09 Fevereiro 2023
Nessa imensa tragédia, a geopolítica da solidariedade se partiu em duas. Toda a ajuda ocidental que está sendo preparada vai para a Turquia, muito pouca, chega à Síria. No Ocidente, as embaixadas da Síria estão fechadas, as relações diplomáticas são nulas enquanto as sanções europeias e estadunidenses são generalizadas, o presidente dos Estados Unidos Joe Biden nem sequer menciona a Síria em seu discurso sobre o terremoto: nem mesmo essa tragédia arranha a livorosa política ocidental. Só minorias, laicas, cristãs, muçulmanas, dirigem aqui um pensamento àquele país e é Santo Egídio, não a política, que pede a suspensão do embargo a Damasco.
A reportagem é de Alberto Negri, publicada por Il Manifesto, 08-02-2023. A tradução é Luisa Rabolini.
A Síria vive pelo menos três tragédias contemporâneas: a guerra civil, que continua, assim como a presença militar estrangeira, a do terremoto, e o abandono ocidental, suprido apenas parcialmente pela ajuda de russos, iranianos, iraquianos, que apoiam Bashar Assad no poder.
A tudo isso se soma o fechamento das fronteiras do lado sírio controlado pela Turquia, que acolhe cerca de três milhões de refugiados sírios, e acaba de decretar estado de emergência por três meses: daqui, por uma única passagem, passavam até agora as ajudas das agências da ONU para a população síria ao longo de uma fronteira que há muito representa, como disse o Papa Francisco, "uma guerra mundial em pedaços". Aqui estão os curdos, que lutaram contra o califado, depois deixados à vingança de Erdogan, aqui estão os jihadistas al Nusra, Al Qaeda e Isis, que controlam bolsões de território como Idlib, também atingidas por uma epidemia de cólera nas últimas semanas, dos quais não tínhamos notícias, exceto de organizações como Médicos Sem Fronteiras.
Se é verdade que na Síria existem bases russas e dos pasdaran iranianos, Biden não pode fingir que ignora que os EUA estão presentes militarmente no país desde 2014 no nordeste da Síria e na base de Tanf, no sudeste, além é claro, de proteger os poços de petróleo de Deir Ez Zhor para privar o regime de Damasco de recursos. Washington determinou o destino de todas essas populações primeiro ajudando os curdos contra o Isis e depois deixando que Erdogan os bombardeasse com a aviação ocupando Afrin e atacando também o Rojava, o único experimento político leigo e pluralista na região.
Mas para os Estados Unidos e Israel (que ocupa o Golã sírio desde 1967) a Síria representa principalmente uma espécie de polígono de tiro onde atingir as posições iranianas em uma guerra mais abrangente contra Teerã, o principal aliado de Assad junto com Moscou e os Hezbollah libaneses. Agora é precisamente do Líbano - assolado por uma crise muito profunda e que já acolhe mais de um milhão de refugiados sírios - que podem chegar as ajudas ocidentais, a ser confiadas às ONGs que têm acordos com o regime de Damasco. Esperamos que essa complicada eventualidade seja acompanhada por algum governo de boa vontade.
A geopolítica e o terremoto esmagam as vidas das pessoas atingidas pela guerra. Na fronteira entre a Turquia e a Síria, o destino de milhões de refugiados sírios está em jogo há bastante tempo, um destino já desesperado que havia sofrido recentemente uma espécie de aceleração repentina. Erdogan, em sérias dificuldades econômicas, há tempo quer se livrar deles enquanto os bilhões de euros depositados em Ancara pela UE não são mais suficientes para satisfazê-lo. De fato, antes do final do ano, ocorreu um grande evento, em grande parte ignorado pela mídia. Os ministros da Defesa da Rússia, da Turquia e da Síria se encontraram em Moscou.
Foi a primeira vez em mais de uma década que um ministro da OTAN, da qual a Turquia é membro desde a década de 1950, falava oficialmente com um alto representante sírio. Segundo fontes de Damasco, que aliás não foram desmentidas, a Turquia estaria disposta a se retirar do território sírio ocupado enquanto, em troca, a Síria retomaria os refugiados colocando sob controle o PKK e os curdos do Rojava. O acordo para Erdogan, em vista das eleições de junho, teve forte valor propagandístico junto à opinião pública turca, agora hostil aos refugiados sírios. Mas o terremoto agora revira as cartas sobre a mesa.
Erdogan sabe perfeitamente que a sobrevivência política depende do terremoto. Ele assumiu pessoalmente as operações de proteção civil e gere as ajudas internacionais porque obviamente ninguém o deve ofuscar.
Certamente para ele estas são semanas decisivas porque, como explicavam ontem no Il manifesto Murat Cynar e a jornalista Esma Cakir na Stampa, ganharão destaque as polêmicas sobre a urbanização selvagem e a construção civil desprovida de medidas antissísmicas. Centenas de milhares de turcos não podem voltar para suas casas, não podem trabalhar e sobreviver: e Erdogan para mantê-los sob controle, desta vez não pode usar os métodos repressivos de seu ex-amigo, o autocrata Assad.
Mas o terremoto, que se junta à guerra na Ucrânia, traz outras consequências. A Rússia - à qual Ancara não impôs sanções, opondo-se também à entrada da Suécia e da Finlândia na OTAN - tornou-se o maior parceiro da Turquia (+45% do comércio bilateral): do gás, ao trigo, aos investimentos diretos estimados pelo Wall Street Journal entre 5 e 10 bilhões de dólares.
O terremoto reduz as perspectivas de Erdogan e Putin enquanto os Estados Unidos exercerão pressão sobre o Sultão da Aliança Atlântica, o mais rebelde dos aliados EUA (presente na Turquia em Incirlik a base estratégica com mísseis nucleares) que neste momento está ajudando militarmente Kiev, mas joga com Moscou como freelance.
Aqui está um dos muitos fragmentos cortantes do jogo sobre a verdadeira e presumida solidariedade internacional que se joga na pele das vítimas do terremoto.
?? ?? Partiu, nesta madrugada, a Missão humanitária do Governo Federal com destino à Turquia, em resposta ao grave terremoto ocorrido no país e também na Síria. pic.twitter.com/TDB6mnd73i
— Ministério da Saúde (@minsaude) February 9, 2023
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Terremoto na Síria e na Turquia divide ao meio a geopolítica da solidariedade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU