30 Novembro 2022
Há sete anos, quando ainda eram poucas as críticas aos algoritmos das redes sociais e o vício em internet soava como um debate contra o progresso, Jonathan Crary decidiu publicar um livro na contracorrente: 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Com esse título, alertava sobre como as grandes invenções das empresas de tecnologia estavam cada vez mais concentradas em nos manter conectados o dia todo, com ferramentas que não paravam de absorver nossa capacidade de atenção.
Agora, após uma pandemia e em plena crise de identidade daquelas empresas de tecnologia por esses desenvolvimentos, esse professor da Universidade Columbia dá um passo além e fala sobre um mundo em que o capitalismo está condenado. Segundo suas explicações, devemos nos preparar para o fim do sistema, sem saber se o que virá será algo melhor ou muito pior.
Com o título Tierra quemada: hacia una sociedad poscapitalista, o autor narra o futuro que está por vir, com diferentes exemplos e se apoiando em pensadores e escritores de ficção científica. Usando como fio condutor e última fronteira a evolução da internet, este professor de teoria e arte moderna esmiúça o que considera os grandes erros do complexo da internet.
Cada novo objeto de debate que surge graças à rede é um passo a mais para a desintegração da sociedade da forma como a conhecemos e concebemos. Das redes sociais ao bitcoin, passando pelos bilionários do Vale do Silício e o boom da tecnologia chinesa, tudo são estertores de um corpo que não dá mais de si. “A ideia que nos venderam, nos anos 1990, de que a história estava acabando e que isto era o que viveríamos para sempre foi completamente superada”, comenta.
A entrevista é de Guillermo Cid, publicada por El Confidencial, 24-11-2022. A tradução é do Cepat.
Lendo seu livro, é impossível não ficar com a sensação de que você odeia a internet. Concorda?
Não, essa seria uma palavra completamente inadequada. Sou um erudito, um intelectual. Busco ver os problemas do ponto de vista histórico e social, mas considero que também existe a responsabilidade de avaliar, retroceder e examinar quais são algumas das consequências de determinadas instituições, determinadas tecnologias etc.
Faço essa pergunta porque, ao longo de todo o seu livro, vai enumerando como erros quase tudo o que existe ‘online’. Cada ferramenta tem mais pontos negativos do que positivos.
Permita-me esta explicação. Quando decidi escrever o livro, não queria acrescentar mais um título a essa imensa pilha de livros que criticam os piores aspectos da internet, mas ao mesmo tempo aceitam a inevitabilidade e necessidade deste sistema. Tudo ou boa parte do que conto no livro poderia ser visto de um ponto de vista mais positivo, mas isso já se fez muito, eu queria oferecer uma perspectiva diferente.
Não é que eu seja contra a internet, em nenhum momento peço para que as pessoas se desconectem. Abordo a crença errônea de que o sistema que estamos habitando, que chamo de complexo da internet, veio para ficar como se fosse uma característica permanente do planeta em que vivemos.
Ou seja, sua ideia é mostrar que existem alternativas.
Sim. Gostaria que as pessoas se perguntassem: “Existem outras formas de viver no planeta?”. Obviamente, escrevo o livro a partir do que observo como um momento de crise, de crise mundial sem precedentes. Um momento em que se coloca em dúvida até mesmo o que pessoas como Bill Gates, Steve Jobs, Elon Musk e tantos outros supostos gênios e suas empresas nos disseram que seria para sempre.
No livro, volto aos anos 1990, quando muitos identificaram a chegada da internet de forma massiva. Aquele foi um momento interessante, todos nós escutamos de teóricos, intelectuais e políticos que era o fim da história. Que, finalmente, viveríamos em uma situação global relativamente estável, que se basearia fundamentalmente em um mundo impulsionado pelo mercado. Como quando Margaret Thatcher, nos anos 1980, disse que não há DNA alternativo ao livre mercado.
É possível pensar em um futuro sem internet?
Quando olho para possíveis cenários futuros, não estou dizendo que o que estamos usando agora irá desaparecer. Estou dizendo que a forma como a rede está disponível e como a usamos podem mudar radicalmente. E estou dizendo isto do ponto de vista de alguém que não vem de um ambiente tecnológico, na verdade, estou falando mais de questões sociais e até mesmo éticas.
Algo que gosto de apontar é como as relações interpessoais estão se tornando rotineiras de forma incerta, empobrecidas, estão se esvaziando de toda cor e vitalidade graças à rede. Algumas pessoas dirão: “oh, não podemos nos preocupar com isso, a internet nos ajuda a fazer as coisas”, mas, na realidade, isso acontece e não sabemos quais podem ser suas consequências finais. A ideia é pensar que talvez isso não seja necessário ou que pelo menos é possível mudar.
Relaciono muito a forma como o livro fala da internet com a eletricidade. No texto, inclusive, você menciona essa comparação.
Há muitas semelhanças. Thomas Edison é uma figura histórica crucial. Graças a ele, temos invenções essenciais que transformaram o mundo, mas a realidade é que o modelo atual de uso de energia é simplesmente insustentável. Não é possível continuar contando com energia elétrica ilimitada para um planeta de 8 bilhões de pessoas.
Precisamos começar a pensar a esse respeito, pois, caso contrário, não seremos capazes de imaginar formas de transferir algumas de nossas atividades para fora desses sistemas de energia elétrica incrivelmente exigentes. Corremos o risco de que, caso isso aconteça de repente, não estejamos preparados. É algo muito parecido com o que acontece com a internet, pois como entendemos que ela veio para ficar, não conseguimos pensar além.
Bem, a guerra mudou um pouco essa percepção, não é?
Sim, e é curioso, porque após décadas acreditando que temas como a eletricidade, por exemplo, eram intocáveis, em seis meses tivemos que aprender a passos forçados que não é assim. Não é algo permanente por si, mas algo muito frágil que devemos repensar.
Voltando aos anos 1990 e a essa ideia de mercado global, penso na World Wide Web. É um conceito interessante, porque mostra como se via o futuro naqueles anos, como algo planetário, com uma espécie de formas de circulação e transporte etc. que seriam respeitadas em todo o mundo, durante décadas. Contudo, quem sabe o que veremos nos próximos 12 meses?
Agora, estamos vendo como as empresas de tecnologia estão demitindo milhares de empregados. Isso também rompe com a ideia que tínhamos dessas companhias?
É uma questão crucial. O que essas decisões expõem é que a tecnologia não é um sistema eterno que se mantém por si, mas, na verdade, depende de uma força de trabalho humano que realmente sustenta a forma como funciona. E depende do financiamento de cada empresa.
A crise atual indica que, de alguma forma, a internet provavelmente existirá por muito tempo, mas não está claro como isso se dará. Não tento prever o que acontecerá, mas acredito que a rede se transformará em ambientes mais segregados. Penso que estamos caminhando para um mundo onde as pessoas terão prioridades que enfrentarão com muito mais convicção e serão muito mais individualistas.
Ou seja, o futuro será, sim ou sim, mais individualista.
Para mim, a internet ampliou ou intensificou aspectos da sociedade estadunidense que existem há muito tempo, como o individualismo. Estimula a ilusão de autonomia e de controle individual. A ideia de que quando estamos diante de nosso teclado e da tela existe este mundo de possibilidades para melhorar o que somos, todo um capital simbólico que podemos acumular.
Também explora o sonho de nos tornarmos algo importante, sem a necessidade de mais ninguém. Os intrépidos empreendedores de nossas próprias vidas. Por último, amplia a vontade estadunidense de posse e consumo, e o ponto de vista financeirizado em muitos aspectos diferentes de nossas vidas.
Nos últimos 20 anos, isso está sendo levado para outras culturas, outras sociedades, outras nações diferentes. A cultura da internet muito estadunidense se impõe e são fragilizadas algumas das formas mais antigas com as quais as sociedades se mantiveram unidas.
No livro, falo sobre como as atividades mais sociais ou as formas como nos conectamos com outras pessoas são transferidas para a internet. Há um enfraquecimento de diferentes eventos, diferentes processos, diferentes instituições que existiam antes, na falta de uma melhor forma de dizer, face a face.
O que pensa do papel que pessoas como Elon Musk estão desempenhando?
Elon Musk é um exemplo de que o capitalismo está se desintegrando. É parte do que alguns de nós chamamos de cultura bilionária, uma espécie de consequência da cultura das celebridades que levou tipos de pessoas assim a se apresentarem como uma divindade, com seguidores radicais.
Não importa como esses seguidores entendem a injustiça e a desigualdade, a admiração a esses personagens está acima dessa moral pessoal. Não estou dizendo que a inveja não existe, claro, mas agora vemos o bilionário como a grande esperança de nossa ascensão social.
A corrida espacial de bilionários como Bezos, Musk ou Richard Branson é um exemplo claro de como essas celebridades tentam criar a ideia de que caminhamos para um futuro promissor, no qual todos iremos para o espaço e que estão marcando o caminho. O que, do meu ponto de vista, é completamente absurdo.
Tudo isso nunca passará de uma espécie de brinquedo para essas pessoas. É curioso, porque sua imagem é muito parecida aos personagens dos romances de ficção científica de Philip K. Dick, que os escreveu nos anos 1970. Pessoas inimaginavelmente ricas que querem ser gênios científicos.
Por último, sei que no livro não há comentários a esse respeito, mas com tudo o que aconteceu durante todo esse tempo, preciso perguntar. Como você observa o ‘boom’ das criptomoedas?
Infelizmente, não sei muito sobre cripto. Tentei compreender e tenho alguns amigos que perderam muito dinheiro com isso. Ou pelo menos parece ter desaparecido. Pelo que sei, vejo o fenômeno como uma manifestação de um sistema global que está se tornando cada vez mais instável.
Você já sabe, todo mundo fala: “oh, vamos mudar para uma economia totalmente digital, onde o papel-moeda se tornará obsoleto”. E novamente isso não parece vir. Um novo caso de como o sistema que sonhávamos ter não está tão claro como nos disseram e que o futuro é incerto.
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“Elon Musk é um exemplo de que o capitalismo está se desintegrando”. Entrevista com Jonathan Crary - Instituto Humanitas Unisinos - IHU