O artigo é de Pedro Miguel Lamet, padre jesuíta espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 02-02-2023.
Um novo documento, até então inédito, revela até que ponto o Superior Geral da Companhia de Jesus, padre Pedro Arrupe, tinha entre suas mais caras preocupações pessoais reivindicar a figura do famoso e proeminente paleontólogo jesuíta e cientista interdisciplinar, Pierre Teilhard de Chardin, que não pôde ver suas obras publicadas durante sua vida, devido a uma proibição da Santa Sé, e recebeu um monitum do Santo Ofício sete anos após sua morte. Esta é uma extensa e ponderada carta dirigida em 1981 pelo Padre Arrupe ao Provincial da França, Henri Madelin, por ocasião do centenário da morte do cientista. Foi o que revelou Leandro Sequeiros, SJ, presidente da secção espanhola da Associação dos Amigos de Teilhard de Chardin.
A admiração de Arrupe pelo brilhante pensador francês já era conhecida. Leitor assíduo das suas obras, logo que foi eleito General dos Jesuítas em 1965, na primeira conferência de imprensa a perguntas dos jornalistas sobre a contradição implícita no monitum emitido em 1962 contra o pensador francês e a exaltação que os escritores fizeram de Teilhard católico, Pedro Arrupe defendeu Teilhard afirmando que ele é “um dos grandes mestres do pensamento contemporâneo, cujo sucesso hoje não deve nos surpreender. Na verdade, ele fez uma tentativa grandiosa de conciliar o mundo da ciência e o mundo da fé”.
Pedro Arrupe | Foto: Religión Digital
Deve-se esclarecer que o Monitum publicado há apenas três anos não era uma sentença formal. Mas afirmou que nas suas obras, publicadas após a sua morte, "abundam tais ambiguidades e até graves erros, que ofendem a doutrina católica. Por esta razão, os Eminentes e Reverendíssimos Padres do Santo Ofício exortam todos os Ordinários, assim como os superiores dos institutos religiosos, reitores de seminários e reitores de universidades, a proteger eficazmente as mentes, especialmente dos jovens, contra o perigos apresentados para as obras do Pe. Teilhard de Chardin e seus seguidores”. Isso de fato significou a retirada de suas obras das bibliotecas de seminários e universidades católicas. Apesar da censura imposta por Roma à sua obra, numerosas edições dos livros de Teilhard de Chardin foram distribuídas em todo o mundo nos anos imediatamente posteriores à publicação do monitum. Na década de 1980, foram feitas tentativas para justificar seu pensamento, mas a Santa Sé endossou o aviso de 1962.
Pedro Arrupe, depois de apontar como na sua obra e na sua espiritualidade todas as coisas se conjugam em Cristo, concluiu perante os informantes que "não se pode deixar de reconhecer a riqueza da mensagem do Padre Teilhard para o nosso tempo", e que o seu esforço "está totalmente alinhado com o apostolado da Companhia de Jesus”. É de imaginar como essas palavras foram recebidas pela imprensa internacional, principalmente a francesa. Arrupe julgou positivamente um dos profetas mais intuitivos do momento diante de seus detratores.
Em outra ocasião, Arrupe relembrou as palavras de Teilhard de Chardin: "O mundo pertencerá àqueles que lhe derem a maior esperança." E quando seu colaborador próximo Yves Calvez estava cuidando dele no hospital após a trombose cerebral que se abateu sobre ele em 1981, ele leu para ele uma noite O Meio Divino de Teilhard de Chardin e especialmente algumas frases. “Nossa capacidade de diminuir é nossa verdadeira passividade. (...) De certa forma, para nos penetrar definitivamente, Deus deve nos escavar, nos esvaziar, fazer um buraco para si”. Para Arrupe, leitor de Teilhard, essa era uma das certezas pelas quais vivia, como ficaria demonstrado nos nove anos de prostração e humilhação que sofreu humildemente devido à doença e às medidas da Santa Sé.
Em julho de 1983, ciente das dificuldades de expressão e difícil recuperação do padre Arrupe, solicitei permissão para ir a Roma e conversar com ele, a fim de concluir meu projeto há muito acalentado de completar uma biografia de Arrupe, que apareceu publicada em repetidas edições revisadas sob os títulos Arrupe, uma explosão na Igreja e Arrupe, testemunha do século XX e profeta do século XXI. Jamais esquecerei a experiência daquelas entrevistas com um homem diminuído pela doença, mas transparente e cheio de uma grande luz interior. Entre muitas declarações, ele me disse que, além de Santa Teresa, São João da Cruz, Santo Inácio e São Francisco Xavier, os autores contemporâneos que ele mais lia eram Karl Rahner, De Lubac e Teilhard de Chardin. E apontou para um livro que tinha sobre a mesa: uma biografia de Teilhard em imagens. Na verdade, ele não sabia mais ler, então se limitou a folhear as fotos de sua vida. Foi seu último livro de cabeceira!
Na carta recentemente descoberta, ele diz, entre outras coisas, que Teilhard "preocupou-se em restaurar uma visão holística do mundo e, em particular, em colocar o ser humano em seu verdadeiro lugar, razão pela qual propõe as diretrizes gerais de uma ciência antropológica completa", sem qualquer "reducionismo" e que "se esforça para mostrar a organicidade dos vínculos entre a história natural e a história das religiões do mundo". Sobre o debatido tema da evolução, ele tem o mérito de "fazer uma mudança na direção de um caminho dominante na época em que iniciou sua carreira de cientista: o da evolução das espécies vivas que chega aos humanos e que foi brandido como o demonstração de materialismo, a rejeição da existência de um mundo espiritual que foi estimado como recuperável apenas pelo fixismo”. "Opondo-se a isso, o padre Teilhard tenta mostrar que a evolução traduz um avanço da matéria para o espírito."
Telihard preocupou-se em “anunciar a sua fé a um mundo distante de Deus ou para o qual a Igreja é uma instituição antiquada, encerrada em horizontes estreitos. Um testemunho especial de uma vocação jesuíta em que a competência técnica, longe de esconder ou devorar o empenho, coopera para estimular e alimentar a sua preocupação apostólica e missionária”. Ele o relaciona com o fenômeno da inculturação e com o padre Ricci na China. Preocupação que “nos impulsiona ao máximo e que interpretamos como presença em vários lugares onde a Igreja esteve ausente até agora com demasiada frequência”.
Teilhard de Chardin durante o trabalho de campo | Foto: Religión Digital
Ele destaca outro traço de sua personalidade: “seu amor ardente por Cristo, situado no centro de sua paixão por um mundo transformado, e que se realiza no cristianismo. Este não é a seus olhos 'um acessório adicionado ao Mundo', mas sim 'a pedra fundamental e a chave da abóbada', concluindo que a Encarnação pode então iluminar o mundo,
“A adesão e união a Cristo – acrescenta – traduz mais o que é a existência dos sacerdotes e religiosos. O Padre Teilhard não só viveu o seu sacerdócio e a sua vida religiosa com grande intensidade no mais profundo de si mesmo, mas também o disse, o proclamou tanto aos não crentes como aos crentes. A seguir, sublinha também a sua adesão à Igreja: É preciso acrescentar que foi fiel e obediente. E que tinha obedecido por profunda fé na Igreja e por amor a ela, o que sabemos pelo peso do sofrimento que lhe custou”.
Pedro Arrupe vê em Teilhard de Chardin uma dimensão profética: “Há nele a intuição profética de um grande número de problemas que mobilizariam e ainda mobilizam o pensamento e a ação da Igreja. Tudo se realiza no amor filial a esta Igreja que o Padre Teilhard nunca separou de Cristo, e do seu amor simbolizado pelo seu coração. Como escreveu o Padre Teilhard: 'O Cristo'. 'Seu coração. Um Fogo capaz de penetrar todas as coisas'".
Trata-se, portanto, de um documento importante para a biografia do padre Arrupe e um texto que reforça um traço marcante de sua personalidade: seu otimismo radical, bem teilhardiano, sua teologia imanentista, diante das correntes pessimistas do homem e do mundo, a sua crença de que cada homem de alguma forma carrega Deus dentro de si, a sua abertura ao diálogo com a cultura, os incrédulos e todas as religiões, a sua esperança no futuro e a alegria profunda que o animou mesmo nos piores momentos e que inspirou suas últimas palavras antes de morrer: “Para o presente, amém, para o futuro, aleluia.” No caso de Teilhard, como em outros casos, uma circunstância agravante foi acrescentada; o sujeito punido "teologicamente" também foi expulso de sua casa e de seu país. Teilhard foi extraditado da França e forçado a emigrar para os Estados Unidos. Ele morreu em Nova York em 10 de abril de 1954.
Pela sua importância , publicamos a referida carta na íntegra em tradução do francês por Leandro Sequeiros, SJ.: