por ele.
Como acolher “as questões postas pelo desenvolvimento da sociedade”?
Se quisermos prestar ampla escuta aos problemas postos pela sociedade, juntamente com a tentativa de mostrar as razões e a harmonia do nosso pensamento cristão devemos nos propor uma ascese: tolerar com caridade a recorrente agressividade que nos atinge. O questionamento da sociedade não poderia ser uma mediação que o próprio Deus usa para nos desarmar, para nos abrir a outras coisas? Nós não podemos nos esconder num limbo e ignorar que a violência verbal de alguns grupos é uma válvula de escape compreensível, depois de muitos séculos de violência verbal de nossa parte, de uma linguagem injuriosa, muito ofensiva, ou de uma manipulação das mulheres como se fossem de segunda classe, muito desdenhosa.
Francisco é um modelo dessa "paciência" que brota do seu coração de pai. É de se esperar que com o tempo será capaz de encontrar um equilíbrio melhor.
A reforma da Igreja. O que pensa a respeito?
A Igreja fiel à sua própria natureza é uma Igreja em diálogo com o mundo e descentralizada em um êxtase evangelizador. Essa saída de si não é o resultado de um puro esforço da vontade humana, mas é um dinamismo sobrenatural causado pelo Espírito Santo nas pessoas e em toda a Igreja. Essa abertura ao dinamismo autotranscendente do Espírito deve ser ao mesmo tempo um retorno à objetividade do Evangelho, que simplifica, reconduz ao essencial e torna possível a purificação e a reforma das estruturas obsoletas.
A preservação da doutrina da fé tem sido associada a um mecanismo de “controle”. Mas o Papa parece visar o crescimento harmonioso de sua compreensão. Isso significa que a função de refutar erros está destinada a desaparecer?
É claro que em nenhum momento o Papa afirma que a função de refutar os erros deva desaparecer. Evidentemente, se alguém disser que Jesus não é verdadeiro homem ou que todos os imigrantes deveriam ser mortos, será necessária uma intervenção firme. Mas, ao mesmo tempo, isso oferecerá a oportunidade de crescer, de enriquecer a nossa compreensão. Por exemplo, nesses casos a pessoa em questão terá que ser acompanhada na sua legítima intenção de melhor mostrar a divindade de Jesus Cristo, ou será preciso conversar sobre algumas leis de imigração imperfeitas ou problemáticas. Um critério fundamental a preservar é que "qualquer concepção teológica que em última instância coloque em dúvida a onipotência de Deus e, em particular, a sua misericórdia" deve ser considerada inadequada.
A afirmação de que se trata de um "critério fundamental" é muito forte. Além disso, trata-se de um texto (da Comissão Teológica Internacional, ndr) relativo à salvação das crianças que morreram sem o batismo, para mostrar que a onipotência e a misericórdia de Deus, capazes de conceder aquela salvação gratuita, não devem ser negadas nem obscurecidas por nenhum raciocínio teológico. Se isso for aplicado de forma geral, nos obriga a repensar muitas outras coisas.
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Fiéis à caridade. Entrevista com D. Victor Manuel Fernándes, novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU