17 Abril 2023
“O trabalho de Letícia Nascimento pode ser entendido como um grito arrebentando portas e janelas, exigindo um lugar na festa: travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, podem falar por si mesmas!”, escreve Megg Rayara Gomes de Oliveira, professora da Universidade Federal do Paraná, em resenha do livro Transfeminismo (Jandaíra, 2021).
Participantes da atividade do "Abrindo o Livro – Negritude e novos olhares"
Na noite de quinta-feira, 13 de abril, a obra de Letícia Nascimento foi o tema de abertura da iniciativa Abrindo o Livro – Negritude e novos olhares, que tem como objetivo estimular a leitura e o exercício do debate, lançando questionamentos e luzes sobre o universo das relações étnico-raciais e seus desafios transversais.
“Eu travesti, assumi que sou divina. E criei a mim mesma. Somos criadoras, crias de dores. A vida se faz frente à morte voraz.” (Letícia Carolina Pereira do Nascimento)
Nem sempre uma ladeira, nem sempre uma subida, mas nunca um terreno plano! Nunca uma linha reta como bem nos ensinou Xica Manicongo, considerada a primeira travesti a viver em áreas urbanas no Brasil, denunciada e presa pela visitação da inquisição da Igreja Católica em 1591, na cidade de Salvador – BA, então capital da colônia.
A experiência de vida de Xica se soma a de outras travestis e mulheres transexuais, que há séculos desenvolvem estratégias de resistência e enfrentamento a um CIStema pratiarcal, racista, machista, capacitista, classista e LGBTfóbico dando pistas importantes de como a teoria e prática transfeminista se articula e ganha materialidade.
Para o transfeminismo, curvas e encruzilhadas, não são obstáculos: são possibilidades de encontros e a partir da pergunta “E não posso ser eu uma mulher?” (2021, p. 20), Letícia Nascimento abre seu caminho à empreitada de debater o transfeminismo, sempre dialogando com outras travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, com formação acadêmica ou não. O que Letícia procura informar logo na introdução do livro é que este conceito é uma construção coletiva e emerge de espaços variados, inclusive das esquinas mal iluminadas das grandes cidades utilizadas como “territórios” de prostituição.
O transfeminismo seria, então, um encontro. Um encontro que se dá no próprio corpo “em meio a gritos diversos de dor, alegria, esperança, saudades, sonhos e esquecimentos”, fazendo de travestis e mulheres trans, a materialização da resistência.
Mais do que dividir as pautas e lutas feministas, esse conceito se coloca como um elemento adicional e contribui para ratificar a certeza de que as identidades femininas são construções sociais, rejeitando essencialismos e explicações de caráter biológico para o ser mulher.
Ao perguntar “e não posso ser eu uma mulher?”, Letícia Nascimento também lança outra questão: o feminino só pode habitar corpos brancos com vaginas?
Sussurros patologizantes tentam dizer que sim! Sussurros entre iguais, numa festa onde travestis e mulheres transexuais, especialmente negras, são exibidas em potes com formol.
Na primeira parte do livro, a autora discute conceito de gênero fazendo uso de uma base teórica nacional e estrangeira. “Em linhas gerais, ela faz uma síntese dos desdobramentos e disputas da categoria “gênero” a partir dos feminismos”, destacando o fato de que o feminismo hegemônico, ou seja, aquele produzido por e para mulheres brancas cisgêneras heterossexuais e de classe média, não seria capaz de abrigar a diversidade do ser mulher.
Em “Mulheres transexuais e travestis: the outsiders non sisters”, Letícia Nascimento se dedica a discutir, em tom de denúncia, o fato de que mulheres trans e travestis, negras e brancas, têm suas humanidades negadas, restando pouco ou nenhum espaço para elas em sociedades normalizadoras e normatizadoras como a brasileira. O termo outsider - forasteira - está presente nas reflexões de pesquisadoras importantes como bell hooks (2019), Simone de Beauvir (1970) e Grada Kilomba (2019), fornecem ferramentas teóricas importantes para que a autora afirme que mulheres transexuais e travestis são o "Outro do Outro do Outro", justamente por não se encaixarem nas normas de gênero binário que considera apenas a existência de mulheres e homens.
Finalmente, na página 68 a autora apresenta suas definições para o conceito de transfeminismo que vinha sendo cuidadosamente anunciado. O transfeminismo, então, seria “uma corrente teórica e política vinculada ao feminismo”, reunindo inúmeros feminismos e sujeitas.
Letícia Nascimento, ainda que concorde que posições divergentes possam ser benéficas, denuncia a pouca atenção dada à produção epistemológica de travestis e mulheres transexuais, uma vez que suas produções falam da sociedade como um todo e não apenas às suas próprias experiências.
Ao procurar localizar as origens do transfeminismo, a autora destaca a importância do ambiente virtual nesse processo.
Pesquisadoras travestis e transexuais, brasileiras e estrangeiras, fizeram uso de suas redes sociais, não apenas para demarcar politicamente suas posições enquanto ativistas, mas para formular e difundir teorias que hoje são compreendidas e estudadas como transfeministas.
Como parte dessa teoria, é fundamental destacar a importância atribuída ao conceito de cisgeneridade. E é exatamente isso que Letícia Nascimento faz quando discute “Cisgeneridade, despatologização e autodeterminação: nós por nós mesmas!” e chama a atenção para o fato de que pessoas cis também são resultantes de processos históricos e culturais, discursivamente construídas, não havendo possibilidade de naturalizar qualquer identidade. Dessa maneira, apresenta argumentos consistentes em defesa da despatologização das identidades travesti e transexual.
Participantes da atividade do "Abrindo o Livro – Negritude e novos olhares"
Na quinta parte do livro, Letícia insiste no direito à autodeterminação para travestis e mulheres transexuais, apoiando suas reflexões no conceito de performatividade proposto pela teórica estadunidense Judith Butler (2017), que defende a teoria de que o gênero não é algo dado, natural, mas processual e que precisa ser reiterado o tempo todo, inclusive entre as pessoas cisgêneras heterossexuais.
Por fim, em “Vidas trans* importam: transfeminicídio também é uma pauta feminista”, Letícia Nascimento apresenta dados alarmantes a respeito das múltiplas violências que incidem sobre travestis e mulheres transexuais no Brasil e propõe que o conceito de feminicídio considere a existência do transfeminicídio e assim ampliar um debate que muitas vezes ignora outras feminilidades.
Ao longo de todo o texto, Letícia Nascimento não perde de vista a importância de adotar uma postura interseccional e cobra a mesma atitude de ativistas e pesquisadoras, travestis, transexuais e cis, que devem levar em conta em suas reflexões, além do gênero e da identidade de gênero, questões de raça, classe, orientação sexual, geração, deficiência, área geográfica, dentre outros.
O trabalho de Letícia Nascimento pode ser entendido como um grito arrebentando portas e janelas, exigindo um lugar na festa: travestis e mulheres transexuais, negras e brancas, podem falar por si mesmas!
Nunca mais o silêncio em suas bocas. Nunca mais um ventríloquo na sala principal.
Vidas trans importam! Vozes trans importam!
É o transfeminismo ganhando forma!
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