02 Janeiro 2023
Às 17 horas de sábado, 31-12-2022, na Basílica do Vaticano, o papa Francisco presidiu as primeiras Vésperas da Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus, às quais se seguiram a exposição do Santíssimo Sacramento, o tradicional canto do hino "Te Deum", no encerramento do ano civil, e a Bênção Eucarística. Ao final da celebração, o Papa Francisco foi visitar o presépio montado na Praça São Pedro.
A seguir, publicamos a homilia que o papa pronunciou na celebração das Vésperas.
O texto é publicado por Vatican News, 31-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Nascido de mulher" (Gl 4,4 ).
Quando, na plenitude dos tempos, Deus se fez homem, ele não veio ao mundo caindo do céu; nasceu de Maria. Não nasceu em uma mulher, mas de uma mulher. É essencialmente diferente: significa que Deus quis tomar a carne dela. E não a usou, mas pediu seu "sim", seu consenso. E com ela começou o lento caminho da gestação de uma humanidade livre do pecado e cheia de graça e de verdade, cheia de amor e fidelidade. Uma humanidade bela, boa e verdadeira, à imagem e semelhança de Deus, mas entrelaçada com a nossa carne oferecida por Maria; nunca sem ela; sempre com seu consentimento; na liberdade, na gratuidade, no respeito, no amor.
E este é o caminho que Deus escolheu para entrar no mundo, para entrar na história, esta é a forma. E essa forma é essencial, tão essencial quanto o próprio fato de ter vindo. A maternidade divina de Maria – maternidade virginal, virgindade fecunda – é o caminho que revela o extremo respeito de Deus pela nossa liberdade. Aquele que nos criou sem nós não quer nos salvar sem nós (cf. Santo Agostinho, Sermo CLXIX, 13).
Sua forma para nos salvar é o caminho pelo qual também nos convida a segui-lo, a continuar com ele a tecer uma humanidade nova, livre e reconciliada. Esta é a palavra: humanidade reconciliada. É um estilo, uma maneira de se relacionar conosco, da qual derivam as múltiplas virtudes humanas de uma boa e digna convivência. Uma dessas virtudes é a gentileza, como estilo de vida que favorece a fraternidade e a amizade social (cf. Enc. Fratelli tutti, 222-224).
E, por falar em gentileza, neste momento nosso pensamento se volta espontaneamente para o caríssimo Papa Emérito Bento XVI, que nos deixou esta manhã. Com emoção recordamos sua pessoa tão nobre, tão amável. E sentimos tanta gratidão em nossos corações: gratidão a Deus por tê-lo doado à Igreja e ao mundo; gratidão a ele, por todo o bem que realizou e, sobretudo, por seu testemunho de fé e oração, especialmente nestes últimos anos de sua vida em retiro. Só Deus conhece o valor e a força da sua intercessão, dos seus sacrifícios oferecidos pelo bem da Igreja.
Esta tarde gostaria de propor a gentileza também como virtude cívica, pensando em particular na nossa Diocese de Roma.
A gentileza é um fator importante da cultura do diálogo, e o diálogo é indispensável para viver em paz, para viver como irmãos e irmãs que nem sempre se entendem – é normal – mas que, no entanto, falam entre si, se escutam e tentem se entender e se ajudar. Pensemos apenas “no que seria do mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas que mantiveram unidas famílias e comunidades. O diálogo perseverante e corajoso não faz notícia como as desavenças e os conflitos; e contudo, de forma discreta mas muito mais do que possamos notar, ajuda o mundo a viver melhor.” (ibid., 198). Pois bem, a gentileza faz parte do diálogo. Não é apenas uma questão de "boas maneiras"; não é uma questão de "etiqueta", de formas galantes... Não, não é isso que queremos dizer aqui quando falamos de gentileza. Ao contrário, trata-se de uma virtude a ser recuperada e exercida todos os dias, para ir contracorrente e humanizar as nossas sociedades.
Os danos do individualismo consumista estão à vista de todos. E o dano mais grave é que os outros, as pessoas ao nosso redor, são percebidos como obstáculos à nossa tranquilidade, ao nosso conforto. Outros nos “incomodam”, nos perturbam, tiram nosso tempo e recursos para fazermos o que gostamos. A sociedade individualista e consumista tende a ser agressiva, porque os outros são concorrentes com quem competir (cf. ibid., 222). E, no entanto, precisamente nestas nossas sociedades, e mesmo nas situações mais difíceis, há pessoas que demonstram que “ainda é possível optar pelo cultivo da amabilidade” e assim, com o seu estilo de vida, “tornam-se estrelas no meio da escuridão” (idem).
São Paulo, na Carta aos Gálatas, da qual é tirada a Leitura desta liturgia, fala dos frutos do Espírito Santo, e entre estes menciona um com a palavra grega chrestotes (cf. 5,22). Pois, é isso que podemos entender por "gentileza": uma atitude benevolente, que apoia e conforta os outros, evitando qualquer aspereza e dureza. Uma forma de tratar os outros tomando cuidado para não magoar com palavras ou gestos; tentativa aliviar o peso dos outros, encorajar, confortar, consolar; sem nunca humilhar, angustiar ou desprezar (cf. Fratelli tutti, 223).
A gentileza é um antídoto contra algumas patologias das nossas sociedades: um antídoto contra a crueldade, que infelizmente pode se insinuar como veneno no coração e intoxicar as relações; um antídoto contra a ansiedade e o frenesi distraído que nos fazem concentrar em nós mesmos e nos fecham aos outros (cf. ibid., 224). Essas "doenças" da nossa vida cotidiana nos tornam agressivos, nos tornam incapazes de pedir "com licença", ou "desculpe", ou simplesmente dizer "obrigado". As três palavras tão humanas da convivência: com licença, desculpe, obrigado. Com essas três palavras avançamos na paz, na amizade humana. São as palavras de amabilidade: com licença, desculpe, obrigado. Nos fará bem pensar se as usamos com frequência em nossas vidas: com licença, desculpe, obrigado. E assim, quando encontramos uma pessoa amável na rua, ou numa loja, ou num escritório, ficamos maravilhados, parece-nos um pequeno milagre, porque infelizmente a amabilidade já não é mais muito comum. Mas, graças a Deus, ainda existem pessoas amáveis, que sabem deixar as suas preocupações de lado para prestar atenção aos outros, oferecer um sorriso, uma palavra de estímulo, para escutar quem precisa se confidenciar e desabafar (cf. ibid.).
Caros irmãos e irmãs, penso que resgatar a gentileza como virtude pessoal e cívica possa ajudar muito a melhorar a vida nas famílias, nas comunidades e nas cidades. Por isso, olhando para o novo ano da cidade de Roma, gostaria de desejar a todos nós que nela vivemos que cresçamos nesta virtude: a amabilidade. A experiência ensina que, se se tornar um estilo de vida, pode criar uma convivência saudável, pode humanizar as relações sociais dissolvendo a agressividade e a indiferença (cf. ibid.).
Não subestimemos o mistério da maternidade divina! Deixemo-nos surpreender pela escolha de Deus, que poderia ter aparecido no mundo de mil maneiras mostrando o seu poder, e ao invés quis ser concebido livremente no ventre de Maria, quis ser formado por nove meses como qualquer criança, e finalmente nascer dela, nascer de mulher. Não passemos apressados, paremos para contemplar e meditar, porque aqui está um traço essencial do mistério da salvação. E procuremos aprender o “método” de Deus, o seu respeito infinito, por assim dizer a sua “amabilidade”, porque na maternidade divina da Virgem está o caminho para um mundo mais humano.
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Papa Francisco propõe resgatar a gentileza como virtude pessoal e cívica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU