São duas guerras. Democracia imperfeitíssima dentro, imperial fora. Artigo de Enrico Peyretti

Volodymyr Zelenksy e Joe Biden, presidentes da Ucrânia e dos Estados Unidos da América, respectivamente. (Foto: Volodymyr Zelenksy | Facebook)

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26 Mai 2023

“Uma superpotência única é mais perigosa que o bipolarismo”: alerta de Norberto Bobbio. Não existe um modelo válido para todos. Depois de 1989 houve um retorno à guerra como falsificação e desmobilização da política.

O artigo é de Enrico Peyretti, teólogo, ativista italiano, padre casado e ex-presidente da Federação Universitária Católica Italiana (Fuci), publicado por Chiesa di tutti Chiesa dei poveri, 24-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

Infelizmente, são duas guerras: uma é a guerra de agressão criminosa de Putin; a outra é aquela, surda e contínua, que os EUA-OTAN vêm fazendo desde 1989-1991 contra o que não está sob seu controle.

Mas uma das armadilhas desta maldita guerra é que se você critica qualquer coisa do Ocidente e da OTAN, você é pró-Putin. Se você condena Putin como agressor e autocrata, esquece as responsabilidades e as guerras do Ocidente. Infelizmente, o mal não está apenas de um lado. Seria mais simples.

A vontade de poder e o exercício efetivo do poder por parte do nosso Ocidente, para impor o seu próprio bem e virtude, para “exportar a democracia”, e importar as matérias-primas mais desejadas, tem feito muito mal ao mundo, de longo história, até hoje. E do mal nasce outro mal. Os méritos e valores do Ocidente, que nós amamos, são outros, e podem corrigir os males do poder, se quiséssemos.

Os EUA, chefes políticos também de nós, europeus e italianos, têm a pretensão declarada de não serem igualados, para não dizer superados, por nenhuma outra potência. Ora, de nossa parte, vale o princípio de que a verdade, à medida que se torna mais clara, deve ser dita antes de mais nada àqueles que nos condicionam e comandam, antes e mais do que ao adversário: “Falar a verdade ao poder”, é pensamento e regra de Gandhi, como de Vaclav Havel.

Recordamos várias vezes ter ouvido diretamente Norberto Bobbio, na noite de 9 de novembro de 1989 (queda do Muro de Berlim), avisar-nos com grande preocupação: “Poderia ser a guerra!”. Bobbio via que a monopolarismo, a superpotência única, podia ser mais perigoso do que a bipolarismo. Se nenhum poder tem maior vontade de poder, e se ninguém se sente humilhado, pode-se ir em direção a um equilíbrio, bastante seguro para todos, mais que o equilíbrio do terror”, da dissuasão ameaçadora. A condição, que por algum tempo parecia possível, foi o desarmamento e o equilíbrio, sem ameaças. O Pacto de Varsóvia foi dissolvido, mas não a OTAN. Na noite de 17 de janeiro de 1991, a coalizão liderada por Washington lançou uma devastadora ofensiva aérea, naval e de mísseis (Tempestade no Deserto) contra alvos militares, indústrias, sistema viário e centros urbanos iraquianos. As "novas guerras" começavam.

A política justa e pacífica, local e planetária, baseia-se no pluralismo, na aceitação das diferenças, não no imperialismo, nem mesmo cultural, nem mesmo "democrático", nem no monopolarismo, modelo único imposto. Claro, o comunismo imposto pela URSS, e que não amadureceu na liberdade, jogou os satélites de Moscou no mito do modelo e império estadunidense, até os dias atuais, até o “latir” da OTAN (expressão do Papa Francisco não retomada por aqueles que justamente denunciam a agressão russa) às fronteiras russas.

Se, no contexto da atual situação complexa e assustadora, se vê o mal e o perigo apenas em Putin, simplifica-se e justifica-se a "guerra à guerra" por meio da implementação da guerra. A imprensa hegemônica, e a política alinhada, sem verdadeiras iniciativas de trégua, de negociação para uma possível paz, sacrificam aos interesses de alinhamento monopolar, e ao capitalismo armamentista, a vida de milhares de combatentes jogados ao fogo, de um lado como do outro, e a habitabilidade das cidades, famílias, crianças "martirizadas" todos os dias.

Depois de 1989 voltamos à guerra como falsificação e desmobilização da política, que é a sabedoria e a arte de viver, sem se matar, na diferença. Se necessário, se pode ler o suíço Daniele Ganser, As guerras ilegais da OTAN (Fazi): treze guerras. Não banquemos os ocidentais puros, porque não o somos. A "democracia modelo" já é imperfeitíssima e precária internamente (racismo; mais armas que cidadãos; desigualdades fortíssimas), e não pode decidir "reduzir à condição de pária” a potência rival. Mesmo uma democracia perfeita por dentro, se for imperial por fora, hoje é igualmente falsa, não é a forma hoje necessária, porque agora a polis é o planeta.

O destino humano é único. Ninguém se salva sozinho, nem antes dos outros, dos grandes perigos que se aproximam. "Que rato construiria a própria ratoeira?" (Einstein): nós somos esse rato. Queremos ser razoáveis? Quem não quer a paz entre os povos, mas constrói armadilhas-impérios (seja os EUA, a Rússia ou a China) não é apenas antidemocrático, mas anti-humanitário, independentemente de como ele se considere. A perspectiva justa, essencial para nós, é a da "Constituinte Terra". Essa perspectiva, a única possibilidade e promessa de paz, é impedida e violada por todos os grandes impérios, desde os mais armados e semeadores de armas, até os minúsculos tacanhos nacionalismos. Se ao menos fosse só Putin o violador da lei da paz mundial! Obrigação de todos, para sobreviver, é a lei da vida: viver juntos, na diferença.

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