27 Abril 2023
Sandra Myrna Díaz é uma das referências mundiais em biodiversidade e mudança climática. Em 2019, a estudiosa argentina recebeu o Prêmio Princesa das Astúrias de Pesquisa, justamente por suas contribuições pioneiras no campo da biologia das plantas e sua importância na luta contra a mudança climática.
Cordobesa, é pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), da Universidade de Córdoba, membro da Academia de Ciências dos Estados Unidos e da Royal Society, e foi reconhecida pela revista Nature como uma das 10 pessoas mais relevantes da ciência de 2019, entre muitos títulos e reconhecimentos.
Díaz é uma das principais convidadas do Festival Porto de Ideias Antofagasta, que contempla dezenas de palestras e atividades em torno da ciência. Ela intitulou sua conferência assim: A natureza e a humanidade: Éden, botim ou jardim?. Antes de sua viagem ao Chile, respondeu às perguntas do La Tercera por e-mail.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 21-04-2023. A tradução é do Cepat.
Quando você ganhou o Prêmio Princesa das Astúrias, disse que a biodiversidade está em um ponto crítico. Qual é o grau de deterioração, nesses anos?
As avaliações mundiais só são feitas de tempos em tempos, porque levam muitíssimo tempo e esforço e porque, de qualquer modo, as tendências não costumam mudar drasticamente em alguns anos. Nessa oportunidade, acaba de ser apresentado o Relatório Global IPBES sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, do qual fui co-presidenta. Foi nisso que baseei meu discurso.
Este relatório continua sendo a fonte mais completa e atualizada a nível de panorama mundial. Cerca de um quarto das espécies de animais e plantas estão ameaçadas de extinção. No caso específico das plantas vasculares, um trabalho mais recente indica até 40% em risco. E a velocidade da extinção é a mais alta dos últimos 10 milhões de anos. Ou seja, são tendências realmente preocupantes.
De quem é a responsabilidade por isso?
Os mais importantes propulsores diretos da deterioração da natureza, nos últimos 50 anos, em nível mundial, são as mudanças no uso da terra e dos mares, a extração de organismos - por exemplo, pela caça, pesca e desmatamento seletivo -, a poluição, a mudança climática e as espécies exóticas invasoras.
A importância relativa de cada um desses fatores muda conforme a região e o grupo de organismos. Por exemplo, no Ártico e nas áreas antárticas, o mais importante foi o aquecimento climático, ao passo que nas zonas tropicais foi a mudança no uso da terra (concretamente, o avanço das fronteiras agropecuárias sobre os ecossistemas naturais). Nas ilhas, ao contrário, o principal fator foram as espécies exóticas invasoras.
Contudo, todos esses propulsores são, na realidade, a manifestação mais evidente, o braço executor, por assim dizer, das causas de fundo que são sociais, econômicas e políticas. Em última instância, a causa mais importante, persistente e de fundo da crise ambiental é o modelo dominante de apropriação da natureza.
Que mudanças precisam ser feitas em termos individuais? “Não podemos continuar consumindo assim”, você já disse. Que consumo é aceitável e como promovê-lo?
Efetivamente, o ritmo de consumo, particularmente dos setores e países com maior consumo, não pode continuar assim. É incompatível com um futuro melhor e mais justo para toda a vida no planeta, humana e não humana. Individualmente, cada pessoa, particularmente no caso dos setores de nível econômico médio-alto, pode se perguntar o que entre tudo o que consome é realmente imprescindível e qual é o custo, em termos de danos ao meio ambiente e a outras pessoas, de seu consumo de roupas, comida, energia, recreação etc.
Contudo, eu não gostaria que se pense que a questão do consumo obsceno (aquele consumo desnecessário, de luxo, que tem um custo muito alto em termos ecológicos e de sofrimento humano) é apenas uma questão individual. Todo o modelo econômico, todo o modelo social dominante em quase todo o mundo, impulsiona o consumo acelerado, a obsolescência. A vida de outras pessoas e a vida não humana também são consumidas como parte do processo. No fundo, é esse modelo que deve ser mudado.
É claro, também é possível avançar rumo à “desmaterialização do consumo”, o que não quer dizer desaparecer no ar como em uma série de ficção científica antiquada, mas que se continue consumindo, mas a um custo menor em termos de materiais, energia e resíduos. Por exemplo, continuar percorrendo as mesmas distâncias, mas em automóveis com motores mais eficientes, menos poluentes e utilizando combustíveis renováveis. Mas, em última instância, a “desmaterialização” tem um limite e, além disso, existe o que os economistas chamam de rebound effect, que diz que quando algo é percebido como mais barato e mais eficiente, as pessoas simplesmente consomem mais…
Qual é a solução?
Então, a única solução de fundo é uma cultura onde a ideia de que se tem que consumir para ser feliz, para ter sucesso, não esteja tão instalada. Onde o socialmente desejável seja não devorar (física ou metaforicamente) tudo o que se pode pagar, mas ficar com apenas o necessário, para que todas as pessoas tenham tudo o que precisam. Onde a experiência de compartilhar, perceber, pensar, criar e ajudar seja valorizada acima da de consumir.
Parece muito idealista, mas, na realidade, é muito realista. Ou ao menos é muito mais realista do que as promessas de que podemos continuar consumindo cada vez mais e que alcançará a todos. Nos últimos dois séculos, houve várias mudanças culturais que pareciam impensáveis e, no entanto, ocorreram.
Há mais de um milhão de espécies ameaçadas de extinção. Como não se deprimir e seguir em frente tentando protegê-las?
A extinção não é inevitável, é um risco. Depende diretamente de nós se esse risco se transforma em uma sombria realidade ou em um risco que evitamos. Por isso, a questão não (deve) levar à paralisia. Mais do que se preocupar, é preciso se ocupar, como diz o ditado. Existem muitas formas de se ocupar e existem formas de se ocupar em conformidade com todas as pessoas: cientistas, educadores, profissionais da saúde, organizações da sociedade civil, funcionários de governo, empresários privados...
O importante é não ficar em um canto esperando que alguém, sabe-se lá quem, faça algo. Nisto, a sociedade civil tem um papel dinamizador insubstituível. É o que temos visto, em parte, com o aquecimento climático. Tomara que também aconteça, em breve, com a defesa da natureza e de nosso lugar nela.
Por que as espécies vegetais reagem de maneira diferente das espécies animais? Qual é a dificuldade das diferentes espécies em se adaptar à nova realidade climática?
Na verdade, não se pode falar de uma diferença universal sobre como reagem plantas versus animais, nem mesmo no que parece óbvio, que é a capacidade de movimento. Digo isto porque as sementes das plantas se movem, às vezes, por grandes distâncias e, por outro lado, os animais, embora possam se mover, não podem migrar, caso suas fontes de alimento, que podem ser plantas, não migram com a rapidez suficiente.
Sim, podemos ver claramente que nem todos os “estilos” de ser planta ou animal estão indo igualmente bem. Claramente, organismos grandes, que demoram muito para atingir a maturidade sexual, têm poucos descendentes e que são muito mais “conservadores e sóbrios”, sejam plantas ou animais, estão se saindo pior em nossa companhia do que os que possuem características opostas.
Nesse sentido, estamos contribuindo para uma grande homogeneização do mundo vivo, algo que alguns chamam de “a grande batedeira”, transportando certos organismos pelo mundo, de forma voluntária ou acidental, e assim fazendo com que as comunidades biológicas de lugares diferentes se pareçam cada vez mais.
Quais tipos de espécies sobreviverão a esta catástrofe climática e por quê? E os humanos, que chances têm nesse cenário?
Gostaria de destacar que eu não vejo a crise da biodiversidade, a crise do aquecimento climático e a crise da crescente desigualdade social (sendo uma de suas manifestações as migrações climáticas) como questões separadas. São diferentes sintomas do mesmo modelo de apropriação que mencionei. Parece-me que mais do que ver a questão como um cataclismo inevitável que vem do céu, é preciso pensá-la como algo em que temos muitas possibilidades de decidir qual é o próximo capítulo.
Certamente, não poderemos salvar todas as espécies. Lamentavelmente, todos os cenários mostram que, mesmo que façamos todo o “bem” daqui para frente, muitas se perderão pelos processos já desencadeados e que não podem ser detidos ou revertidos de um dia para o outro. Contudo, caso se implemente uma mudança profunda, sistêmica, transformadora, com suficiente celeridade, podemos salvar muitas espécies, resgatar muitos ecossistemas, manter muitas contribuições da natureza para a nossa vida humana.
Eu não acredito que estejamos diante de uma possível extinção do homo sapiens como entidade física, como espécie biológica. Mas, sim, diante da possibilidade concreta de que as próximas gerações tenham uma vida muito mais empobrecida, em todos os sentidos, em comparação com a que nós desfrutamos.
Com a Covid, a ciência esteve em glória e majestade: vacinas em tempo recorde que nos permitem voltar às nossas vidas. O que fazer para que sejam as ciências que ditem as medidas em matéria ambiental?
Na verdade, a ciência nunca dita as medidas. A ciência propõe, mas não tem o poder, a capacidade de agência, para que essas medidas sejam implementadas. No caso do Covid, uma capacidade extraordinária da comunidade científica de responder em tempo recorde se juntou com a decisão de todos os governos de priorizá-lo.
Não me surpreende muito o desempenho dos grupos de pesquisa e desenvolvimento, porque há muitos exemplos na história (nem todos em benefício da humanidade) em que o sistema científico agiu assim. Sempre foi um setor altamente criativo e disposto a trabalhar o que for preciso em prol de um objetivo.
Sim, surpreendeu-me que certos setores tenham continuado priorizando questões de patentes etc., enquanto tantas pessoas morriam. Eu pensei que naquele momento crucial todo mundo estaria à altura das circunstâncias, mas não foi assim. Houve setores heroicos, como as equipes de saúde, (mas) outros, como os interesses associados às patentes, continuaram com os seus modelos de colocar o lucro acima de tudo, aconteça o que acontecer. Assim, muitas vidas se perderam, muitas que provavelmente poderiam ter sido salvas com outra política, porque a disponibilidade de vacinas em si não era o problema.
E no caso da biodiversidade?
No caso da biodiversidade, o conhecimento científico está sobre a mesa. Novamente, a comunidade de pesquisa trabalhou incansavelmente, nos últimos anos, em muitos casos de forma voluntária, para produzi-la, juntá-la de forma que seja significativa e relevante. E a aproximamos dos níveis de decisão e das organizações da sociedade civil, incluindo a Cúpula da Biodiversidade de Kunming-Montreal, encerrada no final de 2022, da qual participaram a grande maioria dos governos do mundo.
Agora, penso que o foco está em que setores suficientes da sociedade, com poder suficiente, internalizem como a natureza é crucial para o bem-estar de todos os humanos e defendam o direito de ter um futuro com ela. Se isso não for levantado como bandeira por atores sociais suficientes, as recomendações da comunidade científica continuarão sendo simplesmente informações.
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“Estamos contribuindo para uma grande homogeneização do mundo vivo”. Entrevista com Sandra Myrna Díaz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU