05 Janeiro 2023
A originalidade do pensamento de Miguel Benasayag reside na diversidade de fontes de que se vale: pesquisador em neurofisiologia, com uma inclinação para a filosofia oriental e um passado de militância no PRT-ERP (Partido Revolucionário dos Trabalhadores – Exército Revolucionário do Povo), na Argentina. O filósofo e psicanalista tende a apostar na articulação do biológico com a cultura e o mundo digital, como é o caso de Experiencia y sentido común, seu último livro, publicado pela Editora Prometeo e escrito em parceria com Bastien Cany. Da França – onde vive desde que se exilou durante a ditadura, após ter estado preso –, o autor, nascido em Buenos Aires, fala com o Página/12 sobre uma infinidade de questões urgentes, como a “colonização” da tecnologia e a crise da democracia.
A entrevista é de María Daniela Yaccar, publicada por Página/12, 02-02-2023. A tradução é do Cepat.
Uma das particularidades deste pensador é que, além de pintar uma paisagem atual escura, suas palavras trazem alguma luz. É o caso, por exemplo, de ¿Funcionamos o existimos?, também editado pela Prometeo, no ano passado. Esta tendência não é comum na filosofia contemporânea. “Muitos intelectuais se entusiasmam com o desastre. Há um gozo ligado a isso. Sempre fui um cara da rua. Você tem que salvar as pessoas, seus companheiros. Quando eu era ‘perro’, com anos na prisão, uma das responsabilidades que eu tinha era salvar e ajudar os quebrados”, conta.
“Vejo uma confusão e muita ameaça mas ao mesmo tempo muitas coisas que valem a pena. Estamos vivendo algo absolutamente inédito. Não sabemos como será a sobrevivência, a vida no planeta. Mas estamos aqui. Há algo a proteger”, conclui o Doutor em Psicopatologia e Mestre em Biologia e Neurofisiologia da Percepção, autor de 40 livros e fundador do coletivo Malgré Tout (Apesar de Tudo), que pretende “articular a complexidade dos tempos com o compromisso social e científico”.
Em que sentido este momento é uma confusão e algo sem precedentes na história?
A complexidade não é uma teoria. Chamamos de “complexidade” o surgimento de algo que diz que não funciona mais. Um certo modo de viver, de produzir, de se experimentar como indivíduo que consome, separado dos outros... este modo ocidental, colonizador, patriarcal que constituiu um mundo, este modo de existir no mundo não funciona mais. A destruição que causa é muito maior do que a que produz.
Por exemplo, se alguém pegava um carro para ir de Buenos Aires a Córdoba em 1940, 90% do que estava fazendo era ir de Buenos Aires a Córdoba. Em 10% arruinava a paisagem e poluía um pouco. Atualmente, quando alguém pega um carro para fazer o mesmo trajeto, 10% é ir para Córdoba e 90% é participar da destruição. Em todas as dimensões da vida percebemos que essa inversão existe. Nos últimos 50 anos, 70% das espécies de vertebrados desapareceram, não há mais insetos para polinizar... estamos diante de um momento de colapso.
Outros modos de vida, um tanto esmagados, considerados menores ou subdesenvolvidos, voltam a emergir. Os estilos de vida dos povos originários, de algumas tribos africanas... Entre os poderosos, ninguém decide parar. Eles querem continuar com o extrativismo, o produtivismo, mas por outros meios, com a tecnologia. A vida é questionada como vida no planeta. Muitas pessoas ficam arrasadas com isso, não conseguem pensar nisso; o papel de quem dá o couro é ver o que é pensável, o que é habitável. Como se pode viver.
Pode explicar a diferença, que não é uma dicotomia, entre funcionar e existir, um dos pilares do seu pensamento?
Não há dicotomia porque não posso existir sem funcionar. No meu corpo e no mundo há muitas coisas que funcionam. Na pandemia, eu me vacinei. Minha companheira não. Nós dois estávamos conscientes de que era uma aposta. Existir significa apostar sem saber muito. Alguém se compromete com determinadas posições sem saber tudo. É o lado da existência; nem tudo está fechado ou determinado, existe a liberdade. Já que tudo é tão ameaçador e todos temos medo de tudo, a proposta dos poderes é que funcione. Porque isso é avaliável, quantificável, transparente. A existência sempre tem lados obscuros, eclipsados, não saberes, intuições. O funcionamento se apresenta com a transparência panóptica da máquina, é há até uma estética do bom funcionamento.
As pessoas querem funcionar bem, mesmo clinicamente. Quando vai ao médico ou ao psicólogo diz: “Estou funcionando mal”. Surge um desafio, porque o problema é que funcionar bem não é existir. Funcionar bem significa justamente “desexistir” para tentar se ater a algo mais claro, ansiolítico. A resistência passa por dizer: “temos que existir”, principalmente para os jovens, os rapazes. Temos que dizer a eles para não aprenderem coisas úteis. Que não tenham medo de perder tempo. “Tomem o seu tempo, aprendam o que dá na cabeça”. Permitir a existência é um modo de resistência que afasta um pouco a ameaça.
É por isso que você sugere que diante de um futuro ameaçador, ou de um não futuro, o que nos resta é o presente?
Absolutamente. Existem idiotas mentais que são cientistas que pensam que vamos conquistar outro planeta. Esses absurdos servem para querer continuar como antes, produzindo e destruindo. Há o colapso, e daí? Não temos mais filhos? Não nos movemos mais? Há uma ameaça contra a qual parece que nada posso fazer. Mas... o que eu posso fazer? O que posso fazer é o que abre o presente. O que eu posso fazer agora.
Aprendi isso nos quatro anos e meio de prisão. No pavilhão – que era um pouco como o grupo La Pesada del rock and roll (banda argentina pioneira do hard rock, do rock psicodólico e do heavy metal na América Latina, formada em 1970 pelo produtor Jorge Álvarez e pelo cantor e produtor Billy Bond, seu líder), meio bagunçado, tiravam gente para liquidar, era no Chaco – recebi a informação de que todos os planos de fuga tinham acabado. As coisas ficaram claras para mim... Eu me perguntei: “o que estamos fazendo aqui?” Era tudo muito grande, infinito.
Proteger os companheiros, trocar elementos culturais, pensar na vida, aprender coisas... de repente abriu-se um mundo imenso de coisas para fazer. Nenhuma delas nos permitiu sair ou atacar a ditadura, mas permitiram que apenas um camarada do meu pavilhão enlouquecesse. Indiretamente, sim, estávamos resistindo e permitindo que houvesse um depois. Mas não pensando no depois, mas assumindo o agora.
Em Funcionamos ou existimos? você defende uma certa espiritualidade: fazer um café não é simplesmente fazer um café, é um ritual. Também conta que intuiu que estaria na prisão muito antes de estar de fato. Qual o papel da filosofia oriental em seu pensamento e como ela pode servir de ferramenta para pensar este momento?
O exemplo do café surgiu logo depois que fui chamado para ajudar equipes de gerontólogos. Sobre a pessoa com deficiência ou muito idosa que não pode fazer as coisas, diz-se que “se leva três horas para fazer um café”. A questão não é que tome um café, mas que nessas três horas está fazendo coisas. “Caminheiro, não existe caminho...”. Estudei muito o taoísmo. E uma corrente ocidental muito próxima da Índia, o neoplatonismo.
O taoísmo tem uma sabedoria muito grande em não pensar na solução das coisas e assumir a vida. Chuang Tzu tem um texto sobre a utilidade do inútil. Funcionar é tentar ser útil, mas útil é uma máquina, serve para alguma coisa. Os seres vivos são profundamente inúteis, no sentido de que não precisamos ser bons para alguma coisa. É horrível quando se olha para alguém e se diz: “para que serve? Não produz, não consome”. Precisamos reivindicar a inutilidade. Tudo o que é fundamental – o amor, a criação, a arte, a alegria – é inútil.
Qual é o papel da tecnologia nisso tudo?
A tecnologia de hoje cria uma ausência. Quando alguém está conectado ao telefone, na realidade está ausente. Trabalhei em neurofisiologia para ver os efeitos do GPS, para ver em que nível ele produzia destruição em determinadas conexões neurais. Você chega do ponto “a” ao “b”, mas entre esses pontos não existia. A maquininha facilita as coisas, mas não é esse o objetivo. O objetivo era experimentar as coisas.
Existe um certo nível de conforto que é uma armadilha. Por isso acredito que a crítica ao utilitarismo do taoísmo, a ideia de que você está aqui porque está, ou o estar sendo de que fala (Rodolfo) Kusch hoje são fundamentais. Da mesma forma quando estão te massacrando no cárcere e só querem que morras de medo e enlouqueças. Há uma grande ameaça, mas isso abre possibilidades.
Muitos afirmam que não há mais separação entre os mundos online e offline. O que pensa a esse respeito?
Existe uma colonização que formata o cérebro e os corpos. O ponto máximo disso é o transumanismo. Por enquanto, felizmente, continua existindo um mundo de corpos, e o objetivo seria que ele colonizasse a técnica. Não dá para voltar atrás em relação à tecnologia, mas é preciso inverter o movimento e fazer com que a tecnologia nos sirva. Eu moro no sexto andar e tenho elevador, mas nem por isso virei uma massa gelatinosa. Eu continuo usando os músculos. O que acontece com o cérebro é diferente: tudo que se delega à máquina o cérebro não faz mais.
Em seus postulados, você dá destaque aos idosos. Por quê?
A permanente inovação tecnológica nos coloca em um momento em que tudo o que é novo é bom. Toda a experiência vivida é perdida, deixada de lado, porque no final o que importa são as informações que a máquina pode dar. Uma sociedade que se priva de toda experiência e que se prende apenas às dimensões da informação se debilita muito. Existe uma grande diferença entre estar informado e compreender. A compreensão é um processo físico, corporal. Tudo o que é experiência é mal visto. A velhice representa o frágil, o fato de ser mortal, e isso não deve ser visto. Tudo tem que ser puro novo poder. Isso faz com que os velhos não desenvolvam sua potência e os jovens sejam vítimas diretas do terrorismo absoluto do funcionamento.
Você pertence a uma geração cuja juventude foi marcada pela necessidade de mudança social. Diante desse panorama, o que nos resta em relação ao político?
Estamos vivendo uma época totalmente diferente. Não podemos julgar a época passada a partir da atual. Até os anos 1970 o mundo é o mundo do futuro; o amanhã é um amanhã raivoso, o da promessa. As pessoas são fruto da época. Você não é independente da época. Você reage em relação a ela. Algo estava se gestando, sentia-se isso ao respirar, como dizia a música do Arco Iris (banda considerada um dos grupos fundadores do rock argentino).
Se quando comecei a estudar medicina tivessem me perguntado sobre 2022, eu diria que haveria cura para o câncer. Naquele momento, cada um em suas atividades colocava o ombro de acordo com essa promessa. Tenho amigos que foram para Bolsón, outros que entraram nos Montoneros, outros que fizeram teatro alternativo. Pouco importa. Não havia um caminho, havia um mover-se, que teve muito a ver com a contracultura, o guevarismo, o indigenismo e o feminismo. Eu tocava rock em grupo até me tornar, sem solução de continuidade, um combatente do ERP. Era uma primavera.
Somos contemporâneos de uma coisa inédita que é o fim de um mundo, do mundo criado pelo Antropoceno, pelo cartesianismo. Não que ser do ERP fosse a única possibilidade. Mas algo tinha que ser feito e eu reivindico isso. Foi uma época fantástica da minha vida, apesar de tudo. Hoje há uma nova distribuição material e objetiva do mundo que não nos permite de forma alguma ordenar nossas ações em nome de um futuro. Isso exige que assumamos que o norte está no presente.
O exemplo que dei da prisão era anacrônico em relação àquela época, porque tudo estava ordenado para o futuro e tínhamos que nos esforçar para nos ordenar com o presente. Hoje temos que nos comprometer com o presente. Os politiqueiros que prometem, dizem, pedem adesão, estão out. E tudo dividido, verticalidade, promessa, não corresponde a nada.
Quando vejo (Alain) Badiou que continua falando sobre a revolução... recentemente em uma entrevista um cara lhe disse: “você apoiou Stalin, 20 milhões de mortos; Pol Pot, 2,3 milhões; Gonzalo, do Peru...”. E Badiou lhe disse: “Não se faz filosofia ou revolução contando os mortos”. Ele segue pensando que existe um objetivo e que a realidade deve ser ordenada em relação a esse objetivo. Isso não dá mais. Não porque éramos tolos antes. Os tempos mudaram.
Em seu último livro, Byung-Chul Han polemiza com Toni Negri sobre essa questão. Han defende que é impossível fazer uma revolução quando todos estão isolados e deprimidos...
O coreano está certo. Negri, Badiou, toda essa gente continua achando que existem modelos e que o ser humano tem que aderir a eles. Temos que olhar para a realidade de que, diante da ameaça, as pessoas são como a merda. Trata-se de reconstruir o tecido social e encontrar razões para se mobilizar. Em situações concretas, que podem ser micro ou um pouco maiores.
O local não é socialmente pequeno. Penso que devemos agir e pensar localmente. Todo pensamento do universal é colonialismo. O universal é invenção do colonialismo, com um ser humano modelo, universal. As pessoas não estão bem. Não estão esperando que algum idiota lhes dê um programa que indique o caminho por onde o mundo passa. Isso corresponde a uma época.
Autores como Eric Sadin falam da abolição do comum. Como construímos a partir dessas ruínas?
Dentro do esquema universal moderno, o comum é algo que existe: a classe trabalhadora, os negros, as mulheres. Na realidade, se quisermos abrir a porta para atuar na complexidade no presente, o comum não preexiste. É o que produzimos com nossas ações. Não há um comum substancial, uma base. Claro que pode ser criado. E o comum resiste ao horror e à destruição. Mas é importante ver que nunca é dado. Não tenho nada em comum com os argentinos porque sou argentino: isso é Malvinas, a Copa do Mundo de 1978... não existe a argentinidade. Existem produções comuns que são territoriais. O comum é o que age. O que age é um conjunto que não é antropocêntrico. É o ecossistema. Somos parte do ecossistema. É claro que nem o taoísmo nem o estar sendo são antropocêntricos. O ser humano é parte de um todo.
O combo atual inclui a paixão do ódio no centro da existência. De onde vem o ódio? Qual é a sua leitura do atentado perpetrado contra Cristina Fernández?
O ódio é o maior remédio ansiolítico. Quando você tem ódio, não tem mais ansiedade, e o mundo se ordena, porque ele a polariza. Está tudo bem porque você tem um inimigo. Lembro-me de que a certa altura um amigo tinha um problema muito sério no quadril e sabia que ficaria semiparaplégico em alguns anos. E outro amigo lhe diz: “que pena que não tem ninguém para lhe dar um soco na cara”. Como se dissesse: “se houver um problema eu tenho que ter alguém para odiar”.
Na realidade, tratava-se de assumir juntos, com amor, amizade, esta pena, esta tristeza, esta fragilidade que um amigo da nossa idade teria problemas para caminhar pelo resto da vida. Ou você arca com as consequências ou você diz “em quem eu bato?”, e quando tem alguém em quem bater o mundo está ordenado. O ódio é inevitável e temos que ter cuidado para não cair na armadilha de ter um pequeno bom ódio no estômago ou no coração. Temos que suportar a fragilidade, a dureza da época sem recorrer a um ódio que nos salve.
Na Argentina, a intolerância está crescendo... não se pode pensar porque quem pensa será visto como suspeito pelo outro de não estar comigo. Por sorte, a arma falhou. Teria sido passar para outra coisa. Ao mesmo tempo, claro, a resposta teria de ser não de ódio. Nesse sentido, aconteceu na Argentina algo que nunca aconteceu no mundo: que um povo obtenha justiça sem ter derrotado militarmente o inimigo.
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“Este modo de existir no mundo não funciona mais”. Entrevista com Miguel Benasayag - Instituto Humanitas Unisinos - IHU