20 Julho 2023
Manuel Castells (Hellín, 1942) é o sociólogo espanhol de maior reconhecimento e prestígio. Foi ministro das Universidades no governo de coalizão do PSOE e Unidas Podemos. Renunciou em dezembro de 2021, deixando como legado político um histórico aumento do investimento em bolsas universitárias, no pior momento da pandemia de Covid-19. Recentemente, publicou o livro Testimonio (Alianza Editorial).
A entrevista é de Alejandro Torrús, publicada por Público, 13-07-2023. A tradução é do Cepat.
Uma onda de extrema direita atravessa as democracias ocidentais. O que a caracteriza?
Está amplamente normalizada em quase todas as democracias, incluindo países muito democráticos como a Finlândia e a Suécia. E, claro, na Espanha, onde o Vox está sendo determinante. É um questionamento aos valores de tolerância e democracia por parte de uma parcela crescente do eleitorado.
De onde surge e do que se alimenta? O medo é um fator que permite a sua expansão?
O medo da incerteza, materializado no medo do “outro”, que desperta o ódio, é um fator crucial. Mas, também há uma reação do homem-macho (com inúmeros exemplos entre nós), que se sente ameaçado em seu núcleo básico pelo feminismo e a cultura LGTBI.
De onde vem o medo? Quem o fomenta e por quê?
O medo nasce da incerteza resultante de uma globalização descontrolada, de uma mudança tecnológica que não se compreende, de uma crise de legitimidade das instituições políticas e partidos tradicionais, da crise do patriarcado e de uma imigração que é necessária, ainda que rejeitada, e que já se transformou em minorias étnicas utilizadas como o bode expiatório para todos os outros medos. E é fomentado por políticos de direita e pela imprensa ideologizada que, há muito tempo, abandonou o jornalismo. Obviamente, não falo do Público.
Os sistemas democráticos ocidentais e suas minorias estão em risco?
As minorias estão sendo cada vez mais marginalizadas e estigmatizadas, como demonstra o insustentável racismo na França, apesar de já representarem mais de 20% da população. No momento, as instituições democráticas não estão em perigo, mas os valores democráticos que as sustentam, sim. É uma questão de tempo que as próprias instituições sejam ridicularizadas.
O que podemos fazer para deter esse turbilhão que ameaça nosso sistema de liberdades?
Lutar, como sempre fizemos. Lutar social, política e culturalmente. Contudo, compreendendo o medo e não respondendo ao ódio com ódio. É preciso deter a espiral.
Temos a guerra às portas da Europa. Como você viu a invasão da Rússia?
É uma agressão injustificada que responde à ideologia neoimperial de Putin como forma de legitimar seu poder. E, portanto, é preciso defender a Ucrânia. No entanto, a invasão nasce da humilhação sofrida pelos russos, após a desintegração da União Soviética e que é utilizada por Putin para o seu poder pessoal. De certo modo, pode ser comparada à humilhação da Alemanha de Weimar e já sabemos como isso acaba. Mas, na versão nuclear.
Enxerga um possível fim?
As guerras só terminam com a derrota total de um rival ou por meio da negociação. Algumas ficam congeladas, como a da Coreia, que ainda permanece em guerra legalmente. A derrota total de uma potência nuclear é impensável porque seriam utilizadas armas nucleares táticas e, a partir daí, pode escalar para uma tragédia global.
Portanto, o que se negociaria é quantos milhares de mortos são necessários por quilômetro cedido. Mas, tudo pode mudar se Putin morrer ou acontecer um golpe de Estado. Estivemos perto e ainda pode acontecer. Devemos estar conscientes de que um golpe de Estado seria a favor de forças ultranacionalistas que intensificariam a guerra.
Apesar do conflito russo, muitos olhos estão voltados para a China e Taiwan, para o que pode acontecer. Considera que existe risco de um conflito de escala maior que envolva a China?
Não. A guerra não é conveniente para a China porque o tempo está a seu favor. Já é a principal potência econômica e está avançando rapidamente em tecnologias decisivas como conectividade e a computação quântica. O problema é que os Estados Unidos temem perder sua hegemonia mundial, justamente para a China, e algumas provocações como as visitas oficiais a Taiwan podem acabar mal.
Contudo, o governo Biden está recuando rapidamente e reparando as relações com a China porque disso depende a prosperidade econômica mundial. Taiwan é um assunto ideológico nacionalista, com profundas relações econômicas e culturais com a China. E a China conta o tempo com uma perspectiva histórica. Taiwan será chinesa, mas não merece um conflito aberto com os Estados Unidos por acelerar um processo que os chineses veem como inevitável.
A União Europeia tem futuro? Recentemente, você dizia que “hoje a OTAN é muito mais importante para a integração europeia do que a União Europeia”.
A União Europeia é uma necessidade absoluta para a prosperidade e a autonomia dos europeus, em um mundo em que representamos apenas 16% da população mundial. Contudo, a guerra na Ucrânia e o medo renovado da Rússia, sobretudo nos países do Leste, colocaram em primeiro plano a pertença à OTAN (e, portanto, a dependência estratégica dos Estados Unidos) e isso pode colocar em risco os valores humanistas europeus, que são a base cultural da União Europeia. O perigo não vem dos Estados Unidos, que é uma cultura democrática, mas da militarização da Europa, com países como Polônia, Hungria e os bálticos, que agora só pensam em termos de segurança.
A Europa pode organizar o seu futuro longe da OTAN ou é uma dependência difícil de resolver?
É impensável alcançar a autonomia militar, com exceção de um enorme esforço em investimento militar que desequilibraria a economia europeia. Portanto, militarmente, dependemos da OTAN. No entanto, podemos ir atenuando a prioridade estratégica através da cooperação internacional amistosa, em particular com a China e as empresas chinesas e com a América Latina, para quem podemos ser uma ponte com a Europa.
Observe que falamos de medo, guerra e crise climática. Onde está a esperança neste mundo do século XXI?
Nos jovens, principalmente nas mulheres jovens, as mais interessadas em mudar o modelo de vida. Feminismo, ambientalismo e paz estão intrinsecamente ligados.
Você mantém a esperança em um futuro de paz?
Sem paz, não há esperança e sem esperança, não haverá paz. A neurociência sabe que o antídoto emocional para o medo é a esperança. O problema é como geramos a esperança em meio a este mundo atroz. É preciso voltar a construir projetos que situem os valores éticos em nosso horizonte pessoal e coletivo.
Para você, que já participou de tantas lutas ao longo de sua vida, o que lhe dá esperança para continuar trabalhando e se envolvendo em projetos? Qual você diria que é a sua luta?
A luta pela liberdade. Eu sempre fui anarquista, embora com pragmatismo social-democrata. Contudo, a liberdade não pode ser defendida apenas a partir de si mesmo. Tem que ser com os outros. Ou seja, um comunismo libertário, a grande tradição revolucionária de nosso país. E começa por amar os outros e contar com elas e eles. Ser amado dá muita energia.
Como vê a situação na Espanha?
Depende de qual Espanha estamos falando. Há uma Espanha tradicional, conservadora, centralista, excludente e potencialmente neofranquista que controla os meios de comunicação e se alia a poderosos grupos econômicos. Há uma Espanha sensata, social-democrata, que busca se apoiar nos novos valores dos jovens que saíram dos movimentos sociais. E, hoje, o resultado desse conflito não está claro.
A única coisa certa é que a Espanha moderna e reformista só pode prevalecer se apoiando nos cidadãos que não necessariamente se veem como espanhóis da velha Espanha, porque somos, gostemos ou não, um país multicultural e plurinacional. Nisso se aposta tudo. E este tema é transversal, diferencia a esquerda em setores nacionalistas espanhóis e nacionalistas de outras nacionalidades. Aqueles que se consideram cidadãos do mundo, para além da identidade, só podem se dar a esse luxo em Londres ou Nova York.
Quando concordou em fazer parte do governo de coalizão, ficou surpreso com a Espanha que encontrou? Esperava esse ambiente hostil?
Eu conhecia a Espanha, porque nunca me desliguei, mas fiquei surpreso com a violência política, com um Congresso pouco civilizado e uma imprensa madrilenha que, em boa parte, era formada por panfletos hostis e sem princípios profissionais.
A direita conseguiu criar um rótulo, o “sanchismo”, que lhe serve como cabide para todas as suas críticas e projetos. Isso levou a intermináveis artigos e discussões. Você se sentou no Conselho de Ministros. É amigo de Sánchez. Sabe o que é o “sanchismo”?
Efetivamente, sou amigo de Pedro Sánchez desde antes de chegar ao governo. É um idealista pragmático. Um homem de princípios, muito enraizado em sua família e em seu país, militante socialista desde os 15 anos. Não tem nada a ver com a imagem satânica que os panfletos de direita construíram.
Contudo, perdemos a batalha ideológica. O ayunismo foi mais hábil, porque se envolveu precisamente com a bandeira da liberdade, identificando-a com o descumprimento das medidas que tivemos que impor para controlar a pandemia. E utilizou o nacionalismo espanhol, muito enraizado no povo, para apresentar Sánchez como um traidor da pátria, por motivos políticos, aos bascos e catalães.
Na realidade, um componente essencial do projeto de nosso governo foi construir um verdadeiro diálogo com a Catalunha, graças ao qual a tensão foi reduzida e, hoje, Salvador Illa é o político mais votado na Catalunha. Cometemos o erro político de acreditar que com boas políticas econômicas e sociais é possível obter o apoio do povo. É uma condição necessária, mas não suficiente.
A batalha mais profunda é a batalha cultural, ocorre nas mentes. Eu diria, invertendo a famosa frase “Não é a economia, estúpido”: são os valores. Os valores que importam para as pessoas são emoções, mais do que interesses. Se não fosse assim, os trabalhadores sempre votariam na esquerda. A maioria dos madrilenhos vota em Ayuso, apesar de claramente favorecer os ricos.
Está orgulhoso do trabalho do governo de coalizão?
Absolutamente, sim, pauta a pauta, com um imenso trabalho prático realizado sem se prender a ideologia, com alguma exceção.
Gostaria de explicar as exceções?
Não.
Como viveu o momento de reconfiguração das esquerdas em Sumar? Ficou surpreso?
Não, pois conheço Yolanda Díaz e, há tempo, nós dois pensamos que a esquerda à esquerda do PSOE só poderia sobreviver com um projeto desse tipo. Seja qual for o resultado, temos que agradecer a Yolanda Díaz por sua visão, sua coragem e seu sacrifício pessoal, sem os quais já estaríamos na lata de lixo da história.
Vê como possível a reedição de um governo de coalizão progressista?
Se Sumar e o PSOE se unirem, e os nacionalistas bascos, catalães e galegos os apoiarem, é o mais provável, mas seria diferente. Haveria mais autonomia e mais respeito, ao mesmo tempo, entre as partes. Para chegar a isso, os cidadãos precisam lembrar como estavam, há quatro anos, e estar conscientes de que poderão estar muito pior nos próximos quatro, caso a extrema direita chegue ao governo.
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"Sem paz, não há esperança e sem esperança, não haverá paz. A neurociência sabe que o antídoto emocional para o medo é a esperança”. Entrevista com Manuel Castells - Instituto Humanitas Unisinos - IHU