24 Janeiro 2017
Alguns episódios da Bíblia são extremamente familiares. Escutar várias vezes os seus relatos, em vez de nos cansar, nos coloca naquele ápice em que a expectativa se mistura com a curiosidade intelectual em relação a um Deus que, aparentemente, regula todos os movimentos de uma história. Qual é, então, a nossa liberdade de leitura? Como interpretar, por exemplo, o sacrifício de Isaac? Ou como acolher a insensata e infinita construção de uma torre que levaria o nome de Babel?
A reportagem é de Antonio Gnoli, publicada no jornal La Repubblica, 20-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Haim Baharier, cujas origens polonesas e francesas cresceram sobre as raízes do mundo judaico, há anos pratica uma exegese bíblica de eficácia particular, na qual a cabala e o comentário talmúdico se entrelaçam vertiginosamente.
Ele realizou uma série de palestras no Teatro Eliseo, de Roma: “Na Torá”, me diz ele, “há dois rostos que se defrontam, às vezes se tocam, às vezes se afastam, às vezes se fundem: o narrativo e o normativo”. Trata-se, como veremos, de uma distinção repleta de consequências.
Pode nos explicar o que representam esses dois rostos?
Muitas vezes, entre as narrativas bíblicas e as regras comportamentais muito concretas que a Bíblia indica, existe um curto-circuito lógico. Pensemos na narrativa do nascimento de Isaac. A mãe, Sara, tem 90 anos, o pai, Abraão, 100. Um nascimento milagroso, que tem como consequência o próprio nome do nascituro, que significa “aquele que vai rir”.
Como interpretar?
Eu parto de uma consideração que não tem nenhuma evidência aparente, mas que se alimenta de inúmeros indícios: Isaac é uma pessoa com deficiência. É por isso que as pessoas riem dele. Até mesmo Ismael, o irmão mais velho, ri dele.
É um riso de escárnio?
É claro, mas o riso domina todo o relato. Sara também ri quando anunciam que ela terá um filho aos 90 anos. Mas ela vai aceitar rapidamente a condição do filho. Abraão não. Fica atormentado e, no fim, vai decidir suprimi-lo. Naquela época, na Mesopotâmia, de fato, não eram excepcionais os sacrifícios humanos de crianças, muito frequentemente de pessoas com deficiência.
Mas Abraão tomou aquela decisão extrema porque uma voz lha ordenou. Foi Deus ou uma alucinação dele?
Os anos de Isaac, já com 30 anos de idade, contam sobretudo o longo processo de degeneração psicológica do pai, cuja conclusão é que o melhor modo para cometer o filicídio é imputá-lo ao Onipotente.
Que possível conclusão se pode tirar?
Um comentarista hassídico leu no relato a absoluta confiança, apesar de tudo, de Isaac em relação ao pai, do filho do homem no gênero humano, do povo hebreu em relação à humanidade. A meu ver, prefigura a esperança no gênero humano, da qual o povo hebreu nunca abre mão.
Duas histórias, digamos assim, de degeneração humana são, por um lado, a história do Dilúvio universal e, de outro, a Torre de Babel. Que papel elas ocupam na Bíblia?
Por um lado, há a humanidade que será afogada no Dilúvio universal e, de outro, está Noé, que se salvará em uma arca. O que essa Arca representa? Arca, em hebraico Teva, também significa palavra. No texto, relatam-se as medidas da Arca: altura, comprimento, largura, cujos valores numéricos (em hebraico, as letras também servem como números) correspondem à palavra “linguagem”. Noé que se salva é o antepassado de Abraão, que, por meio da linguagem e da palavra, inaugura a identidade judaica. Nesse sentido, a história do Dilúvio e da salvação representam as origens arcaicas dessa identidade.
É, portanto, um ato de fundação?
Sim. E, como todo ato de fundação, requer o nascimento de uma nova linguagem. A velha linguagem serviu para contornar a punibilidade das leis, para encobrir a verdade, e não para revelá-la. Hoje, conhecemos perfeitamente o que é a manipulação da linguagem, o uso das palavras que nos afastam da verdade.
Então, o naufrágio de que a Bíblia fala tem algo em comum com o nosso naufrágio?
O grande naufrágio do nosso mundo tem muito a ver com o Dilúvio. A história do Dilúvio é comum a muitíssimas civilizações e religiões. No entanto, a narrativa bíblica se diferencia das outras na medida em que insiste em como nos salvamos da catástrofe.
Depois do Dilúvio, temos a história da Torre de Babel. O que significa essa sequência?
Reforça a história anterior. O texto bíblico fala de uma cidade em construção, cujos construtores parecem prisioneiros de uma linguagem composta por palavras únicas comuns. Nessa cidade, que não reconhece as virtudes da diversidade, não há línguas diferentes. Há uma língua vertical, monolítica e ameaçadora, que impede o desenvolvimento horizontal das línguas plurais. A Torre de Babel, em última análise, mostra o nascimento da linguagem absolutista. Nessa linguagem, já estão presentes in fieri todos os totalitarismos e os fascismos da história. A Torre de Babel é o fim da ilusão do “como seria bom se todos falássemos a mesma língua”. Não, não é nada bom, isso anula o tempo da reflexão, da aprendizagem, da dúvida, da contradição. A incompreensão generalizada no nosso mundo conectado na rede é a versão atual da Torre de Babel. Estamos novamente mergulhados na ignorância da diferença entre linguagem e língua, entre consciência mágica consciência crítica.
O que entende por consciência mágica?
A consciência mágica não dá espaço para as interpretações, não conhece dúvidas. A percepção do mundo está na ordem do abracadabra, está escrito assim, por isso é assim. A consciência mágica é a mãe de todos os totalitarismos e contaminou, em graus diversos, todos os monoteísmos. Os ensaios cabalistas leem o mundo como um imenso emaranhado de letras, uma linguagem que cabe ao homem decifrar e obter daí uma língua para se comunicar. A consciência evoluída extrapola palavras, frases, parágrafos, histórias que, por sua vez, irão compor a história da humanidade.
A consciência mágica é a outra face do fundamentalismo...
É o prolongamento acrítico de uma suposta vontade divina do braço do terrorista que mata. O Isis é um claro exemplo de consciência mágica, de manipulação das consciências através do conformismo dogmático. Não conhecemos as reais motivações do Isis. Para além de fatos econômicos e expansionistas, sabemos que eles se explicitam através de um dogmatismo que fascina a consciência mágica, imperante não só nas sociedades do Oriente Médio, mas também em formas silenciadas e menos evidentes também nas nossas sociedades.
Em que pensa?
Nestes anos transcorridos sob o sinal de uma finança mágica que, cegamente, prometia enriquecer a todos e não fez nada mais do que despojar o homem dos seus bens.
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De Abraão a Noé, o rosto secreto dos heróis bíblicos. Entrevista com Haim Baharier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU