26 Julho 2023
Jacques Maritain é um dos pensadores do humanismo de inspiração cristã que nasceu nos anos 1930. Sua contribuição foi decisiva na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A reportagem é de Javier Pardo Torregrosa, publicada por Ethic, 25-07-2023. A tradução é do Cepat.
As sociedades contemporâneas enfrentam inúmeros problemas políticos e sociais: novas formas de individualismo que destroem os laços comunitários, profundas desigualdades sociais, o ressurgimento do nacionalismo, o cancelamento do diferente, considerado inimigo político, e a ascensão da polarização que, como dizia o professor Joseph Weiler, em artigo publicado recentemente no ABC, quebra a unidade do demos, pressuposto ontológico para o funcionamento de qualquer democracia liberal.
Muitos desses problemas têm suas raízes no devir da própria história e não são mais do que o ressurgimento de antigos e já conhecidos fantasmas. Por isso, às vezes, é necessário olhar para trás e recuperar algumas das contribuições de nossa tradição cultural e intelectual.
Nesse sentido, penso que pode ser interessante resgatar e desempoeirar do baú da história o humanismo de inspiração cristã, que emergiu fortemente nos conturbados anos 1930 e conseguiu responder com notável sucesso a muitos dos graves problemas que reviraram as sociedades europeias da época.
Um de seus principais promotores e apoiadores foi o filósofo francês Jacques Maritain, de quem recordamos, neste ano de 2023, o 50º aniversário de sua morte. Sua contribuição foi decisiva na Declaração Universal dos Direitos Humanos e inspirou a criação de movimentos políticos democratas-cristãos que foram fundamentais na consolidação das democracias liberais, em inícios da construção europeia e no desenvolvimento da justiça social.
Maritain, que vinha de uma família protestante liberal, realizou uma jornada intelectual e espiritual junto com sua esposa Raissa. Ambos, que professaram simpatia pelo marxismo no início de sua juventude, experimentaram certa insatisfação vital e intelectual com o pensamento positivista, cientificista e relativista predominante na Sorbonne, onde estudavam filosofia e ciências naturais, o que os levou a pensar até mesmo em suicídio, caso não encontrassem um autêntico sentido para a existência.
A filosofia de Bergson sobre a intuição como forma de conhecimento lhes abriu as portas para a metafísica, e a amizade com Charles Péguy e Léon Bloy os levou a conhecer – e finalmente abraçar – a fé católica. Nos anos seguintes, o casal Maritain descobriria, através de outra amizade, com um frade dominicano, a filosofia de Tomás de Aquino.
O encontro com a filosofia tomista lhes permitiu reconciliar a fé com a vocação filosófica. Como Raissa Maritain reflete em um belo ensaio intitulado Les grands amitiés, as amizades deram plenitude à sua vida e desempenharam um papel central no amadurecimento de seu pensamento filosófico e em seu encontro com a fé católica.
O ideal humanista de Maritain, desenvolvido inicialmente em Humanisme intégral, surge do encontro entre a filosofia tomista e uma experiência pessoal de fé cristã. Busca superar o materialismo e o individualismo da modernidade, mas também enfrentar qualquer tipo de totalitarismo. Defende um novo humanismo aberto à transcendência e ao próximo, que permita aos cristãos trabalhar para que o fermento evangélico penetre em todas as estruturas da vida social, política e econômica.
O filósofo francês que, em vários ensaios, destacou-se por defender a democracia como um ideal proveniente do impulso evangélico, compreendeu que a democracia não deveria ser concebida apenas como uma forma de governo, mas deveria incluir uma série de princípios que atribuía ao legado da cultura cristã, como a igual dignidade de todas as pessoas e a defesa dos direitos humanos, a unidade da família humana, a liberdade religiosa e de consciência, a justiça social, a dignidade do pobre e marginalizado e a fraternidade.
Rejeitou a dialética schmittiana sobre a existência de inimigos políticos e lutou contra qualquer tipo de totalitarismo e autoritarismo. Criticou duramente o uso do catolicismo pelo lado nacional na Guerra Civil Espanhola e seu compromisso com a democracia o levou ao exílio, durante a ocupação alemã da França.
Seu humanismo de inspiração cristã não o impediu de reconhecer a autonomia da ordem política em relação à ordem espiritual, uma ideia um tanto ousada ainda em círculos católicos e que, finalmente, acabaria sendo adotada pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II. Para Maritain, a comunidade política deveria ser profana e pluralista, fundada na cooperação prática e na colaboração entre as diferentes famílias religiosas, filosóficas e ideológicas.
De fato, sua atuação como delegado da França junto à UNESCO foi essencial para o sucesso das negociações prévias à Declaração Universal dos Direitos Humanos, com sua proposta de um acordo prático sobre o conteúdo dos direitos, sem a necessidade de pactuar a fundamentação teórica, filosófica e religiosa. Este apelo à colaboração prática entre diferentes pessoas é uma proposta muito sugestiva para as nossas sociedades contemporâneas.
Em outra obra, La personne et le bien commun, Maritain criticou o individualismo imperante na época e defendeu a ideia da pessoa como um mistério metafísico que, desde uma profunda liberdade, requer a comunicação com o próximo e a vida em comunidade. Também recuperou do tomismo a noção de bem comum, um bem que vai além da mera soma de bens pessoais e que compreende algo mais profundo: a consciência cívica das virtudes políticas como o florescimento pessoal e das pequenas comunidades, a justiça e a amizade cívica e fraterna.
Hoje, o conceito de bem comum caiu em desuso e foi substituído pela ideia de “interesse geral”, um vago conceito individualista e utilitarista que parece se referir somente ao interesse da maioria. O personalismo comunitário de Maritain pode nos ajudar a alcançar esse equilíbrio necessário entre a liberdade da pessoa e a busca do bem comum, além de recuperar a importância dos laços comunitários tecidos cotidianamente na multidão de pequenas comunidades que formam o conjunto da sociedade política.
Finalmente, em sua obra madura, L'Homme et l'État, Maritain sintetizou o trabalho de reflexão realizado por mais de duas décadas e teorizou sobre temas como o Estado e a comunidade política, o conceito de soberania, a relação entre meios e fins, os direitos humanos, as relações entre Igreja e Estado e o problema da sociedade política internacional.
O conceito de amizade cívica e fraterna esteve presente ao longo de sua trajetória vital e se fez a pedra angular do seu pensamento humanista, uma proposta que, com certeza, vale a pena recuperar para o mundo de hoje.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Assim Jacques Maritain via o humanismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU