07 Março 2023
"O papel dos trabalhadores, intelectuais, artistas, educadores é aprender isso tudo para poder ter estratégias de design das regras que queremos para este grande jogo que é a nossa vida, no tabuleiro que é este planeta e as peças que são as pessoas, os animais e as plantas", escreve Carlos Seabra, escritor, editor de publicações e produtor de conteúdos de multimídia e internet, consultor e coordenador de projetos de tecnologia educacional, em artigo publicado por Outras Palavras, 03-03-2023.
Excelente ferramenta essa inteligência artificial do ChatGPT. Para quem raciocina e sabe o que quer dizer, é criativo, pesquisa e checa as informações, tem um mínimo de noção editorial e tem competência para fazer a curadoria do processo, é uma mão na roda, que otimiza demais o tempo de produção.
Nas mãos de incautos, incompetentes e inapetentes produzirá várias merdas bem sistematizadas porém não passando disso.
É preciso estudar e dominar esse bicho, pois há inúmeros desafios vindouros!
Desconhecer o que Big Data mais Internet das Coisas mais Inteligência Artificial farão cada vez mais é quase como achar que a máquina a vapor não mudaria as formas de produção.
Ou entendemos como esses algoritmos funcionam ou isso será controlado por aqueles que determinam as regras de funcionamento da sociedade. Uma recusa neoludita só atrasará a organização e a luta que são imperativos para levarmos adiante.
Na verdade a IA é apenas uma máquina de “psitacismo automático” e não uma “inteligência” artificial. Não há inteligência própria a não ser a dos engenheiros e programadores que desenvolvem os algoritmos e dos curadores que alimentam o banco de dados (com trilhões de palavras) e analisam e direcionam os comportamentos automatizados.
Antigamente haviam pessoas, e há relatos antropológicos disso entre vários agrupamentos humanos, que achavam que a máquina fotográfica lhes “roubaria a alma”. Hoje isso acontece com os que temem que a tal da artificial inteligência lhe roube o intelecto.
Isso fatalmente ocorrerá com inúmeros prestadores de serviços “intelectuais-braçais”, gente que faz tarefas cognitivas que possam ser automatizadas. Como a máquina a vapor fez com vários braços de operários, como os robôs físicos e de software estão a fazer em todos os campos da produção.
O que precisamos debater são as formas de controle dessas formas automatizadas de produzir, de aumentar a escala de ganhos, de concentrar cada vez mais riquezas e de espoliar e segregar inúmeros contingentes populacionais. Identificar como fazer a gestão democrática e transparente dos usos da Inteligência Artificial especialmente em conjunto com o Big Data, a enorme quantidade de dados sobre nós mesmos que permite que plataformas saibam mais sobre cada um do que sua própria família.
Um aspecto central disso, sem dúvida, é a discussão de como a riqueza socialmente produzida deve ser socialmente apropriada. Isso vale para tudo o que se tem inventado nas últimas centenas de anos, mas indubitavelmente vale mais do que nunca para as novas tecnologias.
Por outro lado, há gente achando que o ChatGPT é a nova Pitonisa de Delfos, outros temendo que seja um Minotauro ou uma Medeia.
Se as pessoas adoram consultar os astros para saber o que lhes está determinado, o que não se imaginaria para uma coisa como a tal da “Inteligência Artificial”? A grande e surpreendente capacidade de bem elaborar a escrita (mais que até vários profissionais que conhecemos) era o que faltava para fazer com que este psitacismo seja percebido e alardeado como uma “inteligência”.
Gente crédula sempre alimentou videntes e especialmente os novos “vendilhões do templo”. Nada mais natural que as pessoas comecem a buscar respostas em uma “IAmancia”, uma espécie de inteligência artificial divinatória.
Quando eu comecei a trabalhar com os usos da informática na educação (em 1984), muitos professores achavam ridículo ou perigoso demais o computador na escola. Quando começou a Internet eu já trabalhava com telemática usando BBS, Videotexto e tal, e o “perigo” era o copiar e colar. Agora é a Inteligência Artificial…
Os desafios não são apenas similares, mas muito maiores. Lev Landau já dizia que “o conhecimento é como uma esfera que à medida que vai ficando maior, vai tendo cada vez mais pontos de contato com o desconhecido”.
Essa visão revela que ainda há bastante a ser entendido sobre a IA e seus impactos. A alavanca não substituiu os braços, as rodas não eliminaram as pernas, a automação de algoritmos de texto não substituirá os raciocínios cerebrais, mas tudo isso potencializa nossas características humanas – até mesmo as que as desumanizam.
O grande perigo da IA não está nela mesma mas sim em como isso afetará os modos de produção e os mecanismos de acumulação progressivos de capital. Ficar preocupado com os “plágios” não dá conta do verdadeiro desafio para a sociedade, que é determinar políticas para a trilogia BigData + Internet das Coisas + Inteligência Artificial.
Quanto à educação, acho fantásticos os desafios que a IA nos traz pois acaba de vez com o psitacismo que acaba sendo hegemônico nos processos de pseudoaprendizado que em geral preponderam nas nossas escolas e na academia – e que obrigará a que repensemos de forma totalmente diferente como avaliar os processos de ensino-aprendizagem.
A excelente recursividade que a iteração dialogada e os resultados notáveis que alcança permitem manter diálogos “chatos”, perfeccionistas, que podem até dar certo prazer sádico na forma de solicitar as adequações, mostra as possibilidades do processo de interação criativa que faz do ChatGPT um excelente Sancho Pança para nossas quixotagens.
Uma pessoa até perderia a paciência com o processo, mas o ChatGPT é dotado de uma infinita placitude e obediência e nunca reclama (a não ser nos itens que eventualmente afetam sua área de restrições, definidas pelos algoritmos da curadoria do sistema).
Tenho feito muito isso: mando um texto meu e peço um resumo. Sugestões de copidesque. Listagem de tópicos ou palavras-chave. E mil outras coisas bem úteis.
E para usar para nos divertirmos um pouco? Veja que dá para colocá-lo em “modo RPG”, por exemplo: “A partir de agora, finja ser um jogo de aventura de texto, onde quando eu digitar algo, você responderá ao que acontece na história, então pode ser o diálogo do personagem, a ação de outro personagem ou qualquer outra coisa”.
“A configuração atual é um escritório bem surreal em termos de burocracia e procedimentos, algo no estilo Monty Python. Com um diretor bem malvado e aloprado, que tem uma secretária meio sedutora e cruel. O nome do meu personagem é Senhor Antenor, e minha personalidade é de um recatado e educado cavalheiro, seguidor de ordens porém com grande inquietude existencial, com inúmeras fantasias libertárias, tanto do ponto de vista político quanto emocional e comportamental. O ambiente de trabalho tem vários elementos modernos, muita tecnologia, porém com um cenário de escritório de um século atrás, com móveis e decoração pesada, retrato de alguns antepassados do diretor nas paredes, que parecem sempre vigiar os funcionários. O mundo também tem contornos surreais, tanto nas regras da economia, que fazem os mais ricos ficarem mais ricos, como nas regras de comportamento da sociedade, que têm valores conservadores mas, ao mesmo tempo, é extremamente imoral. A história é escrita em tempo presente, com uma perspectiva de primeira pessoa. Agora, me dê um breve resumo do mundo.”
Aí você vai interagindo com ele como em um Text Adventure Game, dialogando, introduzindo elementos novos, desconcertantes e tal. E ele vai sempre reagindo dentro do mundo e personalidade propostos.
A inteligência artificial não é um “monstro” (só se considerarmos que tratores, aviões ou computadores o sejam), mas sim uma ferramenta muito poderosa que a academia precisa o quanto antes aprender a usar.
Sem os devidos parâmetros de políticas de uso (que só são possíveis de serem elaboradas caso se compreenda o alcance da coisa), toda a sorte de usos indevidos poderão ser feitos, tanto por estudantes espertinhos quanto por professores despreparados, assim como por gestores despóticos etc.
A Inteligência Artificial, porém, precisa ser melhor estudada e controlada ainda pois sua utilização com a Big Data e a Internet das Coisas é que terá um alcance jamais visto em termos dos impactos na sociedade, na segurança pública, na medicina e na saúde, na produção, no poder, na educação e tudo o mais que pudermos imaginar.
Uma certeza eu tenho: se há um papel que será cada vez mais importante é o do EDITOR. Ele fará as perguntas, o “design do prompt” e a curadoria das respostas, com sua editoração.
A inteligência artificial poderá atrofiar nossas capacidades intelectuais? Acho que tanto quanto as alavancas atrofiaram nossos braços e as rodas nossas pernas. Pra quem sabe imaginar e se mexer são ferramentas para ir mais longe. Para os inertes e acomodados tudo leva à atrofia… O maior perigo é boa parte da postura de nossa intelectualidade, numa recusa “neoludita” de perceber os desafios que Big Data + AI + IoT nos trazem e a incapacidade de elaborar e implementar políticas públicas que controlem os poderosos efeitos para nossas vidas.
Com a sociedade da informação e do conhecimento tendo cada vez mais robôs, bigdatas e algoritmos, precisamos saber usar e direcionar as políticas para isso, senão a tendência natural é que eles sejam usados contra nós, a maioria dos seres humanos.
Todas essas tecnologias (desde a alavanca, depois a máquina a vapor e agora a automação) sempre fazem quem tem força, capital e conhecimento ficar mais poderoso e mais rico. E os que são espoliados, marginalizados, explorados e enganados, sê-lo-ão ainda mais. A menos que possamos determinar e executar políticas de apropriação social da riqueza socialmente produzida.
O papel dos trabalhadores, intelectuais, artistas, educadores é aprender isso tudo para poder ter estratégias de design das regras que queremos para este grande jogo que é a nossa vida, no tabuleiro que é este planeta e as peças que são as pessoas, os animais e as plantas.
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ChatGPT: nem monstro, nem tábua de salvação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU