23 Dezembro 2022
"O que a nação levou 200 anos para construir – instalação de instituições republicanas, valorização da democracia, respeito aos três poderes da República, sentimento de pertença – começa a desmoronar. E como? Mentirosos, enganadores da opinião pública, governantes com interesses espúrios, recorrem ao novo bios para divulgar falsos dossiês, memes com fake news para manter seu rebanho motivado e semear o terreno voltado a ações antidemocráticas, golpistas, de desestabilização das instituições. O novo bios está sendo usado para a promoção de uma brasilidade anticidadã, numa época marcada no país pelo fanatismo e pela desinformação", escreve Edelberto Behs, jornalista.
O Brasil muito deve a Napoleão Bonaparte. Quando o general francês invadiu Portugal, a corte portuguesa deixou a metrópole e se refugiou no Rio de Janeiro. D. João VI, caricaturizado como um gordo que gostava de comer frango, deu um nó no francês e trouxe o que se pode definir como início do processo modernizante do Brasil colônia. Não fosse Napoleão, até quando o atraso seria a marca registrada do país?
Em 8 de março de 1808, a corte desembarcou de 34 navios no Rio de Janeiro. Vieram em torno de 15 mil pessoas, que incharam a cidade que tinha cerca de 50 mil habitantes, era suja, feia e malcheirosa, na avaliação dos que chegaram. Não havia moradias dignas para todo esse povo. Na bagagem, a corte trouxe imprensa, numa cidade em que 99% da população era analfabeta.
Uma vez que a corte ficaria no Rio por sabia-se lá por quanto tempo, o governo tratou de prover a cidade de condições dignas de um burgo europeu, e introduzir iniciativas que promovessem o progresso do Brasil. Assim, o país ganhou fábricas, a casa da moeda. O Rio abrigou uma biblioteca nacional, jardim botânico, teatro, escolas. Viu o nascedouro de chafarizes para o abastecimento de água, instalou iluminação pública, ruas com calçadas, estradas, mercados.
A vinda da família real mudou a face do Rio de Janeiro. Embora a população local fosse analfabeta, a corte lia, e passou a ser imitada por quem tinha boas condições financeiras. De 1812 a 1830, o Brasil passou a contar com imprensa, no formato de revistas a maior parte. Nesse período, surgiram dez títulos, nove no Rio e um em São Paulo. De 1831 a 1850, foram 26 revistas.
O maior boom de novos títulos, segundo levantamento de Carlos Costa, registrados no seu livro A Revista no Brasil do século XIX: a história das publicações, do leitor e da identidade do brasileiro, ocorreu de 1850 a 1861, com 33 novos títulos. Da chegada da família imperial até 1900, o Brasil teve 122 revistas e jornais, 101 só no Rio. Boa parte, é fato, teve breve período de circulação.
A Revista no Brasil do Século XIX: a História da Formação das Publicações, do Leitor e da Identidade do Brasileiro
Como Costa já anuncia no título, as publicações foram importantes espaços para a formação da identidade brasileira. “Imprensa e nacionalidade nasceram juntas no nosso caso. Esse nascer se dá no século XIX, o século da ciência e do progresso”, assinala. Afora o surgimento em 1808 da Gazeta do Rio de Janeiro, uma espécie de Diário Oficial, a primeira revista do Brasil – As Variedades ou Ensaios de Literatura – nasceu na Bahia, em 1812.
Mesmo num contexto de “leitura rarefeita”, conclui Costa, “a imprensa foi parte integrante da formação da ideia de Brasil, de nacionalidade, na qual entram outros fatores, como música, costumes, hábitos alimentares, festas e cerimônias religiosas, o imaginário compartilhado. O Brasil e a imprensa nasceram juntos”.
Qual será o imaginário compartilhado de brasileiros e brasileiras em pleno século XXI? Quando pesquisadores do campo da comunicação analisam o surgimento de uma nova “ecologia comunicacional”, quiçá uma mudança civilizacional provocada por um bios virtual, já não é a imprensa o grande vetor da opinião pública. Como se viu na campanha de Donald Trump, nos Estados Unidos, de Jair Messias Bolsonaro, no Brasil, em 2018, o grande referencial foram as redes sociais. Embora notícias não-verdadeiras sempre tiveram espaço na imprensa no correr dos tempos, nunca, em outra época, a mentira teve tanta proliferação como nas últimas décadas.
Se olharmos as manifestações de bolsonaristas inconformados com o resultado das urnas, parece evidente que a concepção de brasilidade está mudando de contorno. Patriota é o sujeito que arma barraca em frente a quartéis, pede a intervenção das forças armadas, embora diga que “o povo é soberano”, mas não reconhece a soberania manifestada nas urnas, “luta” contra o comunismo, sem ter a mínima noção do que se trata, agride instituições, e se considera o mais brasileiro dos brasileiros.
Nessa nova embalagem de “brasilidade” cabem mentiras, desinformação, enganação, agressões a quem não pensa como a gente, apoio à venda de riquezas do país a preço de banana... Assim, acampados em capitais fizeram festa com a desinformação de que o ministro Alexandre de Moraes fora preso, o presidente eleito estava hospitalizado, em 72 horas aconteceria a intervenção militar. O golpe! E mesmo que em 72 horas nada tivesse ocorrido, a ficha não cai: continuemos a luta com a bandeira verde/amarela erguida!
O que a nação levou 200 anos para construir – instalação de instituições republicanas, valorização da democracia, respeito aos três poderes da República, sentimento de pertença – começa a desmoronar. E como? Mentirosos, enganadores da opinião pública, governantes com interesses espúrios, recorrem ao novo bios para divulgar falsos dossiês, memes com fake news para manter seu rebanho motivado e semear o terreno voltado a ações antidemocráticas, golpistas, de desestabilização das instituições. O novo bios está sendo usado para a promoção de uma brasilidade anticidadã, numa época marcada no país pelo fanatismo e pela desinformação.
Não é sem motivo que brasileiros e brasileiras escolheram “esperança” como a palavra do ano, em escuta realizada pelo Instituto de Pesquisa Ideia. Depois do impedimento de uma presidenta por motivos pouco convincentes, desmanche de conquistas trabalhistas, quatro anos de desgoverno – o Brasil de volta ao mapa da fome, 700 mil mortos pela pandemia, índices pífios na economia – a cidadania se mostra esperançosa para enfrentar um novo período.
Esperamos que a nova ecologia comunicacional passe a receber um cuidado digno e honesto, de informação fidedigna, de valorização da cidadania e da democracia.
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A brasilidade ganha novos contornos, negativos. Artigo de Edelberto Behs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU