04 Março 2023
"O problema do mal paira sobre essa ebulição do pensamento. Os espíritos malignos estão enganando os seres humanos? Deus os criou?", escreve Giovanni Maria Vian, professor, historiador e ex-diretor do Osservatore Romano, publicado por Domani, 26-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No primeiro domingo da Quaresma, o rito romano deste ano prevê a leitura do episódio do Evangelho das tentações de Cristo, do quarto capítulo do Evangelho segundo Mateus. “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome".
O relato é encontrado nos outros dois evangelhos sinóticos (os de Marcos e Lucas) e é comentada por Bento XVI no primeiro volume sobre Jesus de Nazaré. Com essa "descida aos perigos que ameaçam o homem", Cristo, escreve Ratzinger, "deve entrar no drama da existência humana, atravessá-lo até o fim, para encontrar 'a ovelha perdida', tomá-la aos ombros e reconduzi-la para casa" lutando com o demônio.
Só o diabo é uma figura que o Papa Francisco não tem medo de evocar continuamente, a ponto de constituir um elemento importante do seu ensinamento, ainda que a mídia quase nunca o leve em consideração porque esse traço não se encaixa no perfil moderno e progressista que foi grudado nele.
Jesuíta de formação tradicional, Bergoglio sempre tem presente a realidade do demônio.
Emblemático é o que o pontífice contou em 2016, lembrando que como arcebispo de Buenos Aires pregava às crianças no primeiro domingo da Quaresma: “O que o diabo estava fazendo com Jesus? Ele fez isso porque queria que Jesus se submetesse”. Depois, junto com os garotos menores – na sua festa e segundo um método teatral próprio dos jesuítas há séculos – “queimávamos o diabo. Era uma forma de fazer com as crianças entendessem a meditação das duas bandeiras de Santo Inácio. De um lado estava o diabo e do outro um anjo.
Eu preparava um diabo grande feito de pano e colocava bombinhas dentro dele. Fazíamos uma catequese", depois "se acendia o fogo. Todo mundo gritava. Era uma explosão de bombinhas! As crianças se divertiam. Era um teatro que os ajudava a aprender. Para mim era uma forma de conseguir que fizessem o terceiro exercício da primeira semana dos Exercícios Espirituais. Neste exercício, Santo Inácio quer estimular a capacidade de condenar o mal e de suscitar o ódio ao pecado”.
Mas não basta denunciar o mal, é preciso "decidir uma conversão", dirá Bergoglio, já papa, vinte anos depois. De fato, no último 22 de dezembro, em seu discurso de Natal aos cardeais e prelados da cúria, Francisco escolheu referir-se a uma frase de Jesus, no capítulo 11 do Evangelho de Lucas, e explicou à cúria: "Nossa primeira conversão traz uma certa ordem”, mas o mal se reapresenta, e então são “demônios educados” que entram em nós, “sem que eu me aperceba. Só a prática quotidiana do exame de consciência pode fazer com que nos demos conta disso”, porque “o demônio, expulso, volta; disfarçado, mas volta. Vamos ter cuidado!”.
Ao longo das dezenas e dezenas de menções ao diabo, muitas vezes improvisadas ou ocasionais, em 2018 o pontífice apresentou-o no final da exortação apostólica Gaudete et exsultate “sobre o chamado à santidade no mundo contemporâneo".
Na oração do Pai Nosso, lê-se no documento pontifício, "terminamos pedindo ao Pai que nos livre do Mal": uma expressão que "não se refere ao mal em abstrato", mas a "um ser pessoal que nos atormenta". Não devemos, portanto, pensar “que seja um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia". Esclarecido esse ponto, o Papa jesuíta volta, porém, sobre a consciência individual: o demônio “não tem necessidade de nos possuir. Envenena-nos com o ódio, com a tristeza, com a inveja, com os vícios. E assim, enquanto reduzimos as nossas defesas, ele se aproveita para destruir a nossa vida”.
O ensinamento de Francisco sobre o demônio está perfeitamente alinhado com aquele da Igreja. Em tempos recentes, o Catecismo da Igreja Católica o sintetizou, solicitado pelo Sínodo dos Bispos em 1985 e publicado em 1992. Segundo o texto, requisitado por João Paulo II e coordenado pelo Cardeal Ratzinger, por trás “da escolha desobediente dos nossos progenitores” – o pecado original narrado no início do Gênesis – existe “um anjo caído, chamado Satanás ou o diabo”.
Essa crença de uma criatura angelical originalmente boa que depois se rebela contra Deus é encontrada na origem em textos judaicos apócrifos e é apenas mencionada na Bíblia, depois reafirmada em âmbito cristão em época antiga tardia e na Idade Média.
O Sínodo de Braga em 561 e sobretudo o IV Concílio de Latrão, realizado em 1215, pronunciaram-se contra as doutrinas dualistas que veem no demônio o princípio autônomo do mal: “O diabo de fato e os outros demônios foram criados por Deus naturalmente bons, mas por si mesmos se transformaram em malvados." Os teólogos dominicanos e franciscanos, de Tomás de Aquino a Duns Escoto, discutirão depois sobre a criação e sobre aqueda desses seres espirituais, com especulações que chegam no início da idade moderna até o jesuíta Francisco Suárez.
Mas a história do diabo é muito mais antiga e complicada, como conta The Satan, de Ryan Stokes, um livro inovador e claro que acaba de ser traduzido pela Queriniana. O biblista estadunidense investiga as transformações das diferentes figuras satânicas que aparecem nas sagradas escrituras hebraicas datadas por volta do século VI antes da era cristã ou posteriores. No início aparece um agressor sobre-humano que em nome de Deus se torna justiceiro, como no capítulo 22 dos Números e no terceiro de Zacarias. Depois, na redação definitiva do livro de Jó, "o Satanás" começa a se transformar em acusador e em adversário do ser humano.
Essas entidades com características indefinidas se multiplicam. São demônios e espíritos malignos, com nomes e perfis diversos, como Príncipe de Mastema, Belial, Anjo das Trevas, que lotam as reescritas e desdobramentos apócrifos da Bíblia para chegar aos manuscritos de Qumran descobertos entre 1947 e 1956 nas margens do mar Morto. Centenas de textos parcialmente preservados nas línguas originais (hebraico e aramaico), mas também em etíope ou eslavo antigo, além de grego e latim.
Muitas vezes são histórias sobre a origem do mundo e seu destino que, após a destruição do Segundo Templo no ano 70, se tornam parte das duas correntes em que se divide o judaísmo antigo: o hebraísmo rabínico e o cristianismo. Basta folhar os Apocrifi dell’Antico Testamento editados por Paolo Sacchi (Utet e Paideia), as Leggende degli ebrei coletadas por Louis Ginzberg um século atrás (Adelphi) ou mesmo apenas os livros do Novo Testamento para perceber a presença inquietadora do diabo.
O problema do mal paira sobre essa ebulição do pensamento. Os espíritos malignos estão enganando os seres humanos? Deus os criou? O Livro dos Vigilantes e a releitura bíblica nos Jubileus respondem afirmativamente a esses questionamentos. Outros escritos, como a Carta de Enoque e a Carta de Tiago no Novo Testamento, enfatizam a liberdade e a responsabilidade do homem, enquanto nos textos de Qumran é delineada a guerra impiedosa entre a luz e as trevas que marca o fim dos tempos. E é João, no primeiro século, quem identifica o diabo com "a antiga serpente", o sedutor de toda a terra, no décimo segundo capítulo do seu Apocalipse, que conclui a Bíblia cristã.
Meio século atrás, em 15-11-1972, um cristão aberto à modernidade como Paulo VI falava do diabo. Reações e críticas se desencadeavam contra o papa, considerado retrógrado e fora do tempo, porque Montini abria a longa reflexão, escrita de próprio punho, de forma surpreendente: “Quais são as maiores necessidades da Igreja hoje? Não vos surpreendam como simplista, ou mesmo supersticiosa e irreal a nossa resposta: uma das maiores necessidades é a defesa daquele mal, que chamamos de Demônio”.
O mal e o pecado, "perversão da liberdade humana e causa profunda da morte", são de fato também "ocasião e efeito de uma intervenção em nós e em nosso mundo por um agente obscuro e inimigo, o Demônio", diz Montini. Ele descreve essa realidade como “um ser espiritual vivo, pervertido e perversor” e afirma que “aqueles que se recusam a reconhecê-la como existente saem do quadro do ensinamento bíblico e eclesiástico”. E perante os sinais da presença do diabo – "onde a negação de Deus se torna radical, sutil e absurda, onde a mentira se afirma hipócrita e poderosa" –, o Papa recorda as palavras atribuídas ao apóstolo Pedro: o cristão "deve 'ser vigilante e forte'”.
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O demônio e o problema do mal que paira sobre nossas vidas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU