02 Setembro 2015
Em 2011, a juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães, à época da 1ª Vara Criminal de Anápolis, em Goiás, tinha em mãos um caso de violência doméstica. O processo se referia a uma transexual agredida pelo ex-companheiro, que tentava afastá-lo de suas investidas. Magalhães se deparou com a falta de amparo legal para um caso do gênero. Por isso, recorreu à lei Maria da Penha, de proteção às mulheres e aplicou a legislação, criada em 2006. “O artigo é claro quando diz que tanto homens como mulheres são iguais. Não pode haver qualquer tipo de discriminação”, manifestou-se à época a juíza. “Independentemente de sua classe social, de sua raça, de sua orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana", descreveu na sentença, que proibiu o ex-companheiro de se aproximar da vítima.
A reportagem é de Marina Novaes e Marina Rossi, publicada pelo jornal El País, 31-08-2015.
Assim como no caso de Anápolis, alguns juízes no Brasil passaram a aplicar a Lei Maria da Penha em casos de violência doméstica que envolvem transexuais ou travestis, por reconhecer a vulnerabilidade das vítimas e entender que a legislação não se aplica apenas às mulheres cisgênero, termo adotado para descrever as mulheres que se identificam com o gênero que lhes é atribuído em seu nascimento, ao contrário das trans.
Um projeto de lei tenta deixar a legislação mais clara a favor da igualdade. Apresentado em outubro de 2014 pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), o PL 8032/2014 prevê a aplicação da Lei Maria da Penha "às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem como mulheres”. No último dia 17 de agosto, o texto obteve sua primeira vitória: a deputada Professora Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO), relatora da proposta na Comissão de Direitos Humanos, votou pela sua aprovação. Mas embora o projeto tramite com certa velocidade, ainda há algumas pedras no caminho até a sua aprovação, considerando o caráter ultraconservador da atual legislatura, que tem imposto derrotas expressivas a pautas progressistas.
"O quadro é muito adverso para esse tipo de pauta na Câmara hoje. Mas trata-se de uma proposta que corrige uma limitação da lei. É uma questão de amparar vítimas de violência, então estamos trabalhando muito para que ela passe", disse a deputada Jandira, ao EL PAÍS.
Não faltam argumentos para embasar a proposta. Um deles é o de que a inclusão dos termos transexuais e transgêneros não só ampliaria o direito das vítimas à proteção familiar, como ajudaria a diminuir o preconceito que muitas pessoas relatam sofrer nas delegacias quando procuram ajuda, embora a orientação da polícia seja pelo seu atendimento irrestrito.
"Recebemos muitas denúncias de pessoas que não foram atendidas adequadamente [nas delegacias], sejam relatos de recusa do atendimento ou da recusa de tratá-las pelo nome que não o de registro. A lei Maria da Penha já fala em gênero, mas talvez uma clarificação mais específica ajude nesse sentido, por não deixar o tema tão aberto a interpretações", avalia Vanessa Vieira, coordenadora do Núcleo de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública de São Paulo, que desde agosto busca formalmente informações com a polícia do Estado sobre o atendimento às pessoas trans. Para Larissa Barone, acadêmica de Direito e ativista feminista, autora do estudo sobre mulheres transexuais e a lei Maria da Penha, a inclusão dos termos na lei ajudaria a pôr fim à situação de "dupla vulnerabilidade" que se encontram as vítimas de violência doméstica dessa comunidade.
A travesti Valeryah Rodriguez, de 35 anos, conhece bem essa realidade. Embora nunca tenha sido vítima de um crime de ódio, como ocorre com tantas outras travestis e transexuais alvo de preconceito, foi agredida com socos e pontapés, espancada com uma panela de ferro e atingida com um botijão de gás pelo ex-companheiro, com quem conviveu por 10 anos. Nos quatro anos finais do relacionamento amoroso, pensou várias vezes que não sobreviveria aos espancamentos. Registrou oito boletins de ocorrência, mas não levou nenhum dos processos adiante, por temer pela vida do ex-marido, de quem sentia pena. "A violência que eu nunca sofri na rua eu sofri com o meu marido", diz.
Valeryah diz ter sido "maravilhosamente" atendida todas as vezes que procurou socorro em uma delegacia de Caieiras (município da Grande São Paulo), onde acabou se tornando conhecida. Mas nem sempre foi assim. Antes de encontrar amparo neste local, ela conta já ter sido alvo de deboche de policiais que, acionados para socorrê-la em sua casa, a ridicularizaram ao notarem que se tratava de uma travesti - pouco importando o fato de estar ferida e desesperada. Valeryah sobreviveu aos espancamentos e se separou do seu agressor. Hoje, é uma das beneficiadas pelo programa Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo, e recebe uma bolsa de estudos para completar o ensino fundamental. Sonha um dia se tornar assistente social.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, do Governo Federal, disse por meio de nota ser favorável à aplicação da Lei Maria da Penha para transexuais e transgêneros, endossando o projeto de lei em tramitação. "Quando a lei menciona que a proteção deve ser dada às mulheres, não restringe sua aplicação às mulheres cisgêneros, isto é, aquelas que se identificam com o gênero que lhe fora atribuído no momento de seu nascimento. É possível, portanto, que a Lei Maria da Penha seja aplicada para a proteção das mulheres transexuais e transgêneros".
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A luta das mulheres trans para serem amparadas pela Lei Maria da Penha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU