22 Abril 2023
Os gritos que vêm da Praça São Pedro, aquecida pelo primeiro calor primaveril europeu, não incomodam. Pelo contrário, parecem traduzir a imagem de uma Igreja que se projeta no mundo e recebe do mundo. O cardeal Lazarus You Heung-sik, prefeito do Dicastério para o Clero, expressa em sua própria postura essa mesma projeção. Sentado na ponta do sofá e debruçado sobre nós, fala como um rio transbordante com aquela paixão que só a autêntica alegria cristã sabe dar.
O cardeal conversou com Roberto Cetera e Francesco Cosentino, em entrevista publicada em L’Osservatore Romano, 18-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eminência...
Não, não, que eminência... Sou Lazarus, o pobre padre Lázaro, pobre porque eu também, como Lázaro, o amigo de Jesus, sou um ressuscitado, um agraciado.
Em que sentido “padre Lazarus”?
Veja, eu recebi o batismo, a nova vida, aos 16 anos. Minha família não era religiosa, e eu não sabia quase nada sobre o cristianismo. Mas fui matriculado em uma escola católica, simplesmente porque as escolas católicas estavam entre as melhores. Eu sei que o diretor do L’Osservatore Romano era professor de religião no Ensino Médio. Bem, digam a ele que a aula de religião foi decisiva na minha vida! Quantas coisas importantes um professor de religião pode fazer: pode até criar um cardeal!
Mas também há outra categoria de pessoas a quem devo muito: são as freiras. Eu nunca tinha conhecido uma freira antes disso. Depois, foram elas que me introduziram no cristianismo, mas sobretudo foram elas que cuidaram de mim como pessoa, como jovem ainda um pouco confuso e em busca de um caminho de vida. E fizeram isso com muita discrição e muito amor. Foram elas que me indicaram o caminho do seminário, pouco depois de eu ter recebido o batismo em 1966. Elas viram a minha vocação antes que eu a descobrisse. Ainda hoje sinto muita gratidão e afeto todas as vezes em que encontro uma freira. Eu gosto muito delas.
Depois você se tornou padre...
Sim. A experiência do seminário foi emocionante, do ponto de vista humano antes que doutrinal. Meus horizontes se ampliaram e, com eles, também muitos novos amigos. Acho que foi justamente pela beleza dessa minha experiência que depois me senti feliz por ser reitor do seminário e agora ao me ocupar da formação dos padres de todo o mundo. Mas vocês têm certeza de que a vida do pobre Lazarus interessa a alguém?
É claro que sim, porque a história de uma pessoa diz mais do que suas palavras...
Eu lhes conto a minha história essencialmente por um motivo. Ou seja, a minha história é um pouco paradigmática da difusão do catolicismo na Coreia. Como o Papa Francisco sublinhou quando foi à Coreia em agosto de 2014, a fé cristã não se afirmou por meio dos missionários provenientes do exterior, mas tem uma raiz autóctone, é o fruto das mentes e dos corações do próprio povo coreano, sedento de curiosidade intelectual e de busca da verdade. Assim como a minha história. A história de André Kim Taegon me inspirou quando jovem e ainda hoje é um exemplo de autêntica vida cristã. Ele deu a vida pelo Evangelho e pela Igreja, e eu sempre o considerei um exemplo, uma vida bem sucedida. Por isso, a todos os pontífices que eu tive a oportunidade de conhecer, eu repeti suas palavras, assumindo-as: “Estou pronto para dar a vida pela Igreja”.
Padre Lazarus, como você veio parar aqui?
Vocês têm que perguntar isso ao papa. Eu o conheci durante a Jornada da Juventude Asiática, à qual acompanhei 300 jovens coreanos. Não sei o que o pode tê-lo impressionado sobre o “pobre Lázaro”.
Tentemos imaginar, então. O cardeal “padre” Lazarus une de forma inusitada e surpreendente uma forte carga de empatia, substanciada por uma gentileza tipicamente oriental, com uma forte atitude decisória...
A cultura do meu país é permeada por um forte espírito hierárquico. É algo que herdamos do confucionismo, mas que também vive na cultura católica. Digamos que, lá entre nós, o voto de obediência não é tão pesado... Mas, voltando à pergunta sobre o porquê eu me encontro aqui, só posso lhe responder que toda a minha vida foi orientada pelas “sliding doors” que a graça, de modo misterioso e inescrutável, me deu. A escola católica, depois o batismo, depois as freiras de que eu lhes falei, depois o retorno ao seminário como reitor, depois ainda o episcopado e, por fim, aqui na frente desta janela que está voltada para esta incrível praça da colunata.
Gostaria de acrescentar outro momento “casual” que, sobretudo para a economia da nossa conversa, é muito importante: o do encontro com a Palavra. Um dia, encontrei um padre focolarino que me introduziu a Palavra de Deus de uma forma diferente da qual eu estava acostumado. Até então, eu olhava para o Evangelho na sua beleza, na sua moral, mas de longe, não encarnado na concretude do meu dia. Ele me contou como o Evangelho o ensinou a acolher sem preconceitos também aqueles que se opunham obstinadamente a ele. Entendi que a Palavra não deve ser lida, mas vivida. Para mim, esse foi um verdadeiro encontro com Jesus. E mudou radicalmente a minha vida. Porque viver como cristão nada mais é do que viver o Evangelho.
Hoje, tenho um grande exemplo nesse sentido: o Papa Francisco. Quando ele nos diz para voltarmos ao Evangelho, ele nos diz isso. O fim da cristandade exige que repensemos radicalmente a nossa presença no mundo, e a resposta do Papa Francisco é simplesmente esta: viver o Evangelho. Assim como ele. A “Igreja em saída”, o “hospital de campanha”, as “periferias do mundo”, “misericordiosos porque misericordiados”: todas as próprias palavras do Papa Francisco nada mais são do que a conjugação desse “retorno ao Evangelho”. A quem se pergunta sobre Francisco, eu digo: “Quer entender o papa? Leia o Evangelho!”. Quando prega, o Papa Francisco sempre mostra que, se colocarmos o amor que Jesus nos ensina nas pequenas coisas da vida cotidiana, essas coisas se tornam grandes, porque o amor gera amor, rompe a nossa solidão, produz boas relações e transforma a nossa vida, tornando-a uma vida boa.
Padre Lazarus, hoje você está à frente do dicastério que orienta quase meio milhão de presbíteros no mundo. Quem é o padre hoje?
É difícil descrever isso, porque o processo de inculturação do catolicismo nos cinco continentes é profundo e muitas vezes determina perfis muito diferentes de país para país. No fundo, permanece a sacramentalidade do ministério que evoca a ideia do sacerdócio que era de Jesus, mas há sensibilidades e interpretações muito variadas do papel. Quando eu falo de sacramentalidade, não me refiro a um status de exclusividade, mas sim à encarnação da lei do Amor na vida daquele que é chamado a Cristo. O paradigma do bom padre – onde quer que ele se encontre vivendo e atuando no mundo – é a lei do Amor, que supera qualquer outra norma moral ou canônica. O padre é chamado a orientar-se para o amor e só pode fazer isso eficazmente se ele mesmo viver no amor. O amor não é a busca de uma perfeição inibida pelo limite humano, mas a acolhida misericordiosa desse limite. Viver o Evangelho não é codificar uma legislação moral, mas fazer os outros felizes, pondo-os em contato com o amor infinito e misericordioso de Deus.
E isso efetivamente ocorre com o padre de hoje?
Bem, como eu dizia, existem situações muito diferentes. Exercer o ministério presbiteral no Ocidente secularizado, senão até descristianizado, não é a mesma coisa que ser padre na África ou na Ásia. Se, como eu dizia antes, o paradigma comum a todos é a conjugação da lei do Amor, existem algumas práticas que deveriam – e muitas vezes são – comuns em todas as partes do mundo. Penso sobretudo na centralidade da Palavra. Não só porque a Palavra abre o coração, mas também porque, se a Palavra não for posta no centro, prevalece a cultura, ficamos absorvidos pelas culturas de referência. E depois a oração. O padre que não reza constantemente acaba se secando interiormente. Torna-se funcionário do religioso. Não desenvolvemos o espírito alheio sem alimentar o próprio.
Digo isso não com a peremptoriedade de um superior, mas a partir da minha experiência pessoal. Não poderia fazer o que faço e ser quem sou se não começasse todos os dias com uma caminhada de oração pelos Jardins Vaticanos até a Nossa Senhora de Lourdes. E, depois, no fim, a vida comunitária. Um padre que vive em solidão ou anseia pela solidão não está bem formado. Sei bem que a vida comunitária é muitas vezes difícil, cheia de obstáculos e de incompreensões recíprocas. Mas são precisamente essas dificuldades que forjam o caráter de um bom padre, no sentido da capacidade de acolher, de ser paciente, de ser humilde, de ser aberto e compreensivo às tantas alteridades que o mundo oferece. A vida comunitária deve ser aberta também ao mundo. O presbítero deve ter boas e intensas relações com os leigos, com as famílias. Para não perder a dimensão do real. Esse é o verdadeiro antídoto para aquele perigo sempre iminente que é a autorreferencialidade.
Padre Lazarus, não acha que existe também um problema teológico, isto é, a superação de uma ideia ainda hoje difundida da suposta superioridade ontológica do padre?
Veja, eu sou um homem, um padre simples: não entro em questões teológicas que muitas vezes me parecem dissertações não imediatamente conectadas à vida em Cristo. Certamente é verdade que eu e vocês somos iguais aos olhos de Deus, que o sacramento que dá caráter é o batismo em Cristo. Mas também acho que, em uma religião como a nossa, que se baseia na “mediação” do Deus-Homem, a figura do sacerdote é analogamente a de um ministro que media céu e terra. Daquele cuja tarefa é abrir as portas. É o que nos diz Jesus: para eles eu consagro a mim mesmo, para que eles sejam consagrados para os outros. Por outro lado, o ministério do padre se substancia em uma Igreja laical forte: o padre deve sempre lembrar que o sacerdócio ministerial existe na medida em que existe o sacerdócio universal; e não vice-versa.
A valorização do sacerdócio batismal e da ministerialidade da Igreja também implica uma reavaliação do papel das mulheres...
Eu realmente ainda me surpreendo que essa ainda seja considerada uma exceção. Quem renasceu pelo Espírito Santo e, imerso na vida de Cristo, tornou-se seu discípulo deveria viver aquela comunhão que deriva do fato de ter se tornado uma nova criatura: não há judeu nem grego, nem livre nem escravo, diz São Paulo. Portanto, nem homem nem mulher. Às vezes ainda damos a impressão de sermos um universo machista, e, por esse motivo, muitas vezes a sociedade nos julga mal. Graças a Deus, porém, também graças aos caminhos teológicos e pastorais sobre esse tema e sobretudo graças aos impulsos e às escolhas do Papa Francisco, estamos a caminho. Temos que encontrar estradas boas e válidas para superar alguns aspectos canônicos sobre os papéis de governo e de responsabilidade, e, acima de tudo, vencer as nossas resistências pastorais quando se trata do envolvimento normal das mulheres na vida da Igreja. Pessoalmente, como também já contei em um livro, acho que o caminho se faz com gestos concretos: nomear mulheres para cargos de governo, nomear leitoras e acólitas. Eu havia incluído uma mulher na equipe do seminário e encorajo escolhas desse tipo.
O que você traz de sua experiência na Coreia para este novo cargo?
Há um ponto que eu trago muito fortemente no coração. A difusão do catolicismo na Coreia foi facilitada pelas reivindicações de liberdade que isso implicava em uma sociedade e em uma cultura enquadradas em uma rígida estratificação social. Uma sociedade, como dizíamos antes, muito hierárquica e marcada por um classismo excludente. O sentido de fraternidade independentemente de qualquer coisa, próprio do cristianismo, teve naquele contexto um efeito libertador, acolhido favoravelmente por grande parte da população.
Isso também explica por que a Igreja coreana tem um bom seguimento entre os jovens: os jovens amam a liberdade. Aqui no Ocidente, por sua vez, a Igreja é percebida como uma instituição normativa que discerne o bem do mal na moral, ou seja, essencialmente como uma estrutura conservadora. Pois bem, acho que a nova pastoral à qual o Papa Francisco nos convida deveria recuperar esse anseio de liberdade, apresentar com alegria o Evangelho como verdadeira fonte de verdadeira liberdade. A boa notícia não é uma lista de permissões e de proibições, mas Jesus ressuscitado: o túmulo vazio que anuncia que nunca mais morreremos. Existe felicidade maior? Voltar ao Evangelho significa, então, anunciar nada mais do que Jesus ressuscitado, primícias também da nossa ressurreição.
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Ser cristão é ser livre. Entrevista com o cardeal Lazarus You Heung-sik, prefeito do Dicastério para o Clero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU