01 Março 2023
Esta, sim, era uma bela carga residual. Vinte crianças, dois gêmeos, um recém-nascido, pelo menos 100 pessoas que morreram no mar a poucas braçadas da costa da Calábria, na Itália. Mas, de fato, pessoas de pouca importância.
O comentário é de Andrea Malaguti, jornalista italiano, publicado por La Stampa, 27-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Então, quem se importa? Quem se importa com o terror que tinham nos olhos quando ondas altas como arranha-céus quebraram seu barquinho de madeira podre e o turbilhão da corrente os sugou para o abismo, enquanto ofegavam, pediam ajuda, agarrando-se com inútil desespero aos últimos instante de sua brevíssima vida?
O que nos importam o frio, a escuridão, o medo que rastejava em suas barrigas, em seus olhos, em seus corações e os fez gritar de terror antes que a água entrasse em seu nariz, na garganta e nos pulmões, até lhes roubar a última gota de fôlego?
#Crotone 60 vite interrotte nell’umana ricerca di un futuro dignitoso, per sè e per i propri figli, 81 sopravvissuti. Sono loro e i tanti prima di loro, a richiamarci a una riflessione sul significato delle parole umanità, solidarietà, dignità, vita. pic.twitter.com/zNfncFVhEP
— Medici con l'Africa (@Cuamm) February 28, 2023
Por que deveríamos nos importar com isso? O que temos a ver com essa gente aí (exatamente “essa gente aí”, distante, longínqua, outra, desumanizada)?
São apenas novos números de uma boa estatística para as querelas de quintal da política italiana, que, pela boca da primeira-ministra, Giorgia Meloni (que necessariamente deve ser melhor do que ela demonstrou nesse domingo, do que ela parecia ser nesse domingo, do que ela nos disse nesse domingo), com essa extensão de cadáveres recém-selados em sacos brancos na praia, não soube fazer outra coisa senão dizer: “Expresso a minha dor por tantas vidas abreviadas pelos traficantes de seres humanos. Exigimos a máxima colaboração dos Estados de partida e de origem”.
Teria sido melhor se calar. Não muito. Vinte e quatro horas para reorganizar as ideias, honrar o luto, recuperar o fôlego e tentar sair da propaganda.
Em vez disso, o Palácio Chigi exige isso. Levanta a voz, porque isso sabe fazer bem. Late e bate os punhos como criancinhas. Reivindica o amor pátrio, a intangibilidade das fronteiras, o respeito pela nossa história e toda a conhecidíssima enciclopédia do “primeiro os italianos”. Façamos isso, então, como homens e mulheres cristãos (não parece ridículo?). Exigimos.
Mas de quem? Do Talibã do Afeganistão? Dos bandidos líbios e turcos? Dos aiatolás iranianos que torturam e matam as mulheres devido a uma mecha de cabelo que sai do véu? Vamos falar com eles? Digamos a eles: “Desculpem, irmãos, vocês poderiam prestar um pouco mais de atenção a esses mendigos em fuga da ditadura, da guerra, da violência, dos terremotos, das mudanças climáticas e até – vejam só que atrevidos – da pobreza?”.
Boa ideia. Sabe-se lá por que ninguém havia pensado nisso. Somos estúpidos, todos estúpidos. Há anos esperamos o acordo definitivo do bom senso. Aquele que diz: vamos regular os fluxos, e cada governo das nações felizes se encarregue da sua parte. Organizemos campos de acolhimento na Líbia e na Turquia. Vamos falar com os chefes das tribos, as lideranças, os chefes de Estado, e vamos converter os pequenos ditadores e os torturadores de todas as latitudes, vamos rever Dublin, vamos ajudá-los em sua casa, e ponto final.
“Da Roma, qualcuno decide di fare uscire in mare non le motovedette della GC classe 300, inaffondabili e autoraddrizzabili, capaci di affrontare condizioni meteo ben peggiori, ma due mezzi della GdF per un’operazione di ‘repressione reati’” https://t.co/keGcQ3Uiec
— Antonio Ballarò (@antoniodballaro) March 1, 2023
As soluções não faltam. Nunca faltaram.
Talvez, para ser incompreensivelmente otimista, um dia (em muitas décadas e em um número tão incalculável quanto irrelevante de migrantes desossados nas viagens da esperança) tudo isso deixará de ser apenas um exercício retórico autoabsolutório, inútil, enjoativo, farisaico e magicamente funcionará.
Enquanto isso, o que fazemos?
Enquanto Von der Leyen pede para redobrar nossos esforços (seja lá o que isso signifique), e Bruxelas se interroga sobre como e onde erguer trumpianamente outros muros, a Itália se obstina com as ONGs, com os Geo Barents e os Sea Watch (que a “Irmã da Itália” prometia a si mesma afundar em um tuíte memorável), porque é óbvio que, se eles vão ao mar procurando esses fugitivos, esses fugitivos devem ter um motivo a mais para deixar seus chiqueiros.
Castiguemos esses falsos profetas da esperança, esses comunistas de três narinas, esses “bonzinhos” de péssimo quilate, essas ingênuas almas belas, esses especuladores disfarçados de São Francisco, e, entre uma lei sobre as raves e uma anistia disfarçada, vamos impedi-los de zarpar, vamos multá-los, vamos afastar seus portos de desembarque. Então, veremos como as coisas mudarão.
Mas as coisas não mudam. Não podem mudar. Mesmo que quem esteja no governo seja a direita mais direita de sempre. Mesmo que ela fale grosso. De cara amarrada. As pessoas fogem. Quer gostemos ou não. E correm o risco de morrer, porque é sempre melhor do que fingir que se vive. Bem-aventuradas as ONGs. Verdadeiramente bem-aventuradas.
A verdade, e bastaria ter a coragem de dizer isto, é que, para além daqueles idealistas que se lançam ao mar, nós, pessoas muito elegantes e de bem, não gostamos dos diferentes, dos frágeis, dos refugiados, daqueles que não conseguem, não gostamos dos árabes, dos norte-africanos, dos negros. E gostamos dos paquistaneses e dos afegãos apenas nas fotografias da National Geographic. Sem falar dos sírios, que nos dão pena quando um terremoto os engole ou quando encalham nas costas gregas com o perfil infantil de Aylan Kurdi.
Vocês se lembram do Aylan? O corpo minúsculo, o rosto branco como leite espremido na beira da praia, a arrebentação que lhe molhava os cabelos, a camiseta vermelha desnudando as costas, as mãos viradas para cima, o short azul, os cílios longos modelando as pálpebras fechadas para sempre?
Aylan, como você nos fez chorar com sua inocência. Como foi inútil. Continuamos olhando para essa massa de desesperados com a mesma curiosidade que um aristocrata do século XVIII pelos seus criados. E falaremos sobre esse naufrágio na Calábria por mais alguns dias, e depois tudo será como antes, pior do que antes. Será simplesmente como se aqueles 100 seres humanos, aquelas crianças, aqueles recém-nascidos nunca tivessem existido. E, no fundo, é realmente assim.
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A carga humana residual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU