05 Junho 2023
"Neste mundo que certamente cria riqueza (para poucos) e cada vez menos se assemelha àquele Éden no qual metaforicamente deveríamos transformar a terra, talvez os animais ainda constituam um pequeno elo com a memória e a esperança de uma 'cidade' à medida de Deus, ou seja, humana, onde exista espaço para todos os seres humanos em sua magnífica diversidade e para todas as diferentes espécies de seres vivos", escreve a teóloga Selene Zorzi, professora de Teologia Espiritual no Istituto Teologico Marchigiano e de Antropologia Teológica e Patrologia no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Ancona, em artigo publicado por Rocca, 01-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na difícil alternativa que parece pairar sobre nós cada vez que surge o debate sobre o paralelismo entre animais de estimação e/ou crianças, é preciso primeiro entender se o paralelismo que é criado e criticado não esconde temas acríticos e, se não deveria, talvez, nos fazer deslocar a crítica para um nível mais estrutural.
O primeiro dado evidente é que nessa nossa civilização tecnocrática e capitalista cresce um mal-estar interior e relacional. Crescem bolsões de solidão, se desfaz o vínculo social e afetivo por razões não atribuíveis apenas a escolhas individuais, mas também às estruturas econômicas em que os solteiros estão inseridos. Os ritmos e as condições de vida que o trabalho e as metrópoles impuseram às relações, levam o indivíduo a um mal-estar que assume diversas formas: sensação de solidão, falta de visão clara do futuro, ansiedade performativa, violências domésticas, convivência estrutural com a angústia, a ideia de que uma vida humana também possa ser considerada como material de descarte (especialmente aquelas em condições de pobreza).
Nesse desconforto relacional humano, certamente se sente a necessidade de compensar uma certa anafetividade generalizada e os animais vêm em nosso socorro. A sua disponibilidade para a vitalidade, para a relação, para a alegria, a disponibilidade de nos oferecer relação e sua insaciabilidade para a companhia, são um verdadeiro remédio para a nossa época de tristes paixões. Neste caso, não está se falando de substitutos, mas justamente de uma terapia: a pet terapia.
O segundo dado é que apesar do mundo tecnológico-industrial ter imposto uma transformação radical dos vínculos relacionais, afetivos e amorosos, a nossa linguagem e os nossos modelos relacionais ainda são aqueles da família tradicional do campo Nesse esquema, as relações afetivas são pensadas como equivalentes a relações de posse das coisas (a “minha” mulher) tendo o mesmo destino da propriedade privada que não pode e não deve pertencer a mais ninguém. Trata-se de uma visão asfixiada da vida afetiva e sentimental que concebe o afeto apenas com o código da família. Nessa constelação, obviamente, as mulheres nunca serão pensadas fora do seu papel de mães. Assim, sejam elas parceiras, trabalhadoras, profissionais ou simples cidadãs, a maternidade terá que constituir a sua característica principal.
A maternidade passa a absorver todas as relações de cuidado e por isso reduzimos o cuidado à maternidade depois de ter restringido a maternidade à única ação criativa de que uma mulher seria capaz.
Não causa estranheza que, falando de animais de estimação que passam a fazer parte das nossas casas, não se consiga ter categorias diversas daquelas da família tradicional e que os seres vivos de quem cuidamos só possam ser vistos como "crianças".
No paralelismo entre cachorros e filhos que muitas vezes nos encontramos fazendo, ainda incide uma mentalidade arcaica e rígida das relações de cuidado, de forma que as relações afetivas só podem ser aquelas bem codificado pelos papéis familiares tradicionais.
Até para Deus.
Todos nós recaímos nisso o tempo todo e o próprio Papa, que escreveu coisas entusiasmantes na encíclica Laudato si' sobre a nossa relação com a casa comum, voltou a referir-se aos animais assumindo um vínculo acrítico desse tipo: cães “seriam preferidos" aos filhos, haveria mais caminhas de cachorro que berços, em vez de cuidar de um cachorro dever-se-ia pensar nas crianças que morrem de fome. Há muitos pressupostos não ditos e talvez falsos nessas afirmações: que se deva escolher entre uma coisa ou outra o objeto da nossa afeição; que cuidar de algo implique tirá-lo de outros (em especialmente das crianças); que uma mulher sempre tem que escolher entre ser mãe e outra coisa (me pergunto se a mesma vinculação imediata apareceria se o sujeito fosse um homem); que nas casas e nos nossos afetos exista espaço apenas para maridos e filhos.
Parece banal dizer, mas é bom lembrar que existem casais que têm filhos numerosos e apesar de tudo também têm animais de estimação. Existem pessoas solteiras ou mesmo casais que nunca quiseram filhos por não se sentirem adequados (porque é necessária uma verdadeira vocação para a genitorialidade) e que, no entanto, têm animais de estimação em casa ou cuidam de plantas. Por outro lado, há pessoas que se sentem solitárias e desapontadas, afetivamente carentes mesmo em famílias numerosas e barulhentas. Para essas, creio que um animal de estimação poderia ser benéfico: na verdade, ajudaria a manter a confiança na vida e reeducar os afetos.
Um terceiro nível da questão parece-me ser uma visão ainda demasiado antropocêntrica da nosso estar no mundo. Parece nos incomodar de maneira especial que os seres humanos possam ser considerados menos dignos de nossa atenção do que os animais. Que nunca se diga que um animal é melhor que um ser humano! Deve-se reconhecer que, em certos casos, os animais de estimação encontram em determinadas pessoas um acolhimento e tratamentos especiais que elas não estão dispostas a reconhecer a seus similares e poderia ser um problema. Também é verdade que determinados seres humanos podem dar importância a traços que certos animais nunca chegariam a desenvolver porque, como dizia Dostoievski, os animais são "sem pecado". “Ame os animais. Deus deu aos animais uma consciência rudimentar e uma imperturbável alegria. Não se deve chateá-los ou privá-los de sua felicidade. Não trabalhe contra os intentos de Deus. Homem, não se orgulhe de sua superioridade em relação aos animais. Eles não possuem pecados, enquanto você mancha a terra com sua grandeza, com sua aparição, deixando às suas costas um rasto de podridão — Ai! Quase todos nós!”. F. Dostoiévski, "Os irmãos Karamazov".
Mas talvez seja exatamente isso que devemos monitorar, o tratamento que reservamos para os nossos companheiros de humanidade, para as nossas cidades, para a Terra. Certamente no campo do cuidado dos nossos animais há degenerações, como de fato existem formas de relação conosco mesmos e com os outros – sejam eles nossos parceiros, nossos pais, nossos irmãos e irmãs ou nossos filhos – absolutamente contraproducentes e tóxicas.
É preciso dizer que nós, seres humanos, certamente impomos modos "humanos" ao mundo, inclusive àquele dos animais, mas é uma questão da qual não podemos sair facilmente.
Por outro lado, como teóloga e tutora de animais de estimação, aprendi que os animais não têm apenas uma atitude passiva em relação a nós, mas também são nossos mestres, nos treinam: nós ensinam como voltar à casa comum, à terra, aos ritmos das estações, aos da alternância natural dia/noite; num mundo cada vez mais desmaterializado, que nos pede para vestir máscaras, acumular coisas para consumir, nos fazem voltar aos corpos, ao pelo, ao calor, aos cheiros, ao contato com a natureza, à felicidade de uma bolinha lançada, enfim, ao essencial. Em um certo sentido, no sentido etimológico do termo, eles nos "humilham", nos rebaixam ao chão, e fazendo assim nos fecundam, fecundam as nossas vidas com espontaneidade, vitalidade, emoções, confiança. São mestres severos, mas justos: eles trazem junto com as bolinhas todas as nossas contradições, todas as nossas inconsistências, mas sem julgamento.
Afinal, o treinamento mútuo que humanos e animais fizeram uns aos outros agora ostenta uma história de mais de 15.000 anos (talvez até o dobro disso) e nós sentimos isso.
No que se refere à Bíblia, ela está repleta da presença de animais em suas histórias, do Gênesis ao Apocalipse. O próprio Jesus deve ter vivido diariamente entre ovelhas, cabras e carneiros, já que os menciona tanto como protagonistas de suas parábolas. Um texto de Paulo até nos lembra que toda a criação está esperando, como nas dores de um parto, junto com os seres humanos por uma redenção.
Na Bíblia, os animais muitas vezes ser usados como uma metáfora para nos ensinar. Lembre-se de como em 2Sam 12,2-7 se fala da relação afetiva entre um pobre homem e sua ovelha: “Havia numa cidade dois homens, um rico e outro pobre. O rico possuía muitíssimas ovelhas e vacas. Mas o pobre não tinha coisa nenhuma, senão uma pequena cordeira que comprara e criara; e ela tinha crescido com ele e com seus filhos; do seu bocado comia, e do seu copo bebia, e dormia em seu regaço, e a tinha como filha. E, vindo um viajante ao homem rico, deixou este de tomar das suas ovelhas e das suas vacas para assar para o viajante que viera a ele; e tomou a cordeira do homem pobre, e a preparou para o homem que viera a ele. Então o furor de Davi se acendeu em grande maneira contra aquele homem, e disse a Natã: Vive o Senhor, que digno de morte é o homem que fez isso. E pela cordeira tornará a dar o quadruplicado, porque fez tal coisa, e porque não se compadeceu".
Claro, a teologia tem sido fortemente antropocêntrica por séculos. Recentemente, porém, as coisas estão mudando: teólogos como Teilhard de Chardin ou Raimon Panikkar foram pioneiros nesse campo, mas recolhendo a reflexão que passa também pelas teólogas que se inspiram no ecofeminismo, as próprias Encíclicas do Papa são um hino à superação dessa visão tão estreita do universo.
Nessas visões do mundo, humanos, terra e animais são legitimamente parte de um cosmos variegado e rico, onde a questão de quem cuidar mais é inapropriada: como para o amor, o cuidado, ao doá-lo, não se reduz à metade.
Outra falsa conexão que muitas vezes surge nesses discursos é a fácil crítica a quem possui um animal de estimação, não apenas como se isso fosse uma afronta a outros tipos de relação tirados aos humanos, mas à queda da natalidade ou, pior, à pobreza. Essa suposição acrítica carece de uma análise aprofundada do impacto antrópico da massa de humanos que povoam a Terra, mas também sobre as situações econômicas e precárias e sobre o futuro incerto que os jovens casais que gostariam de ter filhos têm de enfrentar. Limitamo-nos a uma crítica moralista que não lida com aquela crítica ao capitalismo, típica da Laudato si', que obriga a uma vida frenética, onde resulta impossível ter tempo para cuidar das relações (ou mais banalmente o dinheiro para começar uma família).
Neste mundo que certamente cria riqueza (para poucos) e cada vez menos se assemelha àquele Éden no qual metaforicamente deveríamos transformar a terra, talvez os animais ainda constituam um pequeno elo com a memória e a esperança de uma "cidade" à medida de Deus, ou seja, humana, onde exista espaço para todos os seres humanos em sua magnífica diversidade e para todas as diferentes espécies de seres vivos.
Afinal, as histórias daqueles que atingiram uma plenitude de humanidade e a quem tivemos o costume de chamar de santos, como na hagiografia, são pontuadas pela presença de animais de toda espécie.
Porque talvez justamente os animais hoje contribuam para não nos deixar perder completamente aquela alfabetização básica e primária ao mundo dos afetos, das emoções, dos cuidados e das relações, que poderiam nos ajudar a sair de esquemas relacionais rígidos e asfixiantes e nos guiar (pela coleira) para modelos mais maleáveis de famílias, aquelas onde o papel não vale acima de tudo, mas a escolha afetiva. Famílias estranhas, famílias queer.
“A escolha amorosa deve ser mantida em primeiro lugar, porque na família tradicional os sentimentos são vinculados aos papéis, enquanto na família queer é exatamente o contrário: os papéis são máscaras que os sentimentos vestem quando e se necessário, caso contrário, melhor nunca” (Michela Murgia).
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Cachorros e/ou filhos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU