25 Mai 2023
O jornal Corriere dela Sera prospecta um conflito entre "o Ocidente e o resto do mundo". Duas partidas na guerra ucraniana. Diabólica Merkel, Fera Putin. O "laço" dos acordos de Minsk. Voltar a uma dissuasão "poderosa e credível". "Conter" a opinião pública.
Publicamos o artigo de Angelo Panebianco, professor especialista em política internacional, no "Corriere della Sera" de 22 de maio intitulado "Paz e defesa. A relação entre o Ocidente e o resto do mundo. Jogo duplo na Europa”.
O artigo é reproduzido por Chiesa di tutti Chiesa dei poveri, 24-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A cúpula do G7 no Japão foi principalmente uma constatação da situação. Registrou as mudanças radicais que estão ocorrendo já há tempo na relação entre the West and the Rest, entre o Ocidente e o resto do mundo. Fechado o parêntese, que durou apenas poucas décadas, após o fim da Guerra Fria, do indiscutível domínio dos Estados Unidos, todos nós temos que novamente acertar as contas com a tradicional e acirrada competição entre as grandes potências. Como sempre foi.
Existe a vontade da China de reescrever as regras da convivência internacional em coerência com seu agora alcançado status de superpotência. Até mesmo usando a força (Taiwan) se o considerar necessário. E existe o desafio russo ao Ocidente (Ucrânia). Pode-se dizer que no caso dos europeus, acostumados, graças à proteção estadunidense, a uma longa paz, uma paz que dura desde o fim da Segunda Guerra Mundial, não teria havido despertar, nenhuma constatação da situação, sem a agressão contra a Ucrânia. Em 24 de fevereiro de 2022 (início da invasão russa), os europeus descobriram repentinamente que haviam acordado naquela manhã em um novo mundo.
Nada demonstra mais eficazmente a mudança de percepções e de juízo por parte dos europeus do que o caso Angela Merkel. Falar sobre isso ajuda a entender quais são os problemas que os europeus devem enfrentar hoje.
Podemos resumir com uma fórmula a parábola da ex-chanceler alemã: de “santa agora” a “Merkel quem?”. Vocês se lembram? Tanto quando estava no poder como, mais ainda, quando o deixou, Angela Merkel foi celebrada por muitos europeus (os italianos à frente) como uma das maiores estadistas do século, uma líder que, durante muitos anos, havia guiado com sabedoria não apenas a Alemanha, mas também a União Europeia como um todo. Mas a sua tão celebrada estatura política, a sua grande reputação, caíram aos pedaços quando Putin iniciou sua invasão da Ucrânia.
De repente, entendeu-se aquilo que, culpadamente, não se havia entendido antes: se abraçares uma fera (como Merkel fez com Putin) na tentativa de amansá-la, mais cedo ou mais tarde ela te devorará. A política de Merkel em relação à Rússia ajuda a entender qual foi a verdadeira "culpa" do Ocidente, sua verdadeira responsabilidade, na guerra da Ucrânia.
Segundo os teóricos dos dois imperialismos equivalentes (russo e estadunidense), é a OTAN, com sua política de expansão para o Leste, a causa da guerra na Ucrânia. Mas a culpa do Ocidente (que existe) é bem diferente, é aquela de não ter implementado a tempo as medidas dissuasivas que talvez poderiam ter desencorajado o ressurgimento do imperialismo russo: não é abraçando-o, mas brandindo um grosso bastão na sua cara, que se pode impedir uma besta de te morder. Merkel não foi a única responsável.
A maior responsabilidade, é claro, coube aos Estados Unidos. E também a outros europeus, como franceses e italianos, fizeram sua parte contribuindo para o desastre. Mas Merkel, precisamente por ser a chefe do mais poderoso estado europeu, desempenhou um papel decisivo. Em nada perturbada (como outros europeus) pela agressão de 2008 contra a Geórgia, Merkel optou por não ver o que a Rússia estava preparando para o mundo.
E perseverou (diabolicamente) quando, em 2014, Putin invadiu o Donbass e tomou a Crimeia. Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, uma grande potência violava o tabu em que se baseava a paz na Europa (o tabu segundo o qual as fronteiras só podem ser alteradas consensualmente), mas Merkel não mudou nem um milímetro a sua atitude em relação à Rússia. Em conluio com seu amigo Putin, colocou em volta do pescoço de uma Ucrânia prostrada o laço chamado "Acordos de Minsk".
Além disso, embora fingisse não ver nem ouvir, sob seu governo, depois de 2014, a dependência da Alemanha do gás russo aumentou em vez de diminuir. Dando assim a Putin a sensação de poder impor aos europeus qualquer uma de suas decisões por meio de chantagem energética. É verdade: a Itália também fez as mesmas coisas, mas é evidente que se a Alemanha tivesse mudado sua política, os italianos teriam que se adequar.
É esse acúmulo de erros que explica por que a opinião geral sobre Angela Merkel mudou tão abruptamente. A ex-chanceler nos deixou (de forma totalmente involuntária) uma lição sobre o que não se pode e não se deve fazer.
Na Ucrânia, duas partidas estão sendo disputadas ao mesmo tempo. A primeira obviamente diz respeito ao destino daquele país. O apoio ocidental é vital para ajudar os ucranianos a libertar seu território do invasor. A segunda partida, igualmente vital, para nós e para a paz na Europa, diz respeito à necessidade de criar precisamente aquilo que faltou e que explica a invasão: um sistema de dissuasão tão poderoso e sobretudo tão credível a ponto de inibir futuras tentativas russas de voltar a questionar as fronteiras europeias. Na consciência, que todos deveriam ter neste momento, que aquele é o único caminho disponível para evitar uma guerra geral na Europa.
Mas o fato de um sistema de dissuasão eficaz poder ser reconstituído e ter condições de durar no tempo depende não apenas do resultado da guerra na Ucrânia, mas também da determinação com que os ocidentais saberão apoiá-lo. Serão as orientações que prevalecerão em nossas democracias que decidirão se conseguirão ou não defender a paz com as medidas apropriadas. A opinião pública está dividida, tanto nos EUA como na Europa, sobre a Ucrânia.
Que posição os Estados Unidos assumirão se os republicanos vencerem as próximas eleições presidenciais? Até quando será possível na Europa conter as pressões daquela parte da opinião pública (na Itália é muito forte) que assumiu, adaptando-a aos novos tempos (pós-comunistas), o velho lema “melhor vermelhos que mortos”? É aquela parte da opinião pública para a qual o que acontece na Ucrânia não nos diz respeito, devemos cuidar da nossa vida, não devemos arriscar que Putin também desconte em nós. São orientações generalizadas que minorias politizadas, antiestadunidenses mais que pró-Putin, tentam explorar para impor o fim do apoio europeu à Ucrânia.
A paz na Europa depende da capacidade de estadunidenses e europeus resistirem aos cantos das sereias daqueles que, para viver em paz, gostariam de nos tornar inermes, indefesos. A história de Angela Merkel ensina: à distância, não são as escolhas que pareciam ser as mais populares no momento aquelas que decretam a grandeza de um líder. São as escolhas certas.
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O horror próximo vindouro. Artigo de Angelo Panebianco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU