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06 Abril 2023

"Quando se interpreta erroneamente a mensagem bíblica no caso de Isaque, onde vemos que o pai é impedido por Deus de levantar a mão contra o filho, ainda mais existe o risco de ser mal interpretada quando é o próprio Deus que sacrifica o filho, como na fé cristã", escreve Gianfranco Di Segni, rabino do Colégio Rabínico Italiano, em artigo publicado por riflessimenorah.com, 21-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini

Eis o artigo.  

No Venerdì di Reppublica de 3 de março de 2023 (n. 1824), numa entrevista sobre Lucio Dalla, Vito Mancuso conta que foi chamado ao seu funeral para ler uma passagem do Gênesis na igreja: “Uma dupla agonia. Uma passagem da Bíblia que não suporto: Gênesis 22, o sacrifício de Isaque, uma das passagens mais terríveis. Um modelo de fé, o de Abraão, que não tolero”. E mais ainda: “Um Deus que te dá uma faca para imolar um filho. A fé como obediência sem critério, inclusive porque a ética é espezinhada".

Eu me pergunto: mas se essa leitura da passagem aqui apresentada fosse verdadeira, se fosse verdade que aquele de Abraão é um modelo de fé que não pode ser tolerado, como é possível que se reconheça em Abraão o pai das três religiões monoteístas, chamadas justamente de abraâmicas? Cerca de metade da humanidade é filha de um pai homicida e sem critérios?

Entendo que uma entrevista numa revista não é lugar para reflexões teológicas e bíblicas aprofundadas, mas os leitores leem as palavras relatadas pelo Venerdì e constroem uma ideia totalmente errada da passagem bíblica. Começando pelo conceito de "sacrifício de Isaque", expressão que não pertence à tradição judaica, onde se fala em "amarração de Isaque". Isaque foi amarrado no altar, mas não foi sacrificado. Onde está escrito: "Um Deus que te dá uma faca para imolar um filho"? Em nenhum lugar. É exatamente o contrário. Quando Abraão está prestes a levantar a mão contra seu filho, Deus o impede e lhe diz: “Não estendas a tua mão sobre o moço e não lhe faças nada”. Onde está escrito que Deus diz a Abraão para imolar seu filho? Em vez disso, está escrito “faça-o subir a montanha” (como explica o comentarista por excelência, Rashì), com uma expressão deliberadamente ambígua para apurar se Abraão havia entendido o real significado das palavras divinas. Toda a passagem é para ensinar a Abraão e a todos os seus descendentes que é proibido sacrificar seres humanos (como será repetidamente reafirmado a seguir na Torá, por exemplo em Deuteronômio 18,10), uma prática comum entre os povos pagãos da época. É essa cultura pagã e homicida que a Torá vem negar, exatamente o contrário da mensagem que coloca o Venerdì.

Abraão “sem critério”?! No entanto, o vimos discutir com Deus pela salvação dos habitantes de Sodoma e Gomorra e exclamar: "Não faria justiça o Juiz de toda a terra?" (Gênesis 18,25).

É possível que ele fique calado aqui e obedeça passivamente? Deus prometeu a ele que sua descendência continuará com Isaque: é possível que ele não se pergunte como isso será possível se ele sacrificar seu filho?

Abraão caminha por três dias e não pronuncia uma única palavra. Podemos imaginar que esteja se fazendo essas perguntas e esteja tentando se dar uma resposta (e de fato o Midrash preenche o silêncio com essas perguntas). Quando finalmente Isaque lhe pergunta: “Meu Pai, mas onde está o cordeiro?”, Abraão ele responde: “Meu filho, Deus proverá o cordeiro”. Como de fato aconteceu.

Abraão tinha confiança no fato de que o Juiz de toda a terra teria feito justiça. Ele aguardava com ansiedade que chegasse a ordem de Deus para parar a mão. A prova a que Abraão foi submetido era chegar a entender que não se sacrificam os filhos (ou qualquer outro), mesmo quando se acredita ter ouvido uma voz, dentro ou fora de si, que o ordena. A prova era entender que das duas ordens aparentemente contraditórias, a segunda - não fazer nada com o menino - era a ordem correta e definitiva.

Quando se interpreta erroneamente a mensagem bíblica no caso de Isaque, onde vemos que o pai é impedido por Deus de levantar a mão contra o filho, ainda mais existe o risco de ser mal interpretada quando é o próprio Deus que sacrifica o filho, como na fé cristã.

Rios de tinta foram usados por dezenas de comentaristas, teólogos, filósofos, judeus e não judeus, para explicar essa passagem do Gênesis, que teria merecido mais do que a leitura superficial que apareceu no Venerdì.

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