25 Abril 2023
O recente entusiasmo em torno do ChatGPT reavivou o eterno debate sobre o fim iminente do trabalho humano, substituído pelas inteligências artificiais e robôs. Para o sociólogo Antonio Casilli, autor de En attendant les robots: Enquête sur le travail du clic (Esperando os robôs: pesquisa sobre o trabalho do clique, 2019), esses anúncios são, acima de tudo, um discurso teleológico que venera excessivamente o progresso e os slogans mercadológicos. Tendo estudado detalhadamente o funcionamento concreto dessas ferramentas digitais, mostra o quanto elas dependem do trabalho humano, geralmente gratuito ou muito mal remunerado e reconhecido. Mais do que o desaparecimento do trabalho, devemos temer, segundo ele, uma maior precarização e atomização do mesmo.
A entrevista é de Baptiste Laheurte, publicada por LVSL, 12-04-2023. A tradução é do Cepat.
Os meios de comunicação especulam com regularidade sobre o fim próximo, constantemente adiado, do trabalho humano. Por exemplo, propagando o estudo The future of employment: How susceptible are jobs to computerisation? (O futuro do emprego: Quão suscetíveis à computadorização estão os trabalhos?), que propõe que 47% dos empregos são passíveis de serem automatizados. Como o título do seu livro parece indicar (En attendant les robots), você não compartilha dessa análise. Por quê?
Para começar, o título não é meu. Era para ser apenas um dos capítulos deste livro, neste caso o último. Este título faz referência a duas grandes obras: por um lado, a poesia de Konstantinos Kavafis Waiting for the Barbarians e, por outro, a peça de Samuel Beckett Esperando Godot (Companhia das Letras), duas grandes obras do século XX em que se evoca uma ameaça que nunca acontece. Trata-se de uma presença transcendente que explica a ambiguidade que hoje se mantém sobre este tipo de automatização que ora esperamos com impaciência, ora com medo, mas que acaba sempre por ser rejeitada.
Eu mesmo, na juventude, fui brindado com ondas de retórica sobre o fim do trabalho, especialmente através da obra O fim dos empregos, de Jeremy Rifkin (1995), que anunciava o mesmo que o estudo de (Carl Benedikt) Frey e (Michael) Osborne em The future of employment. A mensagem consistia em dizer que a automatização prevista seria tamanha que um grande número de empregos logo desapareceria, segundo uma lógica de substituição. Mas se estivéssemos diante de uma pessoa que tivesse vivido, por exemplo, desde o início do século XIX, ela poderia ter testemunhado uma retórica e uma profecia comparáveis, porque não tivemos que esperar pelas inteligências artificiais para nos depararmos com esse tipo de anúncio.
Este tipo de comunicação destina-se sobretudo aos investidores, que dispõem de recursos materiais e de uma imaginação constantemente requerida. O investidor é uma pessoa que deve, como dizia Keynes, submeter-se ao “espírito animal”, destacar-se e segui-lo numa espécie de busca xamânica. Por outro lado, esse discurso também se dirige a uma força de trabalho que precisa ser disciplinada. Nesse contexto, a ameaça de uma grande substituição por robôs é uma maneira de garantir a disciplina, trazendo-os de volta a uma condição puramente maquínica, a um trabalho sem qualidade, sem talento, sem competências. É, portanto, uma maneira de depreciar esse trabalho e demonstrar sua inutilidade quando, de fato, é um trabalho necessário.
É concentrando-me nesse trabalho vivo necessário que alimenta a nova onda de inovação que surge com as inteligências artificiais no início do século XXI e mostrando a “essencialidade” (ou seja, o fato de requererem o trabalho humano, nota do editor) dessas profissões dos dados, que me esforço para mostrar que a inovação não é necessariamente destruidora do trabalho. Ao contrário, ela desestrutura o emprego – ou, em todo caso, a versão formalizada e protegida do trabalho, que deixa de ser um trabalho enquadrado nos princípios estabelecidos pelas grandes instituições internacionais como a OIT. Estes avanços tecnológicos tornam o trabalho cada vez mais informal, precário, sujeito a um conjunto de variabilidades e flutuações que respondem tanto ao mercado clássico como a um novo tipo de mercado, o das plataformas, que têm flutuações próprias, devido a lógicas menos econômicas do que algorítmicas.
No que você menciona justamente sobre a desestruturação do trabalho, ao falar do “trabalho digital”, muitas vezes nos referimos aos trabalhadores uberizados submetidos ao capitalismo de plataforma. Mas você também lembra em seu livro que existem outros tipos de “trabalhadores do clique”. Quais?
O que estou tentando fazer neste livro é tomar como ponto de partida o trabalho de plataforma visível que diz respeito às profissões da logística, dos passaportes, da mobilidade em geral. Às vezes, isso diz respeito às profissões dos serviços pessoais, como os “cuidados” que cuidam de pessoas ou cuidam de tarefas domésticas, etc. Tudo isso faz parte da primeira família de profissões às vezes chamadas de “uberizadas”. É um termo que Maurice Levy, CEO da Publicis, grupo francês de mídia, escolheu e que se impôs sobre os outros, atribuindo uma marca a um fenômeno social.
Mas eu me esforço a dizer: “Procuremos também em outro lugar”. O trabalho de plataforma visível, os novos trabalhos do clique ou do algoritmo são apenas a ponta do iceberg. Todo o resto é composto por trabalhadores que estão abaixo da superfície da automação. Existem duas famílias principais sobre as quais se concentra a parte central deste livro: por um lado, o número realmente grande de pessoas que, em todos os lugares, preparam, verificam e por vezes imitam as inteligências artificiais – estes são os anotadores de dados, as pessoas que geram informações para treinar os algoritmos ou para conduzir a inteligência artificial.
Na continuidade deste, há um trabalho cada vez menos visto, conhecido, reconhecido e remunerado, tão informal que quase se torna um trabalho de voluntários ou mesmo de usuários-amadores, como cada um e uma de nós o é em um momento ou outro de sua vida e de seu dia. Por exemplo, o fato de utilizar um motor de busca melhorando a qualidade dos resultados, como acontece sempre que utilizamos o Google, ou quando nos rebelamos contra uma inteligência artificial como o ChatGPT melhorando ao mesmo tempo a qualidade das suas respostas. Há, portanto, uma continuidade entre as pessoas que não são pagas para fazer cliques, para melhorar conteúdos e serviços algorítmicos, e os trabalhadores de cliques de países emergentes ou de baixa renda que geralmente recebem 0,001 centavo de dólar por tarefa. No papel, a diferença é muito pequena, mas é importante sublinhá-la.
Para retomar os termos que você usa no livro, você distingue três formas de “trabalho digital”. O trabalho de pequenas mãos do digital, ou seja, o trabalho sob demanda (prestação de pequenas intervenções como Uber, Deliveroo, etc.); o microtrabalho, que dá suporte aos algoritmos por meio de tarefas padronizadas de ligação de dados, e o trabalho social em rede, que é a participação dos usuários na produção de valor. Em linha com o taylorismo, essas novas tarefas testemunham uma nova organização do trabalho que não é abolida pela tecnologia digital, mas simplesmente fracionada e descentralizada em grau superior?
Sim, você resumiu bem as três famílias de trabalho, mas ainda podemos fazer um esforço adicional para caracterizar essa atividade da qual estamos falando. Para qualificar esse “trabalho digital”, podemos ainda usar dois outros adjetivos. É um trabalho “datificado” e “por tarefa”. “Datificado” significa que produz dados e que ele próprio é produzido pelos dados. “Por tarefa”quer dizer atomizado, segmentado em pequenas tarefas. Para tornar os trabalhadores intercambiáveis, é necessário garantir que a atividade humana seja padronizada e reduzida ao seu mínimo; sua unidade mínima é então o clique.
Estamos aqui diante de uma continuação do taylorismo? A resposta é um pouco complicada porque o taylorismo, como o conhecemos historicamente, deu-se sinteticamente graças à gestão científica e não à gestão algorítmica. Há uma diferença importante entre essas duas concepções porque a definição de Taylor era a de um trabalho planejado, com especificações para pessoas intermediárias, depois executantes e trabalhadores. Havia uma cadeia hierárquica e uma forma de organizar esse trabalho por prazos precisos: cada semana, cada dia, cada mês, cada ano.
Tratava-se, portanto, de um trabalho planejado, enquanto o trabalho das plataformas que servem para produzir essas inteligências artificiais é um trabalho just-in-time. Isso significa que as formas de associar um executor e uma tarefa passam antes por um modelo matemático que é o algoritmo que faz a correspondência entre um ser humano e um conteúdo (ex.: qual piloto cuidará de qual corrida). Na medida em que essa lógica é diferente, ela também muda o equilíbrio político a que o taylorismo tinha levado, que às vezes resumimos na economia do fordismo-taylorismo que se baseia na produção em massa, que, por sua vez, produz para mercados de consumo de massa.
Aí nos deparamos com uma organização mais complicada e com micromercados, nichos de mercado que se realizam ad hoc, criados pelo próprio algoritmo. Finalmente, o tipo de proteção social que acompanhava o fordismo-taylorismo foi completamente abandonado, porque não estamos em uma situação em que temos que garantir um salário estável para que esses funcionários possam se dar ao luxo de consumir a própria produção de sua própria fábrica ou empresa. Hoje, não cabe ao Uber dar a alguém dinheiro suficiente para comprar produtos ou serviços Uber.
Existe, de fato, uma separação total entre estes dois aspectos, o que leva à existência de um trabalho muito menos protegido, que oferece muito menos certeza quanto à sua própria existência e atividade e, por conseguinte, à sua remuneração. Além disso, gera menos proteção social do ponto de vista da segurança, da carreira, da formação, da aposentadoria e assim por diante. Tudo o que criou equilíbrio sociopolítico na segunda metade do século XX – pelo menos nos países do Norte – é hoje abandonado e as plataformas que produzem a inteligência artificial e que se baseiam neste conceito do “digital labour” acabam por ser a realização e o acabamento final do ideal neoliberal de cada um por si e do trabalho para ninguém.
Em seu livro, você menciona tarefas como a incorporação de dados nas IA, a separação de duplicatas, a vinculação de recomendações e assim por diante. Este é um trabalho que não põe em jogo diretamente as forças do trabalhador, mas antes qualidades cognitivas como a faculdade de discernimento, julgamento ou de discriminação. Além disso, estamos lidando com pessoas que são individualizadas pelo simples fato de se tratar de um trabalho que é feito na maioria das vezes sozinho, em frente a uma tela de computador. Consequentemente, diante desta mudança de local de trabalho, desta atomização do trabalho e pelo fato das faculdades mobilizadas serem de ordem cognitiva, isto é para você o sinal de um novo proletariado de tipo cognitivo ou digital?
Eu diria que há claramente a formação de uma nova subjetividade política, que podemos chamar de “novo proletariado”. No final do livro, faço um esforço para estudar até que ponto podemos falar de classe, mas minha resposta é bastante duvidosa. Por enquanto, insisto muito no fato de que a novidade apresentada, por exemplo, pelo microtrabalho plataformizado, ou seja, pessoas que se conectam a aplicativos especializados onde realizam microtarefas remuneradas por peça, é um caso de freelancer extremo, porque é extremamente fragmentado. As estimativas de nossos colegas da Oxford mal chegam em média a dois dólares por hora; mesmo que não tenham contrato horário, mas sejam pagos por peça.
Já não se trabalha por projeto, embora ainda existam certas características do freelancer que se impôs desde a chegada do teletrabalho nos anos 1990. Trata-se então de um resultado, de uma versão levada ao extremo desta tendência. Resta, porém, outro elemento importante que nos permite complexificar ainda mais o que se pode dizer hoje sobre esse microtrabalho. Eu o caracterizo como um trabalho solitário, onde cada pessoa trabalha de [sua] casa, e também produzimos com a France Télévisions um documentário chamado Invisibles (Invisíveis) no qual entrevistamos microtrabalhadores. A primeira coisa que um deles nos disse foi: “Nunca encontrei as pessoas com as quais trabalho e muito menos as pessoas para as quais trabalho porque, simplesmente, me conecto a um site e preencho os formulários”.
Qual é a outra característica desse freelancer extremo? Bem, é que o trabalho está se deslocando para países onde a mão de obra é mais barata. Como os salários estão caindo e isso está virando uma espécie de corrida dos ratos, os países onde encontramos um maior número de microtrabalhadores não são necessariamente os países do Norte, mas os do Hemisfério Sul. Já falamos muito sobre a China e a Índia, mas são casos complexos em que você tem tantas startups grandes que agregam valor quanto microtrabalhadores. Há também países que se encontram em situação de extrema extração neocolonial.
Os países em que trabalhamos com minha equipe de pesquisa DiPLab são países da África de língua francesa e países da América Latina. Nos dois últimos anos, e na esteira deste livro, realizamos vários milhares de entrevistas e questionários com trabalhadores em países como Madagascar, Egito, Venezuela, México, Colômbia e Brasil. Neste último caso, muitas vezes encontramos verdadeiras fazendas de cliques responsáveis por falsos seguidores do Instagram ou visualizações do YouTube ou TikTok. É uma forma de enganar os algoritmos, embora seja a base da pirâmide, e essas pessoas podem trabalhar em casa.
Em outros contextos, no entanto, como em Madagascar ou no Egito, grandes mercados de offshoring (terceirização) foram criados. Ali, os microtrabalhadores não trabalham em casa, mas em vários lugares: alguns trabalham em casa, outros em um cybercafé, outros ainda vão sobrecarregar o wi-fi da universidade e alguns têm escritórios físicos com espaços abertos mais ou menos estruturados. São, pois, situações muito diferentes, às vezes com jovens dos subúrbios de Antananarivo (Madagascar) que organizam uma espécie de fábrica do clique com outros amigos do bairro e outras pessoas que usam uma casa com 120 trabalhadores, vinte em cada peça, realizando microtrabalhos. Essa atomização parece, portanto, afetar principalmente os países de renda mais alta. Em países de baixa renda, as formas de trabalho do clique são muito variadas, desde o escritório clássico até a plataforma.
Essa diversidade de trabalhadores do clique parece bastante sintomática de um ambiente digital que ainda seria relativamente uma área não abarcada pelo direito trabalhista na medida em que é um campo relativamente novo e descentralizado. Este trabalho é pouco reconhecido, muitas vezes ingrato, organizado de forma nebulosa, etc. É por causa dessa imprecisão que o capitalismo prospera nestes ambientes ou essa imprecisão é fruto da desregulamentação capitalista?
A questão da desregulamentação tem uma longa história e remonta à doutrina do laissez-faire do século XVII da qual a doutrina capitalista é herdeira. Trata-se principalmente de retirar um grande número de despesas, contribuições e impostos que pesam sobre as empresas e depois deixar que essas empresas obtenham lucros e os redistribuam aos seus investidores. Aqui, o problema é colocado em termos muito clássicos de acordo com a diferença na economia política entre lucros e salários. Em linhas gerais, essa desregulamentação resultou em um deslocamento significativo de recursos que faziam parte dos salários, a chamada “wage share”, a parcela dos salários, para os lucros.
Toda a retórica atual sobre os superlucros é sobre isso também; o aumento vertiginoso nas últimas décadas dos lucros e dividendos para os investidores e líderes empresariais. Por outro lado, assistimos a uma redução drástica do salário real, do poder de compra e, em geral, da massa salarial. Para reduzir essa folha de pagamento, ou demitimos pessoas – mas não podemos demitir todas – ou substituímos as pessoas bem pagas por pessoas menos bem pagas. Dessa forma, em paridade de mão de obra e quantidade de trabalho, acabamos pagando menos para a massa salarial.
O que estou tentando mostrar, junto com outros, é que não temos visto uma redução drástica do trabalho em termos de tempo de trabalho, mas sim uma redução drástica do trabalho pago e um aumento do trabalho não pago. Esta é a base desta economia de plataforma que cria competição entre os trabalhadores para baixar sua remuneração, pois o algoritmo vai favorecer aquele que faz a mesma tarefa por um preço menor, como vemos na entrega expressa. Isto é particularmente verdade desde a pandemia da Covid, com um grande número de novos inscritos nessas plataformas e uma queda drástica na remuneração além de uma reação interna de conflitividade sindical.
A mesma coisa, obviamente, também acontece nas chamadas plataformas de “conteúdo”, que se dizem “gratuitas” mas na verdade não são: às vezes você tem que pagar para estar lá e muitas vezes elas pagam pessoas que são ativas de uma forma ou de outra. O caso clássico é o da monetização de conteúdos, que se tornou um gesto já corriqueiro para poder existir em determinadas plataformas como Instagram, TikTok ou YouTube e ter presença real nelas. Isso significa que convivemos nos mesmos espaços de trabalho não remunerado, trabalho mal remunerado, trabalho microrremunerado e tudo isso gera uma redução gradativa da massa salarial para uma equivalência ou mesmo um aumento da produção em termos de conteúdo, informação, serviço, etc.
Para você, a desregulamentação é, portanto, o produto da estrutura e do seu funcionamento, e não é apenas o solo em que ela floresce, ainda que crie de fato um terreno propício para a sua própria perpetuação.
Absolutamente. Se olharmos para o lado das empresas, notamos que elas tendem a favorecer cada vez mais a redistribuição de grandes dividendos ao invés do reinvestimento para criar novos recursos, etc. Se olharmos então para o funcionamento das empresas, teremos surpresas por vezes amargas: durante a nossa pesquisa sobre o trabalho de plataforma, demo-nos conta do caos que domina ao nível da gestão desta força de trabalho na medida em que as plataformas não reconhecem que estes microtrabalhadores realizam tarefas importantes para a produção de valor da empresa e, portanto, não os incorporam. Portanto, não há “recursos humanos”. É, por exemplo, o caso do responsável pelas compras ou dos engenheiros que se encarregam de organizar a tubulação para a implementação do aprendizado de máquina.
Porém, não são pessoas formadas para gerir seres humanos, então causam desastres porque não sabem ouvir os problemas, não entendem que essas pessoas estão acostumadas a uma certa proteção do seu trabalho, ao conhecimento dos seus direitos, o que é bem normal. Temos, portanto, uma forte conflitualidade nestas empresas que não conseguem gerir a transição para a plataformização total.
No entanto, isso diz respeito não são apenas aos trabalhadores de cliques pagos: pela nossa presença virtual, fornecemos regularmente informações aos chamados sistemas “colaborativos” (cookies, avisos, avaliações, etc.), que implementam sistemas de gratificação afetiva (o que você chama de “produsuários”, uma contração de “produtor” e “usuário”). O funcionamento das plataformas digitais abole a separação entre trabalho e lazer?
É um pouco mais complexo do que isso, porque é como se as plataformas estivessem constantemente tentando aumentar ao máximo o volume tanto do trabalho como do prazer. O exemplo recente que me vem à mente é o ChatGPT. O ChatGPT é uma inteligência artificial que não tem nada de extraordinário, exceto o fato de fazer um bom trabalho ouvindo e respondendo a perguntas. É um sistema bastante clássico chamado “question answering” como modelo de aprendizado de máquina, mas cercado por uma espécie de aura de grande inovação, até mesmo de revolução. Isso obriga uma grande quantidade de pessoas a se conectarem ao ChatGPT, a interagirem com ele e ao mesmo tempo a melhorá-lo, já que cada resposta negativa ou próxima à placa do ChatGPT é sistematicamente denunciada por quem a recebe, o que melhora a inteligência artificial.
Há uma espécie de alegria perversa em jogar este jogo, em ser conduzido por um sistema que é dominado apenas pela lógica do marketing. Tudo isso é, na verdade, apenas uma operação de marketing da OpenIA, que conseguiu criar um entusiasmo oferecendo-lhe mão de obra em grande parte não remunerada para testar o ChatpGPT.
A dimensão do trabalho é facilmente compreendida se virmos a continuidade entre os usuários médios e não pagos do ChatGPT e, do outro lado, as pessoas que estão no back office do ChatGPT: um mês e pouco depois do lançamento desta inteligência artificial, descobrimos que a OpenIA vem recrutando sistematicamente microtrabalhadores quenianos há anos, que ganham US$ 1 por hora para selecionar respostas, marcar conteúdo, etc. Além disso, como o ChatGPT também é uma ferramenta usada para produzir código de computador, houve um recrutamento de pessoas pagas por tarefa de código durante o ano de 2020.
Esses trabalhadores de tarefa do código tiveram que produzir trechos de código, depurar códigos quando, às vezes, não tinham grandes competências informáticas para isso. Às vezes eram estudantes do primeiro ano ou pessoas que mal conseguiam reconhecer que nessa linha de código havia um parêntese que abria, mas não fechava e isso bastava para depurar a linha. Existe um continuum entre esses trabalhadores por tarefa do clique e nós, o que torna o ChatGPT acima de tudo uma empresa de trabalho humano vivo. Eu poderia ter dito a mesma coisa sobre o mecanismo de busca do Google, mas ele existe há um quarto de século, então é um pouco menos relevante.
Com esse entrelaçamento do produtor com o usuário que se formou, a ferramenta digital não parece mais ser uma extensão da mão humana. O trabalho humano tende, ao contrário, a se tornar uma extensão da ferramenta. Você identifica o trabalho digital como uma nova forma de dupla alienação, porque o trabalhador não está mais apenas sujeito à máquina (como já acontecia desde o taylorismo), mas desaparece atrás dela porque a alienação não diz mais respeito apenas ao trabalhador, mas também ao “produsuário” que nem mesmo é reconhecido como trabalhador?
Para resumir, os dois tipos de alienação de que você fala são uma alienação da visibilidade e uma alienação do estatuto, para ser breve. A questão da visibilidade é um problema importante, mas ao mesmo tempo é também um problema que nos permite identificar onde está o nó problemático. Há muito tempo as ciências sociais vêm se preocupando em reconhecer formas de trabalho invisíveis: é chamado de shadow work (trabalho de sombra), ghost work (trabalho fantasma), virtual work (trabalho virtual), etc., cada autor tem sua própria definição.
Eu procurei falar desse trabalho imperceptível, “inconspicuous labor”, que é uma forma de jogar com a noção de consumo conspícuo. É uma forma de dizer que se o nosso consumo se torna visível, aparentamos consumir, não nos exibimos para produzir e temos quase vergonha do que produzimos quando produzimos. É por isso que nós mesmos aderimos à retórica do “Não é um trabalho, é um prazer: não sou um jornalista precário, sou um blogueiro”, “Não sou uma animadora de TV que não consegue um emprego, sou uma influenciadora Twitch”.
É uma [maneira] de dizer a si mesmo de uma forma ou de outra que a precariedade é menos séria do que é. Não devemos subestimar o lado alienante disso, especialmente em termos de desenraizamento dos indivíduos de sua rede de solidariedade e amizade que normalmente é assegurada pelas atividades do trabalho formal. Não quero dizer que a vida com os colegas seja um paraíso, mas que o trabalho formal cria um quadro que permite situar o indivíduo numa rede de relações. O que se torna muito menos simples de fazer pelo trabalho do clique.
Há um vasto debate na minha disciplina sobre o enraizamento ou desenraizamento social dos trabalhadores das plataformas, que é sobre essa grande confusão que existe entre o lado produtivo e o lado reprodutivo das plataformas. Do lado produtivo, vemos isso toda vez que nos pedem para produzir um dado, mas às vezes essa injunção existe para estimular nosso prazer, nossas atitudes, nossos desejos, nossas vontades de nos destacar, de nos colocar em visibilidade, e assim por diante. Isso pode se transformar em lazer, em uma atividade social, e que está mais do lado da reprodução. Aí é de fato uma alienação que reforça essa confusão.
Disso decorre diretamente a segunda alienação que é a alienação do estatuto, ou seja, a dificuldade de obter o estatuto de trabalhador da reprodução social. Mas não é impossível: vejamos, por exemplo, as lutas feministas, que fizeram com que uma série de atividades antes consideradas puramente reprodutivas fossem incluídas na esfera do trabalho socialmente reconhecido, com remuneração e proteção social – trabalho doméstico, trabalho de cuidado, etc. No entanto, esta ruptura da alienação não acontece espontaneamente, pelo simples avanço do capitalismo para formas mais suaves e socialdemocratas, mas acontece ao longo e depois das lutas sociais.
O seu livro critica uma concepção teleológica do progresso tecnológico segundo a qual avançaríamos para o fim do trabalho. Como vislumbra o futuro do trabalho digital, especialmente com a recente explosão das plataformas de inteligência artificial?
Penso que devemos desconfiar dos efeitos dos anúncios da mídia. Estou muito bem situado para saber como se estrutura a fabricação mediática destes fenômenos sociotecnológicos com comunicados de imprensa de empresas que produzem um novo serviço, um novo aplicativo, uma nova inteligência artificial e de redações de jornais ou da imprensa que, para procurar produzir conteúdos, cedem ao prazer de se manifestar a favor desse tipo de argumento.
Não penso que haja uma explosão da inteligência artificial. Pelo contrário, noto que a inteligência artificial está ficando para trás, que há falhas de inteligência artificial, há áreas da inteligência artificial que falharam, por exemplo, a inteligência artificial de máquinas de aprendizado não supervisionadas a partir dos quais sempre anunciamos coisas maravilhosas que nunca acontecem. Ou temos alguns modismos, como o blockchain recentemente, que está sujeito a falhas repetidas a cada poucos meses. Não sou tecnofóbico, mas motivado por uma forma de ceticismo que nos permite ver a inovação onde ela realmente está. Ora, a inovação não está na inteligência artificial, que só avança com muitas dificuldades.
Por outro lado, houveram choques exógenos, como por exemplo a Covid, a crise sanitária, a crise econômica e a crise geopolítica que se seguiu. Esse encadeamento de desastres fez com que o mercado de trabalho de 2023 se apresentasse bem diferente em relação aos mercados de trabalho de anos anteriores: em 2019, o número de pessoas empregadas formalmente era maior do que em qualquer época anterior da humanidade, o que é óbvio, porque também existe um número maior de seres humanos.
Com a Covid, tivemos primeiro um momento de paralisação generalizada do comércio internacional e por vezes de crescimento significativo em alguns países em termos de desempenho industrial e, por outro lado, assistimos também ao chamado “triunfo do teletrabalho”, que não resultou em uma espécie de desmaterialização de todas as atividades, mas que nos ajudou a identificar algumas atividades que hoje chamamos de “essenciais” (logística, comércio, agroalimentar, saúde, etc.).
Mas algumas profissões do clique também se estabeleceram como ofícios essenciais, como, por exemplo, as entregas ou a moderação de conteúdos, todos os trabalhadores que foram classificados como “essenciais” pelas grandes empresas como Facebook e YouTube como prioritários para o retorno ao trabalho enquanto os outros foram discretamente colocados em teletrabalho durante dois anos e meio, antes de serem demitidos.
Isso é algo importante porque é difícil passar sem o trabalho de moderação, que, aliás, é difícil de fazer remotamente, porque é difícil moderar vídeos de decapitação quando atrás de você estão seus filhos, brincando ou assistindo a conteúdos realmente problemáticos, violentos e inapropriados enquanto comem à mesa. A médio prazo, não vejo esse trabalho desaparecer, vejo ele se tornando cada vez mais central, mas infelizmente também não o vejo se tornando mais valorizado e reconhecido.
Este é o cerne do conflito dos próximos anos, o reconhecimento desses trabalhadores. Vários sinais indicam que estamos enfrentando novos conflitos sociais no plano internacional, porque começamos a ter uma estruturação precisa e coerente dos trabalhadores e novas lutas sociais estão surgindo. Em particular, vemos muitas demandas aparecendo e que vão parar nos tribunais. Os microtrabalhadores não saem às ruas, mas os vemos muito nos tribunais, em ações coletivas ou de reconhecimento do seu trabalho. No Brasil, tivemos uma importante vitória contra uma plataforma de microtrabalho que foi obrigada a requalificar alguns milhares de trabalhadores como “empregados”.
Na base de todas essas atividades, os algoritmos baseiam-se essencialmente em uma abordagem positivista do mundo onde tudo é classificável, identificável e mensurável. Ao jogar luz sobre o trabalho dos trabalhadores por tarefa digitais que classificam e julgam com base nos algoritmos, você não revela a inadequação dessa visão positivista?
Tenho, se quiser, uma abordagem um pouco mais “irracionalista” do tecido social. Penso que a datificação é uma questão que tem uma longa história: tem as suas raízes no positivismo histórico do final do século XVIII, início do século XIX, ao nível da criação de uma atitude positivista, e ao mesmo tempo nos ancestrais daquilo que hoje chamamos de inteligência artificial. No novo livro em que estou trabalhando, estou interessado nas origens do trabalho do clique, por exemplo, o fato de que na França e em outros países europeus foram criadas naquela época oficinas de cálculo nas quais centenas de pessoas, muitas vezes nem todas eram matemáticas, gente que tinha outra formação (trabalhadores, professores e professoras muitas vezes), que calculavam um pouco de tudo: tábuas trigonométricas para o cadastro de Paris, as posições do Sol para o Observatório de Greenwich, etc.
Poderia ser interpretado como uma quantificação da realidade, mas esta é de um tipo particular porque não é apenas uma quantificação feita através das grandes instituições estatísticas estatais: censos, medições, etc. Não são geômetras ou estatísticos que operaram essa configuração em dados do mundo; muitas vezes, são pessoas cujo nome ou coordenadas não foram guardados, que calcularam por anos e anos a fio entidades matemáticas necessárias para criar um determinado tipo de máquina, por exemplo, máquinas de calcular, ou para observar certos fenômenos astronômicos, máquinas balísticas para armamento, etc. Foi um grande impulso para dados que não eram apenas quantificação, mas uma forma de criar conhecimento pré-calculado que é então usado para produzir máquinas que calculam.
É o mesmo princípio das inteligências artificiais de hoje. O ChatGPT é chamado de “GPT” porque o “P” significa “pré-treinado”. Tudo o que a máquina sabe fazer foi pré-calculado por seres humanos. Vemos aí reaparecer esse tipo de positivismo bastante particular porque não é um positivismo de grandes ideais, de grandes sistemas, mas um positivismo de microdados, de microtarefas, de microtrabalho, algo muito mais pé no chão e muito mais interessado em um resultado econômico bastante imediato. Se quiser, apesar dos grandes discursos de colonização do espaço e de reforma do espírito humano por certos bilionários do Vale do Silício, nos deparamos com pessoas que estão querendo juntar um dinheirinho para conseguir chegar ao final do mês, mesmo do lado dos bilionários.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A ameaça de uma grande substituição por robôs é uma maneira de garantir a disciplina”. Entrevista com Antonio Casilli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU