06 Abril 2023
"Eu acredito em Deus, espero acreditar até o último dos meus dias. Porém, estou convencido de que precisamos nos libertar de uma imagem divina à qual sempre devemos dizer “sim comandante" para erguer em seu lugar a bandeira da livre consciência, tão cara à mais autêntica espiritualidade judaica.".
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 27-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sempre considerei o antissemitismo uma das manifestações mais vulgares e perigosas da maldade humana e acredito que combatê-lo é dever fundamental de todo ser humano digno desse nome. Também por isso, desde que comecei a liderar grupos em Israel, o Yad Vashem é etapa obrigatória. Devo acrescentar que fui nutrido pelo pensamento e espiritualidade judaica desde que era garoto, começando pela Bíblia naturalmente e depois por autores cuja lista seria demasiado longa e que ainda hoje acompanham o meu caminho.
Por isso fiquei surpreso, mas seria melhor dizer entristecido, ao ver meu pensamento rotulado como "impregnado de preconceitos antissemitas". E o que está escrito no site riflessimenorah.com, uma revista online que se declara “representada junto à União das Comunidades Judaicas Italianas e junto à Comunidade Judaica de Roma”, num comentário editorial de um artigo crítico do rabi Gianfranco Di Segni sobre uma minha entrevista. Mas atenção: Di Segni critica meu pensamento da forma que vou analisar, mas está longe de me acusar de antissemitismo ou de antijudaísmo, como ao contrário faz o conselho editorial da revista que me atribui “preconceitos antissemitas”, “ignorância e preconceito”, “estereótipos e clichês antijudaicos”. O ponto que mais me incomoda é exatamente este: o uso impróprio do conceito de antissemitismo. É tão importante a luta contra esse monstro que deveríamos ser muito rigorosos com as palavras, porque, prestem atenção: se todos são antissemitas, no final ninguém o é, e quem se beneficia são os verdadeiros antissemitas. Além disso, não é admissível a confusão (ainda mais do lado judaico) entre antissemitismo e antijudaísmo praticada pela revista que me acusa ora de um ora do outro, porque o antijudaísmo diz respeito às ideias religiosas, o antissemitismo, o sangue das pessoas. É verdade que os dois conceitos estão ligados entre si e ao professar um é fácil passar para o outro, mas, precisamente por isso, sua distinção contribui a impedir a passagem indevida.
Vamos para a crítica do rabi Di Segni cujo casus belli é uma minha entrevista no Venerdì di Repubblica de 3 de março passado, sobre minha amizade com Lucio Dalla, na qual, entre outras coisas, eu recordava ter lido em seu funeral em São Petrônio em Bolonha a primeira leitura da missa, naquele dia dedicada ao sacrifício de Isaque sobre o qual desenvolvi uma consideração mais ampla que a jornalista resumiu da seguinte forma: “Me pediram para ler a primeira leitura e foi uma dupla agonia. Uma passagem da Bíblia que não suporto: Gênesis 22, o sacrifício de Isaque, uma das passagens mais terríveis. Um modelo de fé, aquela de Abrão, que eu não tolero. Um Deus que te dá uma faca para imolar um filho. A fé como obediência sem critério, inclusive porque a ética é espezinhada ".
A partir dessas palavras, que mal reconheço na forma, mas que subscrevo na substância, Di Segni me escreveu um e-mail de crítica que mais tarde foi publicado no referido site no qual ele me perguntava onde está escrito de Deus dá uma faca para Abraão e onde que a ordem divina seja sacrificar a criança, alegando que é verdadeiro exatamente o contrário: nenhuma faca, nenhuma ordem de holocausto, mas uma narratva exemplar para proibir os sacrifícios humanos. Di Segni está certo no primeiro ponto (nenhuma faca de parte de Deus, mas se trata de uma expressão que não é minha), mas não no segundo, porque Gênesis 22,2 reza assim: “Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto” (tradução da Bíblia hebraica pelo rabi Dario Disegni), algo que Abraão tinha entendido perfeitamente visto que no versículo 10 lemos: “E estendeu Abraão a sua mão, e tomou o cutelo para imolar o seu filho” (da mesma tradução citada).
Di Segni segue negando que Abraão possa ser acusado de falta de ética, visto que pouco antes havia discutido com Deus para salvar os habitantes de Sodoma. O que é verdade e cria uma contradição muito interessante para tratar a qual me reporto a Amos Oz. Escritor judeu entre os maiores, ele afirma recordando a negociação de Abraão com Deus por Sodoma, que o patriarca chega a pronunciar “talvez as palavras mais ousadas de toda a Bíblia, se não de todas as religiões que jamais vieram ao mundo: "Não agirá com justiça o Juiz de toda a terra?" (Gênesis 18,25)". Ou seja: “Você pode ser o juiz de toda a Terra, mas não está acima da lei. Você é quem legisla, mas você não está acima da lei. Você é o soberano de todo o mundo, mas não está acima da lei". E comenta: “Não ouvimos um discurso desse tipo no Cristianismo, nem no Islã, nem em nenhuma outra religião conhecida por mim. E é o nosso orgulho." Em seguida, passa para a cena de Abraão pronto para sacrificar seu filho Isaque, objeto da controvérsia entre mim e Di Segni, e se pergunta: “Como se pode chegar a um acordo com o abismo que separa o Abraão em luta com Deus pela vida de estranhos habitantes de Sodoma e o Abraão que não hesita nem por um instante quando Deus lhe ordena imolar o filho?". E neste ponto Amos Oz joga o ás apresentando a interpretação da amarração de Isaac por Shulamith Hareven, escritora judia há longo engajada na defesa do estado de Israel:
“Como todos os comentaristas, ela também acha que Abraão foi posto à prova. Mas ao contrário dos exegetas da tradição, Hareven é da opinião de que Abraão fracassa completamente. Que, em substância, ele deveria ter ‘recusado a ordem’, se oposto ao comando e replicado a Deus: ‘Você nos proibiu os sacrifícios humanos, portanto eu me recuso a imolar meu filho’. Deus coloca Abraão à prova e Abraão, o famoso ‘paladino da fé’, fracassa com o simples fato de dizer: ‘Sim, comandante’, enquanto ele deveria ter dito: ‘É uma ordem absolutamente ilegal, sobre a qual tremula uma bandeira negra’".
Repasso o trecho de Oz que recorda Hareven palavra por palavra. O ponto decisivo, portanto, é o modelo de fé e a relação fé-ética porque o sentido do inacreditável pedido divino era obter a mais absoluta submissão de Abraão, justamente querendo apurar se ele teria anteposto algo, fosse mesmo seu filho, à sua vontade. Isso é fé? Não, é escravidão. Uma escravidão da mente que, se pode levar a matar o próprio filho, o que dizer sobre as violências que pode gerar contra os outros. Se a religião derramou e derrama tanto sangue é por causa desse modelo escravocrata de fé. Di Segni também afirma que o episódio da "amarração de Isaque" foi escrito na realidade para condenar os sacrifícios humanos praticados pelas religiões pagãs. Na minha opinião a fato não resulta convincente por três razões.
Primeiro: o texto não contém o menor indício de condenação do sacrifício humano que estava prestes a acontecer.
Segundo: os sacrifícios humanos são condenados pela Bíblia especialmente como sacrifícios a outros deuses, prova disso é que eles estão incluídos no Levítico não entre os crimes contra a vida, mas entre as culpas de culto (cf. Levítico 20).
Terceiro: na Bíblia se registra um caso de sacrifício humano realizado sem que Deus o impeça, ou seja, a imolação da filha por Jefté. Ele era um líder militar que havia feito um voto: em caso de vitória ele ofereceria em holocausto a primeira pessoa que tivesse vindo ao seu encontro pela porta de casa. Porém, a primeira a vir ao seu encontro foi a sua única filha, feliz pela vitória. Por mais abalado que tivesse ficado, Jefté " cumpriu nela o seu voto que tinha feito" (Juízes 11,39). Deus, desta vez, não levantou um dedo para salvar a garota, nem a Bíblia apresenta uma única palavra de reprovação pelo sacrifício humano realizado.
Resumi o sentido do discurso. Eu acredito em Deus, espero acreditar até o último dos meus dias. Porém, estou convencido de que precisamos nos libertar de uma imagem divina à qual sempre devemos dizer “sim comandante" para erguer em seu lugar a bandeira da livre consciência, tão cara à mais autêntica espiritualidade judaica. Eu faço isso na minha religião a respeito de Jesus, que me recuso de pensar como "cordeiro de Deus" e como "vítima imolada da nossa redenção", como professa o cristianismo oficial, porque acredito que somente a prática do bem e da justiça pode nos salvar, não o sangue derramado. O profeta Miqueias ensina-o: “Homem, o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a benignidade, e andes humildemente com o teu Deus?” (6,8). No entanto, gostaria de dedicar as últimas palavras ao ponto que é mais importante para mim destacado no início: o uso atento e rigoroso do conceito de antissemitismo, a fim de evitar uma perigosa inflação.
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A submissão de Abraão é escravidão, não fé, mas não por isso eu sou um antissemita. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU