“Na agricultura, vemos uma conjunção semelhante do orgânico e do inorgânico, e nas práticas de cuidado humano das plantas e do solo, mesmo nos campos sobredeterminados de concreto. As composições essenciais do solo são aqui cuidadosamente nutridas e mantidas, não no sentido de serem possuídas, mas guiadas em um caminho para a regeneração. Se confiarmos na capacidade restauradora da agricultura urbana – não no número de parcelas plantadas ou nos quilos de alimentos produzidos, mas em seu potencial de nos reconectar com o espaço e o tempo cotidianos da vida, podemos chegar mais perto de um sentido de cuidado planetário nos lugares onde moramos”, escrevem Cymene Howe, Alejandra Osejo-Varona e Keren Reichler.
Keren Reichler é doutoranda no Departamento de Antropologia da Rice University, em Houston, Texas. Baseando-se em estudos científicos culturais e transdisciplinares, seu trabalho investiga questões relacionadas à agricultura e sistemas alimentares, tecnologia e mudanças climáticas. Sua pesquisa atual explora a circulação de tecnologias agrícolas de sensoriamento remoto nos EUA e na Argentina no contexto de condições climáticas cada vez mais precárias. Ela se formou na Wesleyan University pelo Programa Ciência e Sociedade com concentração em Antropologia.
Alejandra Osejo é doutoranda em Antropologia na Rice University. Atua na interface da Antropologia Ambiental, Estudos Científicos e Tecnológicos e Cartografia Crítica. Sua pesquisa se concentra em conflitos socioecológicos e controvérsias sobre a proteção da água na Colômbia. É bacharel em Antropologia pela Universidade de Cauca e mestre em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Tem experiência em pesquisa interdisciplinar sobre governança ambiental.
Cymene Howe é doutora, professora de Antropologia na Rice University; especializada em fenômenos ecossociais e mundos mais do que humanos. Escreveu os livros Intimate Activism (Duke, 2013) e Ecologics: Wind and Power in the Anthropocene (Duke, 2019) e coeditora do The Johns Hopkins Guide to Theory and the Anthropocene Unseen: A Lexicon (Punctum, 2020). Sua pesquisa atual examina a dinâmica de mudança entre pessoas e corpos de gelo na região do Ártico e o aumento do nível do mar em cidades costeiras ao redor do mundo. Ela também iniciou o primeiro memorial do mundo para uma geleira afetada pelas mudanças climáticas: a geleira Okjökull na Islândia.
Girassol visto da cerca de arame, na horta urbana Tres Roble, em Houston, Texas
Foto: Cortesia das autoras.
Esta cidade está saturada de concreto. Como a maioria das cidades, Houston é composta de asfalto e concreto, plástico e aço, materiais que fornecem a infraestrutura para mobilidade (de carros, trens, caminhões) e estabilidade (para residências, prédios de escritórios, estacionamentos). Há um custo para o concreto, no entanto, na forma de uma paisagem endurecida que, quando a chuva torrencial vem (como vem) e quando os furacões atingem a cidade (o que ocorre) há poucos lugares para a água ir, fluir, drenar. O “hiperobjeto” (MORTON, 2013) da crise climática se acumula e evapora em nossa pele e as pessoas vivem sintonizadas com o fato de que outra tempestade está chegando. Houston, entretanto, também é uma cidade permeável que é verdejante com campos abertos de gramíneas selvagens, montes de lama e igarapés que mergulham ao longo dos cursos de água. Ao longo desses terrenos, os agricultores encontram seu caminho entre o asfalto e o concreto para criar solos regenerativos. Em condições de precariedade climatológica e de fecundidade abundante, os agricultores urbanos fazem novos solos para a cidade.
As mãos do agricultor Pierre descobrindo rabanetes no solo, Plant It Forward Farm, Houston, TX
Em nossa pesquisa antropológica com agricultores em Houston [1], ficamos impressionados com o paradoxo do cuidado no concreto: como você compõe o material que faz a vida biótica prosperar em um lugar impregnado de modernidade petrocapitalista? Os insights da ativista ambiental Vandana Shiva são importantes aqui, pois ela reconhece a necessidade de pensar o crescimento não do ponto de vista econômico, mas sim em termos de manutenção de sistemas vivos e ecologias (SHIVA, 2015, p. 14); como ela diz, precisamos nos “religar” ao solo. A responsabilidade pelo clima (em escala local e planetária) vem na forma geminada de rejeitar lógicas fossilizadas de crescimento econômico e cuidar dos solos onde habitamos. Agricultores urbanos praticam a “religação de solos” de Shiva criando composições terrenas, um amálgama de composto, criaturas e resíduos e, criticamente, através da recuperação de terras (MUZIN, s.d.). Algumas vezes, essa recuperação envolve britadeiras e maquinário de alto gasto energético; outras vezes, são simplesmente mãos espalhando concreto. Lentamente a sujeira emerge. Eventualmente, com cuidado e infusão multiespécies de potencial biótico, haverá solo.
Remoção de tubos de concretos na horta urbana Tres Robles, em Houston
Foto: Small Places
Os agricultores cultivam o crescimento nos interstícios da cidade, navegando entre infraestrutura e toxicidade, em uma cidade que abriga o maior complexo petroquímico dos Estados Unidos [2]; ou o que alguns de nós chamam de “Petrópolis” (JOHNSON; BENNETT, 2022). Em telhados e terrenos baldios, os agricultores urbanos que compartilharam suas histórias conosco estão atentos à composição do solo – sua aridez e umidade, sua aeração e formas de vida microbianas, sua matéria biótica e abiótica, seu corpus químico. Mas um novo solo para a cidade exige também uma atenção ao lugar e uma preocupação com o tempo.
Um estudo de 2014 usando o Google Earth localizou cerca de 70 locais de agricultura urbana em Houston, incluindo hortas comunitárias e sem fins lucrativos (BROADSTONE; BRANNSTROM, 2017). A Tres Robles é um desses lugares onde a vida emerge do concreto. A organização sem fins lucrativos criou uma horta urbana em um estacionamento abandonado e agora cultiva ervas e frutas, legumes e flores. O ponto central de sua missão é lidar com a falta crônica de acesso a produtos frescos no East End de Houston, um bairro historicamente latino. Ao tornar acessíveis alimentos a base de plantas de boa qualidade, a Tres Robles também se vê construindo uma comunidade através do processo. Seu pequeno terreno é um reservatório de regeneração – um local de crescimento e restauração.
Tommy Garcia-Prats, cofundador da horta, explica que a retirada do cimento foi o primeiro passo para esses cuidados bióticos – tanto para as plantas quanto para as pessoas –, permitindo que uma relíquia industrial fosse transformada em fileiras de plantações, plantas florescentes e o fluxo livre de água através de um ecossistema mais biótico, menos obstruído pelo concreto. Como outras hortas urbanas, a Tres Robles, como o próprio nome indica (do espanhol: “horta/chácara dos três carvalhos-robles”), valoriza as árvores. Sua sombra permite que as plantações prosperem; elas esfriam o clima, armazenam carbono e proporcionam um alívio do esplendor do sol do sul. Os “Três Carvalhos” também abrem espaço para insetos polinizadores e pássaros, anfíbios e répteis. As espécies se reúnem neste lugar.
Faixas de vegetais em germinação na horta urbana Tres Robles
Foto: Small Places.
Os cenários das hortas urbanas de Houston parecem, sentem e soam diferentes da cidade que as cerca. Elas exalam o cheiro das plantas que viraram sementes e composto se instalando para a estação. Os pássaros são barulhentos e o ruído da rodovia se torna um zumbido de fundo. No entanto, as hortas urbanas não estão impedindo o avanço do aumento da temperatura da cidade, nem a permeabilidade do novo solo urbano impede as inundações que continuam a devastar. As altas taxas de pobreza de Houston fizeram delas o maior banco de distribuição de alimentos do país e as frutas e legumes cultivados por agricultores urbanos não podem alimentar os quase 724.750 indivíduos com insegurança alimentar na área da Grande Houston (SCHULER; KOKA, 2018).
Por que, então, fazer um novo solo para a cidade simplesmente para plantar alimentos? Em nossas conversas com os agricultores urbanos, encontramos um acordo consistente: esses espaços têm grande poder ético e material. Eles trabalham para reverter a impermeabilidade do ambiente construído e criam solidariedade entre as comunidades, oferecendo alimentos saudáveis e de qualidade aos necessitados. As hortas urbanas são, nesse sentido, figuras políticas que desafiam a desigualdade de acesso a alimentos saudáveis para as pessoas mais vulneráveis e apresentam uma resposta crítica ao crescimento acelerado sob o petrocapitalismo e suas consequências ambientais. Cuidar do solo, das plantações, das criaturas e das pessoas afetadas também oferece religações sensoriais com a reprodução da vida e dos laços sociais que a tornam possível. No solo das hortas urbanas, cresce a mensagem de que é possível reverter o caminho que nos levou à crise atual. A questão que fica é se vamos fazer o tempo, a tempo, para fazê-lo?
Os muros da horta urbana Tres Robles, em Houston
Foto: Cortesia das autoras.
O congelamento do inverno de 2021 trouxe histórias angustiantes de cuidado e perda para os agricultores urbanos. Árvores frutíferas e plantações foram destruídas em questão de minutos, acabando com a vida das hortas em toda a cidade. Em nossas conversas, também encontramos uma sintonia com um padrão climático diferente, de reverberação mais lenta. Além dos eventos climáticos catastróficos que aparecem nas notícias nacionais, as flutuações cada vez mais frequentes nas temperaturas marcadas por geadas tardias e ondas de calor repentinas são motivo de preocupação, muitas vezes pegando os agricultores desprevenidos e lutando para se adaptar rapidamente às mudanças nas condições. Muitos recorrem ao paciente processo de construção da vida no solo como uma estratégia de resiliência e adaptação ao clima. Mas construir o solo leva tempo.
Na horta urbana Plant It Forward, no sudoeste de Houston, logo após a saída da rodovia e adjacente a uma igreja pentecostal de língua espanhola, encontramos Rachel Folkerts, diretora do Farm Programs. Ela nos diz que levará pelo menos cinco anos para que esse solo seja produtivo. “Os solos aqui são desafiadores”, diz ela, “é um barro pesado. Temos 1524 milímetros de chuva por ano, e é comum que 250 mm caiam de uma só vez. Se os campos não estão drenando, as plantas não têm chance. O microbioma do solo não tem chance”. Por meio da construção de infraestrutura de drenagem adequada, aplicação de cobertura morta e compostagem e plantio de culturas de cobertura, os agricultores da Plant It Forward têm a tarefa de responder às necessidades imediatas de produção enquanto administram o solo com um cronograma expandido em mente.
O agricultor Pierre cuidando de uma plantação de rabanete na horta Plant It Forward, Houston
Foto: Cortesia das autoras.
O tempo de cuidado é prolongado no cultivo do solo, e muitas vezes conflita com o ritmo acelerado do desenvolvimento urbano. Folkerts refletiu sobre a temporalidade incomensurável das ecologias agrícolas em comparação com os cronogramas padrão para o planejamento da cidade. “É apenas uma forma de pensar totalmente diferente dos trimestres fiscais ou até mesmo no desenvolvimento de uma cidade, a longo prazo, isso são dez anos. Considerando que, a longo prazo, para um ecossistema, 100 anos não é realmente longo prazo para um ecossistema”. Muitos dos agricultores urbanos com quem conversamos expressaram tensões temporais semelhantes, destacando histórias de luta para acessar e manter suas hortas em terrenos urbanas. Eles compartilharam histórias de arrendamentos perdidos, sendo forçados a mudar de local e cultivando sob a constante possibilidade de despejo.
O futuro do gerenciamento de terras em Houston aponta para uma conversão mais concreta. De acordo com um relatório publicado recentemente sobre como o desenvolvimento e as mudanças climáticas afetarão as terras agrícolas com base em cenários futuros projetados, 49% das terras de plantio e de pastagem no Condado de Harris serão convertidas em propriedades residenciais e comerciais até 2040 no cenário “business as usual”, com 83% da conversão do Condado de Harris ocorrendo nas melhores terras agrícolas do estado (HUNTER et al., 2022). O ritmo de desenvolvimento e a incessante pavimentação da cidade são outras instâncias da invasão colonial em terras que já abrigaram os povos Sana, Atakapa-Ishak, Coahuiltecan, Karankawa e Akokisa.
Lote de 0,5 hectare em uma das primeiras operações de remoção de concreto do solo na horta urbana Tres Roble
Foto: Small Places.
Os urbanistas muitas vezes visam tratar os males da mudança climática nas formas de pensamento de engenharia: infraestruturas e intervenções tecnológicas. O Plano Diretor de Recuperação de Houston [3] esquematiza como evacuar a água, como aumentar a porosidade, como diminuir o efeito de ilha de calor de uma imensa metrópole. O trabalho da agricultura urbana também oferece uma resposta tanto às mudanças climáticas quanto às lógicas de crescimento que as geraram: ao criar mais lugares para solo e água, as hortas urbanas são um pequeno antídoto para catástrofes causadas pelo clima, como enchentes e furacões. Os perigos das mudanças sazonais, incluindo geadas repentinas e ondas de calor mais profundas e devastadoras que podem destruir plantações da noite para o dia são uma fonte de preocupação para os agricultores. Eles estão aprendendo a se adaptar a um clima imprevisível agora e no futuro. Os impactos das mudanças climáticas permeiam o trabalho diário dos agricultores com o solo, apresentando desafios e oportunidades, tanto espaciais quanto temporais, para construir resiliência.
Enquanto a cidade em concreto sufoca e sufoca o solo e a vida emergente, é também, paradoxalmente, um lugar de refúgio. Lembre-se de que o próprio Lovelock defendia que migrássemos para as megacidades para evitar os perigos mais profundos das mudanças climáticas. “Uma cidade é uma unidade menor para controlar e regular a composição da atmosfera, do solo”, diz ele, “bastante semelhante aos ninhos de invertebrados de vários tipos: formigas, vespas, abelhas” [4].
Menta, ervilhas de cheiro, acelga, folhas e mangueira na horta urbana Forward It Plan, Houston
Foto: Cortesia das autoras.
Na agricultura, vemos uma conjunção semelhante do orgânico e do inorgânico, e nas práticas de cuidado humano das plantas e do solo, mesmo nos campos sobredeterminados de concreto. As composições essenciais do solo são aqui cuidadosamente nutridas e mantidas, não no sentido de serem possuídas, mas guiadas em um caminho para a regeneração. Se confiarmos na capacidade restauradora da agricultura urbana – não no número de parcelas plantadas ou nos quilos de alimentos produzidos, mas em seu potencial de nos reconectar com o espaço e o tempo cotidianos da vida, podemos chegar mais perto de um sentido de cuidado planetário nos lugares onde moramos. O paradoxo do cuidado no concreto e o compromisso dos agricultores urbanos de Houston em criar um solo para a cidade também nos ajudam a perguntar como as práticas resilientes ao clima se desdobram em um sentido expandido de lugar e tempo. E perguntar que novos solos vão crescer.
[1] Nossa pesquisa foi apoiada pela Fundação Mellon por meio da Iniciativa Diluvial Houston, da Rice University.
[2] Conferir o artigo “Houston Ship Channel recognized as the largest petrochemical complex in the US”. Disponível em: https://bit.ly/3zixYYb. Acesso em: 26 out. 2022.
[3] Conferir o artigo “Resilient Houston”. Disponível em: https://bit.ly/3D8GoSZ. Acesso em: 26 out. 2022.
[4] Conferir o vídeo “How to save humankind (according to James Lovelock)”. YouTube. Disponível em: https://bit.ly/3N8Agi2. Acesso em: 26 out. 2022.
BROADSTONE, S.; BRANNSTROM, C. Growing Food Is Work: The Labour Challenges of Urban Agriculture in Houston, Texas. In: WINKLERPRINS, M. G. A. (Ed.). Global Urban Agriculture, p. 66-78. Wallingford: CABI, 2017.
HUNTER, M.; SORENSEN, A.; T.; BECK, S.; SHUTTS, S.; MURPHY, R. Farms Under Threat 2040: Choosing an Abundant Future. Washington, D.C.: American Farmland Trust, 2022.
JOHNSON, L.; BENNETT, C. (Eds.). More City than Water: A Houston Flood Atlas. University of Texas Press, 2022.
MORTON, T. Hyperobjects: Philosophy and Ecology after the End of the World. University of Minnesota Press, 2013.
MOUZIN, S. “The Seeds of Hope: Cultivating Utopias Amidst Chaos.” Weather Matters, s.d. Disponível em: https://www.weathermatters.net/the-seeds-of-hope.
SHIVA, V. Soil, Not Oil: Climate Change, Peak Oil and Food Insecurity. Penguin Random House, 2015.
SCHULER, D.; KOKA, B.R. Challenges of Social Sector Systemic Collaborations: What’s Cookin’ in Houston’s Food Insecurity Space? Building Better Cities. Houston: Rice Kinder Institute for Urban Research, 2018.