19 Agosto 2017
Uma interpretação laica do sacrifício de Isaac feita por Abraham B. Yehoshua, escritor israelense, publicado por La Stampa, 22-06-2017. A tradução[1] é de Ramiro Mincato.
Como escritor israelense, a Bíblia é um dos pilares da minha identidade (no bem e no mal), e por isso decidi oferecer uma interpretação pessoal e transgressora de um dos mitos fundadores da identidade judaica: o sacrifício de Isaac, que serviu de inspiração para o relato da crucificação de Cristo. Este mito, para os judeus, não tem apenas significado religioso, mas também nacional. Religião e nacionalidade se imbricam em nossa identidade.
[...] Uma das primeiras frases que salta aos olhos ao ler a passagem bíblica é a promessa de Deus a Abraão: "Vou cumulá-lo de bênçãos e multiplicarei tua descendência como as estrelas do céu e como a areia que está na praia do mar". Esta profecia, no entanto, não se realizou. A fé ingênua e obediente de Abraão, que o levou a aceitar o pedido de sacrificar seu próprio filho sem nenhuma explicação razoável, deveria ter, segundo a narrativa, garantido a ele e aos seus descendentes numerosa progênie. Mas o número de judeus continuou limitado e, dada sua antiga origem, a profecia se realizou, talvez, não tanto em termos de aumento da população, mas em capacidade de sobrevivência.
Este é pequeno detalhe, não ligado intimamente à essência da história, mas que dá uma indicação do tipo de diálogo ocorrido entre Abraão e Deus, sua força e sua eficácia concreta. Porque, se os critérios de fertilidade e de entidade numérica de um povo representam um valor em si - pelo menos para o narrador da história da Bíblia - aqui o resultado do teste de Abraão não lhe trouxe a recompensa positiva esperada, talvez até mesmo o oposto. Vou agora examinar a história em si mesma, um caso que suscita sérias questões morais. Mas, dizendo isso, não digo nada de novo. Se eu fosse um homem de fé e acreditasse na existência de Deus que falou a Abraão, e na providência divina individual, o episódio do sacrifício de Isaac comprometeria, do ponto de vista ético, substancialmente minha fé, uma vez que, em todo credo religioso, considera-se Deus não apenas a fonte da vida, mas também da moralidade e da justiça. Sabe-se também que a fé religiosa não depende unicamente dos valores éticos e, onde existe, geralmente, é capaz de superar qualquer tipo de inibição moral. [...]
Bem, voltemos ao episódio do sacrifício de Isaac. Na minha opinião, quem acredita em Deus e acredita nele também como fonte de moralidade e de justiça, encontra-se diante de um grave problema ao analisar este incidente. O comportamento de Abraão, de fato, é moralmente terrífico. É verdade que, na primeira frase, “Deus pôs Abraão à prova”, encontra-se uma suavização da brutalidade de Deus, deixando logo entender que não havia a intenção de sacrificar Isaac, sem nenhum motivo, mas Deus queria somente testar a devoção de seu pai. De qualquer modo, porém, por realizar tal tipo de experimento, Deus seria censurável. [...]
O texto demonstra claramente que Deus pode ser injusto. E, mesmo sem levar em conta, por ora, o comportamento de Abraão, eis que temos aqui a intenção de Deus em submetê-lo a uma prova moralmente distorcida. Na verdade, mesmo depois de se saber que se trata apenas de uma prova, um tal pedido da parte de Deus indica que poderia haver outros, de tipo concreto.
A explicação de que o pedido do sacrifício de Isaac tem o objetivo de demonstrar que no judaísmo não se admite sacrifícios humanos, na minha opinião, não é rege. Em primeiro lugar, a proibição do sacrifício humano não é mencionado no episódio, e, em segundo lugar, Abraão não recebe nenhuma reprovação por tê-la aceito, mas somente palavras de louvor pela sua disposição em executar a ordem divina. A falha moral de Abraão é, portanto, mais grave do que a de Deus. Sem discutir, sem questionar e sem recriminar está pronto para executar uma ordem sem sentido e injusta, a abandonar toda lógica e todo senso natural de justiça, pronto a matar um inocente para demonstrar sua devoção e confiança em Deus.
Esta disposição e obediência absolutas serviram de inspiração a muitas atrocidades cometidas na história em nome de uma ordem divina. Abraão, do ponto de vista religioso, é um modelo totalmente imoral para as gerações futuras. Seu comportamento lançou uma sombra sobre sua imagem de defensor da justiça, revelada, por exemplo, durante a conversa com Deus sobre a destruição de Sodoma e Gomorra, quando ele, com razão, pergunta: "Irás varrer o justo com o ímpio?" (Gênesis 18,23). E, "o juiz de toda a terra não fará justiça" (Gênesis 18,25). [...]
O mito do sacrifício de Isaac, portanto, deve ser firmemente rejeitado do ponto de vista da moral? Talvez se possa salvar somente uma parte, partindo de uma posição secular, da inexistência de Deus, e que Abraão, portanto, agiu completamente por conta, por sua decisão e vontade.
Abraão deixou a casa de seu pai Taré, já homem feito, para seguir uma nova fé. Cortou os laços familiares, tribais, e abandonou sua terra natal, virou as costas para a fé de seus ancestrais e partiu para um país estrangeiro para fundar uma nova religião. Mais tarde, em idade avançada, e tendo finalmente um filho com sua esposa Sara, certamente poderia imaginar seu filho Isaac agindo do mesmo modo como ele tinha agido com seu pai Taré. Isto é, poderia abandonar a crença do pai num único Deus, em favor de outros deuses, e até migrar para outro lugar.
Como Abraão poderia evitar, então, tal eventualidade? Em vez de dirigir-se aos habitantes da terra de Canaã, e convencê-los da bondade e da verdade de sua nova fé, optou por um caminho mais fácil para garantir a continuidade de seu credo entre seus descendentes. Para isso, organizou a encenação do sacrifício de seu filho: levou o menino para uma montanha, construiu um altar, amarrou Isaac e brandiu a faca, como se dissesse: "Estou pronto para te matar. Apesar de te amar, seria capaz de te matar se mudares tua fé. Eu posso fazer contigo o que meu pai, Taré, não fez comigo, para manter-me estreito à seu credo". No último momento, porém, ele finge uma reflexão tardia, como se Deus tivesse falado com ele por um anjo e diz: "Não ponha a tua mão sobre o menino, e não lhe faças nenhum mal" (Gênesis 22,12). A mensagem que Abraão passa para Isaac é, portanto, clara: "Eu, de minha parte, poderia ter te matado, mas o Deus, em quem eu creio, teve misericórdia de ti e não me permitiu. De hoje em diante saibas, Isaac, que não deves tua vida a mim que te pus no mundo, mas a Deus que te salvou". [...]
De acordo com esta interpretação laica, Abraão não tem nenhuma intenção de matar seu filho, mas só de ameaça-lo e intimidá-lo, portanto, ele não pode ser acusado de tentativa de homicídio ou obediência cega a um pedido "divino" de assassinato. Não está isento, no entanto, da acusação de ter aterrorizado Isaac. E, em hebraico, a expressão "o medo de Isaac", nascida a partir deste episódio, está presente em numerosas orações e salmos litúrgicos. O poeta Haim Gori bem expressou o terror sentido por Isaac no seu famoso poema chamado Herança. E assim escreve na última estrofe:
"Isaac, como foi dito, não foi oferecido em sacrifício.
Viveu longamente.
Viu o bem enquanto seus olhos não se obscureceram.
Mas deixou a lembrança daquele instante em herança aos descendentes.
Que nascem Com um punhal metido no coração".
Nota:
[1] A tradução do hebraico é de Alessandra Shomroni.
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"Meu filho, te poupo para manter-te amarrado a mim" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU