18 Março 2016
"Bento XVI, como também o Papa Francisco, sabe olhar à humanidade com olhos proféticos, discernindo-a na espera de quem a olhe, cuide dela, lhe perdoe, a reerga, lhe dê esperança", escreve Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por L’ Osservatore Romano, 16-03-2016. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
A entrevista com aquele que tem sido bispo de Roma e Papa contém uma forte mensagem, própria para o ano em que a Igreja vive através do jubileu da misericórdia e para o iminente aniversário da reforma protestante e da reforma católica. As questões do entrevistador deixam muito espaço às respostas de Bento XVI e querem ser somente impulsos para que o entrevistado possa expressar o seu pensamento sem que haja – como infelizmente hoje ocorre com frequência – alguma pressão para endereçar a resposta num sentido predeterminado.
O tema da misericórdia emerge a partir da reflexão sobre a justificação pela fé, argumento que causou a ruptura entre as Igrejas do Ocidente e que, agora relido e aprofundado, pôde tornar-se tema que une e não separa as duas confissões, como acentuado em 1999 pela Declaração conjunta entre a Igreja católica e a Federação Luterana Mundial. Não se esqueça de que foi precisamente o então cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da fé, a querer e a guiar o fatigoso itinerário bilateral de busca e de recomposição da doutrina.
Agora o Papa emérito, com o seu rigor intelectual, pode atestar que a fé, dom de Deus e comunicação personalíssima de quem crê em Deus, é sempre vista no se ser porta para a vida de comunidade, de Igreja. “A fé nasce da escuta”, disse certa vez e para sempre o apóstolo Paulo: a escuta da Palavra de Deus, palavra esta porém jamais “isolada” porque, saída de Deus, é sempre gerada no seio da Igr3eja, vive e se reconhece em toda a vida da Igreja, sempre mais assimilada por ela, corpo de Cristo. Nesta consciência eclesial, Bento XVI faz, portanto, emergir como sinalo dos tempos a necessidade de ler a justificação como misericórdia de Deus: de fato, é a justiça de Deus, que não é aquela dos homens, mas justiça justificante que se manifestou em Cristo precisamente no fazer misericórdia. A justiça de Deus, quando se põe em movimento e atua, se manifesta como misericórdia, este sentimento visceral de amor, ternura, perdão, compaixão que é – diz o Papa Francisco – a “substância de Deus”.
Sobre este tema Bento XVI mostra a continuidade de magistério da parte da cátedra de Pedro. Foi João XXIII, em 1962, no discurso de abertura do Concílio, que anunciou da parte da esposa de Cristo, a Igreja, a escolha “de usar a medicina da misericórdia ao invés de abraçar as armas do rigor”. Tarefa, esta, prosseguida por Paulo VI com palavras e, mais ainda, com gestos. João Paulo II sentiu precisamente a necessidade de escrever uma encíclica sobre a misericórdia para que a Igreja assumisse uma “mais profunda e particular consciência da necessidade de dar testemunho da misericórdia de Deus em toda a sua missão” (Dives in misericórdia, 12). E o mesmo cardeal Ratzinger, na missa por elligendo pontífice de 18 de abril de 2005 – na véspera, portanto do seu pontificado – afirmava: “Escutemos com alegria o anúncio do ano da misericórdia... Jesus Cristo é a misericórdia divina: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus”.
O Papa Francisco entrou nesta corrente petrina de anúncio da misericórdia confirmando que “precisamente este é o tempo da misericórdia!” Este magistério pontifício, em plena e rigorosa continuidade, quer encontrar os homens e as mulheres de hoje que estão à espera, acima de tudo, de misericórdia, porque esta parece faltar nas relações humanas, parece enfraquecer-se e não fazer mais parte da gramática humana.
Bento XVI, como também o Papa Francisco, sabe olhar à humanidade com olhos proféticos, discernindo-a na espera de quem a olhe, cuide dela, lhe perdoe, a reerga, lhe dê esperança. Boa nova, portanto, para todos, não só para os cristãos: o que indica de fato a justiça de Deus na fé cristã? A ação através da qual Deus que é compassivo, misericordioso, não só “declara justo” – como afirma Lutero – mas “torna justo” o homem pecador. A justiça de Deus, quando se põe em ação é misericórdia, uma misericórdia não merecida, gratuita, uma misericórdia que não é acompanhada pela pena, mas é regeneração, recriação, transfiguração da criatura pecadora.
Então aquela vida de Jesus desde a concepção até a cruz, aquela vida gasta pelos outros e oferecida em dom para todos, vida de serviço e de dedicação, verdadeira “pro-existência” até o fim, se torna a figura exemplar para todos aqueles que estão na sequela de Jesus, narrando- como Jesus o fez – a face misericordiosa de Deus que cura e sara os enfermos, cancela os pecados, leva a boa notícia aos pobres, restitui vida aos mortos. Deus e a humanidade não são concorrentes: estão a tal ponto em comunhão que no cristianismo não se pode falar de Deus sem falar do homem. Escreve um teólogo contemporâneo: “Ao Deus de Jesus Cristo, ao nosso Deus não podemos colocar a pergunta: ‘O que sabes tu de nós, de nossa dura e fatigosa tarefa de viver?’.” O nosso Deus, de fato, em Jesus seu Filho, homem como nós, conheceu esta nossa fadiga até a morte. Portanto, é um Deus “constrangido” à compaixão, à misericórdia. Sobre o candelabro da misericórdia aceso pelo Papa Francisco este escrito de Bento XVI acendeu uma pequena chama, porque uma é a Luz que resplandece.
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A justiça divina é misericórdia. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU