07 Junho 2023
"Hoje não temos vocações. É um fato. Os promotores vocacionais nos alertam, que em cerca de 30 anos, ou antes, poderemos ter uma espécie de blackout, com a maioria absoluta de padres no entardecer da vida e pouquíssimos iniciando! Percebo, porém, que corremos atrás da complexidade causal desta situação, apelando para a falta de oração, de cultura vocacional nas comunidades, ausência de padres que trabalhem nesta pastoral específica, falta de testemunho", escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre da Arquidiocese de Londrina.
Li algures, em tom saudosista, que em Santa Catarina num passado próximo, era relativamente frequente encontrar numa família de seis filhos, dois padres e duas freiras! Se aplicássemos essa matemática aos dias de hoje, concretamente em países europeus, veríamos que a conta jamais fecharia! A natalidade quase inexistente, pouco suporta a continuidade da existência de alguns deles, no passado exportadores de missionários! Não há crianças em lado nenhum! Mas, e se as houvesse?! Sentiríamos porventura o derramamento de vocações em abundância, como na época apontada? Por óbvio que não. E por uma razão simples. Lá, não se tratava do Espírito Santo que em forma de tsunami vocacional, descia na família e os “marcava desde o seio materno”! Era o que é hoje: a família, inserida num processo que envolve cultura, economia, religião e porque não, fertilidade, abria espaço a que seus integrantes vissem na vida religiosa uma opção digna de serviço à Igreja e de realização pessoal.
A figura do padre e da freira, ainda ao abrigo de estereótipos de um passado mais remoto, seduzia e atraía jovens, que nesse processo mencionado (claramente num ambiente rural), viam crescer dentro de si o desejo de entrar no mundo da vida consagrada pelo reino. Não havia nada de “milagroso” nas vocações desse tempo! Como não há hoje, na ausência delas! O Deus de lá, como de cá, é o mesmo! Em épocas idas, a presença de ministérios ordenados era, não só importante como essencial. Imprescindível, em comunidades com uma vida religiosa assente nos sacramentos. As Congregações Religiosas povoavam as várias dioceses brasileiras antes mesmo que elas nascessem! Capuchinhos, palotinos, franciscanos, PIME, xaverianos, jesuítas, maristas, camilianos, etc. etc. investiram muito em seminários, espalhados pelo então sertão, e neles cuidavam de centenas e milhares de adolescentes e jovens, a maioria buscando tão somente uma “boa e sólida educação”!
No fritar dos ovos, se dez por cento abraçasse a Vida Consagrada, já seria um número considerável e satisfatório para as necessidades dessas Congregações e da Igreja local! A vocação obedecia a um script inaugurado em Trento! Gravemos esta data: 15 de julho de 1563, o dia em que os Bispos reunidos nesse Concílio, aprovaram por unanimidade o Decreto Cum adolescentium Aetas, que recomendava a criação de seminários em cada diocese. Uma medida de relevância na época, que dotava a Igreja de um instrumento para o cuidado das vocações ao sacerdócio ordenado. O mundo de Trento ruiu com a Revolução Francesa, mas a Igreja manteve-se convicta desse modelo até ontem! Certo é, que na década de sessenta e setenta, os chamados Seminários menores praticamente se eclipsaram, por motivos bem conhecidos! A natalidade caiu e as Escolas públicas se tornaram uma realidade e em certos casos, com relativa qualidade de ensino. Na velha Europa, essas estruturas são hoje hotéis, casas de retiro, ou em alguns casos quartéis da polícia! Por aqui, poucos são os que ainda insistem na figura da casa específica para adolescentes.
A vocação sacerdotal e religiosa nasce de fora para dentro. É no confronto com a realidade, provocando um emaranhado e complexo processo interno próprio de todas as grandes opções na vida, que a pessoa vai descobrindo, dentro de um ambiente eclesial favorável, a beleza de uma vida com sentido e capaz de realizar os maiores desejos inerentes à pessoa humana. Ninguém nasce padre ou freira! Como ninguém nasce cristão, parafraseando Tertuliano. É oportuno resgatar inclusive, as palavras de Bento XVI em Aparecida: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (Documento de Aparecida, n. 12). Ora, o que é uma vocação, se não o fruto de um encontro decisivo, enquanto se trilha o dia a dia da vida? O encontro com alguém que vem ao nosso encontro! O que seria então um “ambiente eclesial favorável”?
No passado, a Igreja (leia-se o clero) era um dos pilares da sociedade medieval! Hoje, a Igreja pouca relevância tem! Se apresentamos a potenciais candidatos ao ministério ordenado, um ambiente eclesial tóxico e falido, o que esperar de futuros padres e freiras? Não! Eles não vieram do seio materno prontos, para servir a “Igreja de Cristo” em qualquer tempo e lugar! Adolescentes são pessoas não prontas; a psicologia nos dá conta que os relacionamentos afetivos por exemplo, se tornam extremamente importantes para a maioria dos indivíduos nessa faixa etária. Eles querem namorar, viver um grande romance e ter múltiplos parceiros (sexuais ou não) em razão da explosão de hormônios sexuais. A pressão do súbito aumento de responsabilidade e da necessidade de pensar no futuro, é um fator que geralmente costuma perturbar os adolescentes. Recordemos que a taxa de suicídio nessa idade é alta.
A questão primeira que se coloca, é como provocar de forma correta o encontro desses adolescentes e jovens com Jesus, em que porventura ocorra um anseio de segui-Lo de perto, onde o fator celibato está “dentro do pacote” de sua possível opção! Uma vida sem sexo e principalmente sem família (onde o sexo se torna natural), é encarada pelos homens e mulheres de hoje como violência. Temos celibatários? Claro que sim! Mas uma boa parcela viverá esse modelo de vida, sempre como “restrição e privação”. A causa é elementar: o sexo está muito longe de ser encarado com a conotação negativa e pejorativa de séculos!
A teologia do matrimônio (restaurada após o Vaticano II) impôs-se aos católicos, apresentando a união matrimonial como uma vocação esplêndida e repleta de significado humano e cristão, lugar de “santidade e perfeição”! Família sempre foi um porto seguro; contudo, num mundo conturbado como o de hoje, configura-se como de extrema importância para qualquer ser humano. É a Igreja a dizê-lo com base em sérios estudos: “a ausência de família estruturada, gera pessoas desajustadas emocionalmente, perturbadas e em muitos casos a decadência na dependência química e até no crime”! Na contradição, a Igreja fica nua! Padres “desfamiliarizados” são uma aberração nos dias que correm. Isso vale sobremaneira para a ligação com a família que os viu nascer, mas em meu entender, também para uma família constituída.
Hoje não temos vocações. É um fato. Os promotores vocacionais nos alertam, que em cerca de 30 anos, ou antes, poderemos ter uma espécie de blackout, com a maioria absoluta de padres no entardecer da vida e pouquíssimos iniciando! Percebo, porém, que corremos atrás da complexidade causal desta situação, apelando para a falta de oração, de cultura vocacional nas comunidades, ausência de padres que trabalhem nesta pastoral específica, falta de testemunho etc. etc.
No entanto, porque não encarar o problema pelo lado certo? O que nos impede de discernir, que este modelo atual de padres celibatários, cuidando de paróquias geográficas, sendo administradores (às vezes péssimos), formando leigos clericalistas como eles, lançando mão de todas “as novidades” para manter o máximo de gente nas missas, não está levando a lugar algum? Há uma ilusão ótica generalizada, de que após o processo sinodal tudo volte aos trilhos da normalidade, embora “reformados”! Assim pensam na pior das hipóteses os progressistas, para se contrapor ao coro dos tradicionalistas que apostam na lei da gravidade numa Igreja pós Francisco!
Vejo também, que aqui e acolá, independentemente do Continente, começam a pipocar experiências, algumas tímidas outras mais afoitas, de quebrar o paradigma padre-paróquia e partir para uma verdadeira emancipação laical, com ministérios empoderados e capacitados à liderança. Este é o caminho. Uma Igreja do entardecer, como refere Tomáš Hálik, não pode se dar ao luxo de trazer soluções antigas para problemas novos, como já denunciei noutras ocasiões. Leigos fortes, comunidades cristãs minoritárias, mas sendo fermento, com padres, celibatários ou não! O processo de discernimento vocacional brotará da comunidade, nela e com ela! Os adolescentes e jovens se tornarão pessoas humanas inteiras, durante um longo processo e optarão de forma madura pela ordenação presbiteral. Mas não existe mágica nenhuma! Para que tudo venha a acontecer, o atual ministério necessitará de uma profunda discussão e reforma.
Chega de nos enxergarmos na linha sacerdotal do Antigo Testamento! Não foi assim que o Mestre nos pensou! Se a história nos cobra um preço alto, devemos pagar esse resgate e ficarmos livres para novos voos! Atualmente uma parcela significativamente alta da ocupação do nosso tempo, está em torno do altar. Da liturgia. Parece aberração dizer isso, mas o que se faz mister, é denunciar a sacralização com que se revestiu a nossa figura e que tantos problemas morais e psicopatológicos nos traz! Uma sacralidade que vem das vestes, da proximidade com o “sagrado”, com a presidência das celebrações, mas que encontra reforço, no fato de que a comunidade não viu o padre crescer, formar-se e nem sabe de onde veio... A distância do atual sacerdote para com a comunidade que serve, é fonte inesgotável de problemas aparentemente sem solução, na atual performance!
Tornou-se já lugar comum, denunciar a postura de padres mais jovens, que em jeito acrobático, lançam mão de sinais externos para vincar seu status junto à sociedade. Pessoalmente, não acho que sejam culpados de nada. Foram gestados e formados em torno de fetiches, que assimilaram sem que ninguém os ajudasse a aprofundar o significado dessa postura. Perante um futuro que parece varrer o passado como tempestade de areia, lançam eles mão do que lhes parece símbolo de segurança e estabilidade. Abominam tudo que (n)os questione e refugiam-se seguindo “mestres midiáticos” que reforçam as suas convicções. Mal sabem eles, que o seu exemplo, outra coisa não é, do que combustível para nos indignarmos com o modelo que os deu à luz! A Igreja de Francisco (e eu acredito que tenha continuidade), ou decide abortar essa ambiguidade na formação presbiteral e rever os critérios da escolha de bispos, ou atrasará mais um pouco o processo de recuperação de seu verdadeiro papel como Igreja de Jesus Cristo – que está longe de ser “uma Instituição forte e poderosa”!
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Crise de vocações? Artigo de Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU