Guerra da Ucrânia: o encontro entre a degradação política e a mutação climática. Debate com Miguel Mellino no IHU

Montagem de ponte na região central de Kiev sendo destruída. Imagem: PxHere

Por: Guilherme Tenher Rodrigues e Wagner Fernandes de Azevedo | 19 Abril 2022

 

Novo Regime Climático, Antropoceno, pandemia, aporofobia, refugiados, racismo... conceitos que ganham visibilidade nos últimos anos para tentar explicar o tamanho da crise civilizacional. Os fatores e as interpretações são diversas, mas as vítimas se assemelham. A exploração das elites sobre os pobres e o planeta é uma prática colonial que não cessou nem mesmo com as independências políticas. Por isso, emergiu no Sul Global o pensamento decolonial, uma resistência e uma alternativa construtiva pelas vítimas das crises geradas pela colonialidade. Uma práxis desde os corpos, Terra e modos de viver subjugados pela exploração do capital.

 

Para ajudar na crítica dessa transição epocal, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove a palestra Pulsão decolonizadora e desafios. Pós-colonial e decolonial na contramão da pandemia e da guerra, com o Prof. Dr. Miguel Mellino, da Università di Napoli L'Orientale, o convidado desta semana para a edição especial do IHU Ideias, nesta terça-feira, 19-04, às 10h30min. A conferência será transmitida na homepage do IHUcanal do Youtube e página do Facebook. A participação é aberta e gratuita.

 

Novo Regime Climático: um caminho sem volta

 

 

 

Os últimos anos foram marcados por inúmeros eventos disruptivos. O mais desencadeante deles, a pandemia, iniciou no final do ano de 2019 e ainda perpetua-se nas esferas sociais, econômicas e ambientais dos Estados nacionais. Além dos efeitos mais imediatos vivenciados pela população global, como os alarmantes índices de contágio, o fechamento das fronteiras, o distanciamento e isolamento social, o esgotamento dos sistemas de saúde e as fortes transformações no mundo do trabalho; pode-se dizer que a realidade pandêmica, desde sua intensificação e alastramento, desvelou um problema estrutural que fundamenta os princípios da economia global desde a mundialização colombiana, mas que se intensificou descontroladamente nas últimas quatro décadas: a divisão internacional do trabalho.

 

A globalização, tal como concebida pelos modelos liberalizantes que tomavam corpo nas politicas econômicas nacionais dos países desenvolvidos já na década de 80, partiu de princípios teóricos econômicos condizentes ao uso eficiente e constante de recursos naturais e da força de trabalho. O desmantelamento do sistema produtivo fordista, sua metamorfose para o “pós-fordismo”, ou modelo de acumulação flexível cujo funcionamento seria impossível sem a existência de um sistema financeiro global e ubíquo mediado por uma infraestrutura sem precedentes nos setores de informação e comunicação, corroboraram para o aceleramento do neoliberalismo, um fenômeno societário global que opera intensa e simultaneamente nas esferas psico e tecnossociais.

 

O neoliberalismo não só preparou, social e psicologicamente, o campo político para a ascensão de movimentos sociais autoritários e populistas, como, materialmente, intensificou a divisão geográfica do trabalho internacional entre as nações que “naturalmente” destinam-se a exportar commodities e demais recursos naturais para “aquelas do norte do ocidente” que historicamente alojam os centros de comando do capital e destinam seus usos ao redor do planeta.

 

A dependência das economias nacionais com relação ao mercado global financeirizado foi severamente questionada com as restrições inerentes à chegada da pandemia. As desigualdades socioeconômicas intra e internacionais emergiram na superfície do cotidiano de milhares de pessoas em uma imensidão de formas. De um lado, observa-se o impacto psicofísico imediato da Covid-19, seja pelo desemprego, pela fome, pela falta de acesso à saúde, à educação e aos demais sistemas de proteção social. De outro lado, dado o uso intensivo de força de trabalho e recursos naturais inerentes à natureza predatória do sistema econômico atual, os desastres naturais, a perda da biodiversidade em inúmeras regiões do globo, a contaminação de solos e águas, a crise na habitação e até mesmo a própria pandemia e o desencadeamento de futuras zoonoses podem ser caracterizados como efeitos da mentalidade econômica mainstream e da sua característica híbrida entre a prepotência e a ignorância frente à complexidade biológica do planeta.

 

Assim, o que hoje se vive também é um resultado de ações antrópicas iniciadas há séculos atrás, sobretudo no pós-Segunda Guerra Mundial e que alguns estudiosos chamam de “A Grande Aceleração”. Como bem evidenciado pelo Papa Francisco no capítulo 18 da Encíclica Laudato Si':

 

A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por 'rapidación'. Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objetivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande parte da humanidade”.

 

 

Aqui, Papa Francisco nos alerta para as causas humanas de uma crise sem precedentes em complexidade, intensidade e, portanto, importância: a crise climática. Em linhas gerais, pode-se dizer que o peso das atividades antrópicas sob o sistema terrestre nos últimos séculos foi de tal magnitude que suas nefastas consequências voltam-se inteiramente para a humanidade através de um novo regime climático, ameaçando a sua própria existência.

 

O antropólogo francês Bruno Latour compreende que o modo de viver do Antropoceno, isso é, uma era da ação autorreferencial do homem sobre o domínio da natureza, chegou a uma situação limite para a existência humana. Para Latour, entra-se no Novo Regime Climático:

 

 “É essa pressão que se exerce sobre nós diante da certeza de que devemos rever toda a organização do nosso mundo material. A questão climática faz da habitabilidade do planeta o problema fundamental, o centro da nossa atenção política. Esta torna-se a questão prioritária, à qual todas as outras questões políticas estão agora sujeitas. O Novo Regime Climático introduz uma inversão completa da cosmogonia, com a descoberta – surpreendente, deve-se admitir, para os modernos que somos – de que nós temos proprietários e que, portanto, somos 'posseiros', de certa forma.” 

 

A filósofa Alyne Costa explica que para Latour as mudanças climáticas são um elemento do colapso ecológico, o que mais corretamente deveria ser chamado de mutações, "as quais, não se restringindo ao domínio da ecologia, exigem também a modificação de nossa concepção corrente (antropocêntrica) de política e de sociedade". No Novo Regime Climático, insta-se a "abandonar o delírio de excepcionalidade humana e aprender a melhor coexistir com os seres que, até pouco tempo, tratávamos como meros recursos".

 

 

Este dramático quadro já é apontado há anos pela comunidade científica que busca expressar sua preocupação e orientar as ações políticas através de encontros internacionais sobre o clima. Uma das expressões mais importantes deste tipo é o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC, criado no final da década de 80 como uma das iniciativas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e da Organização Meteorológica Mundial.

 

Nos últimos anos, o IPCC apresentou relatórios extensivos sobre as transformações na geosfera e biosfera do mundo e suas futuras consequências caso nada seja feito para mudar os níveis de poluição e degradação ambiental inerentes ao sistema econômico consumista e predatório contemporâneo. “Em 2010-2019, as emissões globais médias anuais de gases de efeito estufa atingiram os níveis mais altos da história da humanidade”, aponta.

 

Segundo o José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia, “a taxa de aquecimento dos oceanos dobrou, desde o início dos anos 90, e as ondas de calor marinhas estão se tornando mais frequentes e intensas – tendências que estão remodelando os ecossistemas oceânicos e alimentando tempestades mais poderosas. E, à medida que os oceanos absorvem o CO2, eles se tornam mais ácidos, o que ameaça a sobrevivência dos recifes de coral e a vida marinha, devendo provocar maior insegurança alimentar”.

 

Também a partir de uma leitura dos últimos relatórios do IPCC, José Eustáquio destaca que “produção atual de alimentos está comprometendo a produção futura devido à degradação dos solos e das fontes de água potável. O espectro da fome deve voltar a assustar o mundo no século XXI".

 

 

As concentrações de metano e óxido nitroso, ambos significativos GEE, foram mais altas do que em qualquer momento em pelo menos 800.000 anos; as temperaturas globais de superfície aumentaram mais rapidamente desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos durante pelo menos os últimos 2000 anos; e as emissões causadas pelo homem são responsáveis pela quase totalidade do aquecimento global” são alguns exemplos dados pelo IPCC sobre o ineditismo ecológico enfrentado pela sociedade contemporânea e a urgente necessidade de alinhar os planos econômicos e políticos rumo a um horizonte comum, de desenvolvimento humano integral sustentado em práticas opostas àquelas presenciadas hoje.

 

Além dos diagnósticos, o IPCC aponta várias alternativas de, ao menos, mitigar os efeitos socioambientais negativos dos atuais sistemas de produção e consumo. A regulação do sistema financeiro, os investimentos em modelos de negócios ecologicamente sustentáveis, o aumento no uso do transporte coletivo e outros meios de locomoção sem combustão, o alinhamento aos Objetivos do Desenvolvimento SustentávelODS, entre outros, são alguns exemplos apontados pelos relatórios.

 

Entretanto, de acordo com o IPCC,  “limitar o aquecimento global exigirá grandes transições no setor de energia. Isso envolverá uma redução substancial no uso de combustíveis fósseis, eletrificação generalizada, eficiência energética aprimorada e uso de combustíveis alternativos (como hidrogênio)”.

 

O secretário-geral das Nações UnidasAntónio Guterres, disse que “uma mudança para as energias renováveis ​​consertará nosso mix global de energia quebrado e oferecerá esperança a milhões de pessoas que sofrem impactos climáticos hoje. As promessas e planos climáticos devem ser transformados em realidade e ação, agora. É hora de parar de queimar nosso planeta e começar a investir na abundante energia renovável ao nosso redor”.

 

Em 2020, Antonio Turiel, pesquisador do Instituto de Ciências del Mar de Barcelona (CSIC) e doutor em Física Teórica, vai mais longe ao afirmar que “o decrescimento econômico é inevitável, teremos que decidir se o fazemos por bem ou por mal”. Segundo ele, se as sociedades não se mexerem para modificar suas matrizes econômicas, vamos enfrentar uma espécie de “petrocalipse”.

 

Digamos que o petrocalipse já pode vir, se não fizermos nada. Neste cenário, as consequências são conhecidas. Em primeiro lugar, haveria um decrescimento energético geral que provocaria um aumento de preços em quase tudo, devido à dependência que temos do petróleo. Isto nos colocaria em uma crise econômica profunda, em um cenário com preços voláteis, com quedas e altas bruscas”, relata Antonio Turiel.

 

 

A conjuntura crítica do Novo Regime Climático: guerra e pandemia

 

O conceito de conjuntura crítica é um instrumental das ciências sociais e humanas para explicar o espaço de tempo crucial para que haja uma mudança de curso no desenvolvimento da história do objeto analisado: o Novo Regime Climático.

 

Para Turiel e Juan Bordera, a Guerra da Ucrânia representa o primeiro ponto disruptivo desta mudança compulsória nas matrizes energéticas, caracterizando-a como “a primeira guerra da ‘Era do Descenso Energético'”. “Tem se falado muito sobre as motivações geopolíticas e geoestratégicas da invasão russa, sobre os motivos que levaram Vladimir Putin a um ato tão ousado de agressão. Geralmente tentando entender, mais que justificar, o motivo dessa atrocidade. A anexação do rico e russófilo Donbass, o controle do Mar Negro, a intenção de colocar um governo dócil em Kiev ou o freio à expansão indecorosa da OTAN. Razões que, sem dúvida, pesaram muito na mão implacável que governa o Kremlin há décadas. Mas há um fator ao qual quase não se deu atenção em toda essa discussão: o fator energético”.

 

“Vivemos no Século dos Limites, e na Rússia, mais do que em outros países, isso é bem conhecido e até reconhecido publicamente. Nos gabinetes do Kremlin sabe-se que a atual bonança dada pela abundância de recursos minerais, com os recursos energéticos na vanguarda, é temporária. E por isso mesmo, certamente a Rússia está interessada em se posicionar da melhor forma possível para o futuro. Controlar o acesso ao Mar Negro, neutralizar ameaças futuras, controlar a produção mundial de cereais... Todos esses objetivos estão intimamente alinhados com uma possível estratégia para lidar com os muitos picos na extração de matérias-primas que nos aguardam”, asseveram Turiel e Bordera.

 

O desafio da transição energética combinado com a indiferença, teimosia e inércia dos governos no enfrentamento da crise climática se manifesta em diversas áreas da sociedade e do cenário geopolítico global. Segundo o professor Miguel Mellino, vivenciamos hoje uma degradação política, isto é, presenciamos um sistema político incapaz de dar respostas aos desafios socioambientais contemporâneos.

 

Mellino analisa a Guerra da Ucrânia como um ponto exemplificador desta degradação. “Putin representa um nacionalismo reacionário neoliberal, mas eu o colocaria dentro desse novo plano de blocos que começa a se configurar e que também divide as direitas: um ocidental e outro não ocidental, cada um deles com suas heranças históricas e com as ferramentas que a economia de mercado desumanizado lhes ofereceu nos últimos anos. Por isso, penso que o que está acontecendo é o efeito mais nu e cru das contradições de um sistema econômico baseado na hegemonia pura e dura”.

 

Para Mellino, “esses problemas estouram depois de 25 anos de neoliberalização profunda que nos deixou uma herança catastrófica, com margens de exclusão cada vez mais extensas, enquanto um setor mínimo da sociedade aumenta a concentração da riqueza. Isso gerou medo em uma classe média que teme acabar do lado dos excluídos. E a ultradireita soube ler o momento para interpelar os setores que a crise deixou desprotegidos”.

 

A concentração de renda, a pandemia, o número crescente de catástrofes naturais colocam em cheque a posição política e econômica das elites globais que, para Mellino, enfrentam um momento schumpeteriano de destruição criadora. “O confinamento em massa foi o parêntese que as elites políticas aproveitaram para pisar no acelerador dentro de sua lógica total do sistema. Pensemos no que aconteceu com a digitalização da economia. Mas há algo mais. A única reposta dos governos foi a vacina. E isso não é suficiente porque não foi somente uma crise sanitária, mas muito mais a crise de um modelo de produção global. Agora estamos vendo que algumas dessas mudanças vão em uma direção muito perigosa. Para as elites e as classes dirigentes, chegou o momento da destruição criativa do capitalismo. Estão desmontando uma parte das velhas estruturas para criar as bases de uma nova lógica de acumulação”.

 

E aponta uma saída política: “minha esperança é que nasçam movimentos da base, que muitas das lutas sociais que já existiam voltem a ser revitalizadas e que possam se conectar entre si para frear o que se projeta hoje de cima. Temos a certeza de que a solução não virá do campo institucional. E acredito que isso ficou demonstrado durante a crise da pandemia, que funcionou como trampolim para o avanço de muitas tendências neoliberais que já estavam em curso”.

 

A Guerra da Ucrânia, a partir da síntese destes estudiosos, representa não só um "marco geográfico e histórico”, como se caracteriza, principalmente, como um ponto de intersecção entre a crise energética, filha da crise climática, e a degradação política, derivada da guinada neoliberal e seu rastro de desigualdade nos sistemas econômicos e políticos.

 

Quem é Miguel Mellino?

 

Miguel Angel Mellino é um migrante argentino da crise econômica de 1989. Erradicado na Itália desde então, trabalhou organicamente com os movimentos antirracistas no país. Suas pesquisas são ligadas a sua atuação militante, assumindo uma identidade de intelectual orgânico. Mellino dedicou grande parte de sua carreira a transferir o pensamento decolonial e pós-colonial para a esfera italiana, traduzindo e editando autores como Frantz Fanon ou Aimé Césaire.

 

Possui licenciatura em Literatura pela Facoltà di Lettere e Filosofia della Università di Roma La Sapienza e doutorado em Ciências Antropológicas e Análise de Mudanças Culturais, obtido no Università degli Studi di Napoli L'Orientale com a tese: Da minoria à diáspora. Discurso étnico e percepção dos fenômenos migratórios na sociedade global.

 


Prof. Dr. Miguel Mellino, da Università di Napoli L'Orientale. Foto: Gorka Castillo | Ctxt.es

 

Mellino é autor de diversos livros, como Marx nei margini. Dal marxismo nero al femminismo postcoloniale (2020), o mais recente, e Cittadinanze postcoloniali: appartenenze, razza e razzismo in Italia e in Europa (2012), Post orientalismo: Said e gli studi postcoloniali (2009) e La critica postcoloniale: descolonizzazione, capitalismo e cosmopolitismo nei postcolonial studies (2005); é autor, junto com Stuart Hall, do livro La cultura e il potere: conversazione sui Cultural Studies (2007), e com Anna Curcio de La razza al lavoro (2012).

 


Marx nei margini. Dal marxismo nero al femminismo postcoloniale. Ed. Alegre, 2020

 

Ele se define como um outsider na academia italiana e um precursor do pensamento pós-colonial no país. Para o autor, os estudos sobre migrantes e refugiados no continente europeu ainda são limitados, e não consideram o caráter estrutural do racismo. "As fronteiras nacionais, se houvesse uma anistia geral, se houvesse, por exemplo, falo por paradoxo, a possibilidade para os migrantes de virem para a Itália com um visto de estudo e trabalho, vai ter o mesmo problema, porque não é um problema de fronteira. É um problema político, cultural e econômico que tem a ver com a história da Europa e da Itália, e que tem a ver com a relação da Itália com o colonialismo e o racismo, que nunca foi superada", afirma em entrevista concedida ao Prof. Dr. Flávio Santiago.

 

Em seu livro mais recente, organizado com Andrea Ruben Pomella, defende a superação de um marxismo branco e europeizado, por meio de uma "decolonização do marxismo". Para Mellino, o pensamento de Marx foi eurocentrado e desconsiderou o racismo e o colonialismo que construiu a sociedade industrial europeia.

 

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