Com o aval de Deus, ela exigiu direitos para Ismael e seus descendentes.
"A promessa de Deus a Abraão, de que ele teria muitos filhos, não tinha se cumprido. Ele, num grito de desespero, diz: “Meu Senhor, que me darás? Continuo sem filho...” (Gn 15,2). Inquieto, porque sabia que a posse da terra Canaã tem relação com a descendência, Abraão implora a Deus por um filho. Surge, então, a possibilidade de sua serva, a egípcia Agar, dar-lhe um filho", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze.
"Agar: o grito da escrava rebelde e visionária!" (Gn 16,1-15).
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é tirado do livro do Gênesis 16,1-15. Trata-se da história de Agar, a escrava de Sara, que gerou um filho com o Patriarca Abraão. Seu nome é Ismael. Durante a gravidez, Sara expulsa Agar para o deserto. Essa trama é muito envolvente e tem um objetivo. Qual seria? Qual foi a função de Agar na história da salvação?
Nunca me esqueci de um título de artigo, escrito há décadas, quando eu ainda estava na graduação em Teologia, pela biblista mexicana, Elza Tamez: “Agar, a mulher que complicou a história da Salvação”. E é isso mesmo! Por isso, ela tem relação direta com as genealogias, as descendências, que aparecem no livro das origens do povo de Deus, chamado Gênesis. As genealogias exercem, sem sombra de dúvida, um papel importante na historiografia de formação do povo da Aliança, Israel. Elas formam, no livro do Gênesis, uma rede de fios que associam as descendências às pessoas dos patriarcas e matriarcas, sobretudo, Abraão. Esse personagem torna-se o ponto de partida para unificar, de forma inclusiva, parentes e povos, próximos e distantes, em várias ramificações genealógicas.
Não em menor escala, as genealogias serviram para unir o povo de Abraão ao mundo criado por Deus e à humanidade, narrativa de Gn 1—11. Como isso acontece? Como são resolvidos os problemas dos filhos que não eram herdeiros da promessa, como Ismael? Que relação existe entre a genealogia e terra?
A promessa de Deus a Abraão, de que ele teria muitos filhos, não tinha se cumprido. Ele, num grito de desespero, diz: “Meu Senhor, que me darás? Continuo sem filho...” (Gn 15,2). Inquieto, porque sabia que a posse da terra Canaã tem relação com a descendência, Abraão implora a Deus por um filho. Surge, então, a possibilidade de sua serva, a egípcia Agar, dar-lhe um filho. Em comum acordo com Sara, Agar gera um filho para o casal (Gn 16,1-4) Intrigas entre a patroa e serva fizeram com que Agar, ainda grávida, fugisse para o deserto. Por ter a herança em sua barriga, Agar desdenha os seus senhores.
O anjo do Senhor lhe aparece e lhe pede que retorne para a casa de Abraão, que, por sua vez e por ordem divina, a acolhe. Finda a gravidez, Abraão põe o nome de Ismael ao filho de Agar (Gn 16,7-15). Voltar para a casa de Abraão garantiria a Agar e Ismael a presença na terra de Canaã, onde Abraão já estava há dez anos (Gn 16,3). Sem a terra, de nada vale um filho, ainda que descendente de Abraão. Da mesma forma, se o nome do filho não fosse dado por Abraão a descendência de Agar não seria válida.
Agar trazia no seio materno a herança, o filho, diferentemente de Sara, a esposa legítima do patriarca. Milton Schwantes afirma que “sem o apossamento do filho e o reapossamento da escrava-mãe, a posse da terra teria que ser distinta da que era. É que a exclusão da mulher passava pela apropriação patrilinear da terra.” Agar teria que voltar para a casa de Abraão.
A continuidade da história de Agar encontra-se no capítulo vinte e um de Gênesis. Quando Sara, enfim, consegue, por decisão divina, ter um filho com Abraão, ela decide exigir a expulsão de Agar para o deserto. Não estando de acordo, Deus aparece a Abraão e lhe pede para aceitar a proposta da esposa. Deus garante a Abraão que faria também de Ismael uma grande nação, pois ele era de sua estirpe, de sua raça (Gn 21,11-14).
Agar segue o caminho do deserto. Desanimada, por ver a morte chegar para o filho, ela o sentou debaixo de um arbusto e, longe dele, começou a gritar e a chorar. Deus ouviu o choro de Ismael, de onde decorre o significado do seu nome: “Deus ouve”. O encontro com Deus ocorre num estado de desespero de uma mãe sem ação. Deus age sem pedir nada em troca, mas em favor do filho deserdado, que padece no deserto, próximo a Bersabeia. Deus ouve, assim como ouvira o clamor de seu povo que estava escravo no Egito (Ex 3,7).
O anjo de Deus disse à mãe: “Que tens, Agar? Não temas, pois Deus ouviu os gritos da criança, do lugar onde ele está. Ergue-te! levanta a criança, segura-a firmemente, porque eu farei dela uma grande nação” (Gn 21,17-18). Deus ouve o grito da criança. Agar não teve dúvida da promessa, abriu os olhos e viu um poço. Deu de beber ao menino e seguiu o seu caminho. Ismael cresceu no deserto de Farã, tornou-se flecheiro e casou-se com uma mulher egípcia (Gn 21,19-21).
Filho de mãe egípcia e esposo de mulher egípcia, a historiografia de Ismael recorda ao povo de Israel a opressão vivida no Egito, ainda que o escravo nessas narrativas não seja o povo da Aliança, mas os egípcios, representados na figura de Agar. Assim como o povo se libertou do Egito e tornou-se forte, Ismael, conforme promessa de Deus feita à sua mãe (Gn 16,11), tornou-se um “potro de homem, sua mão contra todos, a mão de todos contra ele” (Gn 16,12). Os descendentes de Ismael são os árabes do deserto.
No âmago da historiografia de Agar, a mulher que complicou os rumos da genealogia abraâmica, garantindo, como visionária, o lugar de seus descendentes na história da Salvação, está a ação de Deus que ouve o grito dos indefesos que fazem uma experiência exodal, de libertação e proteção divina para sempre, assim como fez o Deus de Abraão com o seu filho Ismael. Para garantir genealogias em torno do patriarca, Deus muda o rumo da história sem romper os laços de pertença. E o que é mais provocador, Deus ouve grito de uma mulher estrangeira e apoia a sua rebeldia. Deus não aceita a opressão e a violência!
Lamentável ver, em nossos dias, a divulgação da imagem de um Deus violento para justificar a opressão e a violência em nome de uma fé que “conserva a dor” de mulheres-Agar e filhos-Ismael no deserto de nossas mediocridades que não nos permitem “libertar a dor”!