31 Janeiro 2020
"Dieci é, de fato, um exemplo esplêndido de leitura judaica da Bíblia, um midrash seria chamado em termos técnicos: e esse é o maior valor do livro, especialmente em um país de tradição católica em que se está acostumado a uma maneira completamente diferente de fazer exegese, de interpretar as escrituras", escreve Beatrice Iacopini, teóloga, filósofa e professora no ITCS Filippo Pacini - Pistoia, em artigo publicado por il manifesto, 27-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Reprodução da capa do livro Dieci
Não é um livro sobre os mandamentos, Dieci de Elena Loewenthal (Dez, em tradução livre, Einaudi, Turim, p.106, euro 12), ou pelo menos não é só isso. Antes de tudo, há outras palavras para ouvir antes daquelas ditadas a Moisés, por exemplo, as primeiras em absoluto: aquelas de Deus a Adão, o feito de terra e as dele, que diz "eu" pela primeira vez na história e, não surpreendentemente, somente após ter transgredido. O princípio da individuação nasce da liberdade de dizer não ao Criador. Sim, porque Loewenthal nos mostra, também o Senhor faz seu exórdio com "eu", dando início ao decálogo, mas não é o primeiro: Adão chegou primeiro, que se dá conta de si após o pecado.
É nesse jogo de referimentos entre passagens diferentes, nesse repicar de palavras-chave, que as prescrições gravadas nas tábuas de pedra ganham vida; Dieci é, de fato, um exemplo esplêndido de leitura judaica da Bíblia, um midrash seria chamado em termos técnicos: e esse é o maior valor do livro, especialmente em um país de tradição católica em que se está acostumado a uma maneira completamente diferente de fazer exegese, de interpretar as escrituras.
Um midrash não é uma análise filológica de uma passagem nem uma leitura de viés moralizante: não se preocupa em estudar a gênese de um texto, rastrear suas fontes ou separar as camadas que se sobrepuseram ao longo dos séculos, nem deseja adaptá-lo a uma doutrina predeterminada. Um midrash é mais um encontro - às vezes um confronto - profundo e apaixonado com a Escritura, quase um corpo a corpo com ela, sem restrições de golpes, já que a palavra está viva, é fogo e martelo que quebra a rocha, como o Senhor diz ao profeta Jeremias: o comentário recolhe os fragmentos e faíscas produzidos pelo verbo divino e, quanto melhor o comentarista, mais coloridos são os fogos de artifício que se obtém. Portanto, não esperemos de Dieci uma exegese ou uma lição de moral.
"Dieci" é um sondar as palavras, questionando-as e uma escavação nas emoções dos atores envolvidos: Moisés com sua baixa autoestima e o arroubo de raiva com que quebra as tábuas no chão em frente ao bezerro de ouro, correndo o risco de jogar pelo ar toda a história da aliança; o Deus passional a ponto de ameaçar punições aos pecados dos pais, até mesmo nos filhos dos filhos dos filhos, mas que não hesita em perdoar a traição e se dobra, Ele, o Senhor dos exércitos, a ditar uma segunda vez as suas leis a um Moisés impulsivo demais.
O livro de Loewenthal é uma investigação que se embrenha nas fissuras do texto, nos silêncios do não dito, que, aliás, são os espaços de liberdade para quem lê (ou ouve) e graças aos quais essas palavras antigas soam sempre novas. Nunca tínhamos percebido, por exemplo, que a primeira pergunta na história é Deus que a faz e, longe de ser inquisitiva, é mais uma busca tenra e pungente pela criatura predileta, subitamente oculta: onde você estava? Sabíamos que a confusão de gerações de questionadores, incapazes de descobrir Deus nos dramas da história, era primeiramente aquela do Criador diante da liberdade que ele mesmo havia decidido presentear ao homem? E também as dez palavras – assim as chama o hebraico e também o grego decálogo - parecerá ao leitor estar ouvindo-as pela primeira vez, especialmente aqueles que a tradição cristã nos transmitiu de uma maneira diferente de como soam no texto.
Até que o surpreendente último capítulo vem nos dizer que os mandamentos não são tudo, não apenas porque há outras coisas depois - o resto da Torá e para o cristão o Segundo Testamento - mas, no sentido, ressalta Loewenthal, que já saíram com faltas da boca de Deus. Em sua opinião, falta algo mais profundo sobre o mal que o homem pode fazer ao homem: décimo primeiro, não cause dor inútil e vã.
Os judeus, acostumados aos midrash, não temem uma leitura criativa e até descarada da Escritura, eles também se permitem acrescentar e aperfeiçoar: e diante de uma escuta tão inteligente das dobras profundas e dos espaços em branco da palavra, o próprio Altíssimo não poderá que sorrir satisfeito.
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Se a palavra é fogo e martelo nas dobras do texto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU