"Eu fico triste, porque não caiu apenas o personagem às vezes injustamente caricaturizado, noutras nem tanto, de Pedro Castillo. Caiu mais um espaço possível de mudança na América Latina, que tinha sido aberto a duras penas", escreve Bruno Cava em artigo publicado por UniNomade, 08-12-2022.
Pedro Castillo havia concorrido na eleição peruana como factótum de Cerrón, o político mais conhecido e experiente da esquerda, mas que não pôde concorrer devido à condenação por corrupção.
Porém, diferentemente de Haddad no Brasil em 2018, Castillo venceu o segundo turno, contra a filha de Fujimori e maior representante do fujimorismo, Keiko, que recentemente cumpriu dois períodos de prisão preventiva, com duração total de um ano, devido às revelações e investigações decorrentes da Lava Jato no Peru.
As campanhas de 2021 foram marcadas pela troca de acusações de corrupção entre os principais partidos, sobre os quais pesam inquéritos em andamento e algumas sentenças, mas também disputas extremadas ao longo do tecido social, transversalmente.
A polarização eleitoral entre Keiko e Castillo varreu alternativas de centro moderado-liberal e levou o país à beira da exasperação da violência política, como no Brasil de 2022.
Castillo se apresentou como outsider e ‘coisa nova’, um socialista enraizado no cristianismo popular e agrário, conservador em costumes, que liderou uma exitosa greve dos professores.
Sua vitória significou mais do que a vitória de seu partido de esquerda, assim como a de Lula em 2022. Foi a vitória de uma esperança por saída da crise, por um horizonte de mudança num cenário desolado de sucessivas calamidades e retrocessos.
A população peruana foi a mais afetada pela pandemia de covid-19, o sistema de saúde não deu conta e o número de mortes, proporcionalmente à população do país, explodiu em relação a outros. Além disso, a guerra na Ucrânia em 2022 levou ao aumento do preço dos combustíveis e fertilizantes, o que agravou a inflação de gêneros básicos, num cenário que já era de recessão.
A queda de Castillo não deixa de ser um drama, pois ele havia reunido ao redor de sua candidatura uma força social significativa para enfrentar o principal eixo de organização social, política e cultural do Peru contemporâneo, que é o fujimorismo.
Como se sabe, o fujimorismo tem três décadas e nasceu da vitória de um homem comum que superou a adversidade, Alberto Fujimori, o empreendedor que veio de baixo, estudou e se tornou bem sucedido. Fujimori havia ganhado a eleição de 1990 como o provinciano redentor contra as elites culturais representadas pelo candidato favorito, Mario Vargas Llosa, Nobel da Literatura e líder globalizado da então Frente Democrática.
O maior drama da queda de Castillo é o roteiro que ele escolheu para o ato final. O ex-presidente reproduziu, na forma exterior, o mesmo percurso do primeiro mandato de Fujimori.
Cercado pela classe política e ridicularizado por alguns trejeitos kitsch, Fujimori protagonizou o autogolpe de estado em 5 de abril de 1992, com a dissolução do Congresso, o anúncio de um governo de emergência, a reorganização do Judiciário e a convocação de uma Constituinte. A atual Constituição do Peru, de 1993, vem daí.
Fujimori capitaneava um projeto de transformação estrutural da sociedade peruana e, ao realizar o autogolpe, contou com grupos civis e militares que o apoiaram.
Reuniram-se, assim, as condições para o ‘Fujishock’ dos anos 1990: violento ajuste neoliberal associado a um Executivo autoritário, que não hesitou em reprimir as lutas e perseguir a oposição, inclusive com alguns casos de eliminação física de opositores.
Castillo representava a brecha para contestar o fujimorismo, daí ser um drama ter seguido o mesmo roteiro, mas sem sucesso. Não realizou uma avaliação acertada da conjuntura, a sua ação não foi politicamente virtuosa, e terminou abandonado por vários de seus próprios aliados e grupos.
Eu fico triste, porque não caiu apenas o personagem às vezes injustamente caricaturizado, noutras nem tanto, de Pedro Castillo. Caiu mais um espaço possível de mudança na América Latina, que tinha sido aberto a duras penas.
Me parecem acertados Lula, Boric e Petro, quando alertam como o sacrifício da já combalida ordem institucional e constitucional, em tempos tão críticos, é temerário, quer para defender alternativas apenas retoricamente radicais, quer para tentar golpear os adversários. Na presente circunstância global e local, é mais inteligente, do ponto de vista político, reconstruir os projetos de mudança sem atalhos autoritários.
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De passagem, os recentes desdobramentos no Peru (e no Chile pós-referendo) me trazem à mente, mais uma vez, a observação de Michel Foucault em seu curso célebre de 1979: o neoliberalismo é tão efetivo e parece sempre reaparecer no final, para preencher o vazio e o cansaço, porque conseguiu desenvolver o que o filósofo chama tecnicamente de ‘governamentalidade’.
Isto é, o projeto neoliberal formou uma produção de subjetividade (empreendedora, empresarial, crise como destruição criativa) à altura das transformações que propõe (ajuste estrutural), enquanto o socialismo real no século XX falhou em entregá-la. Daí ser chamado apenas de “modelo” ou “ideal”, sendo obrigado, quando chega ao poder, a reeditar formas mais antigas e antidemocráticas da arte de governar.