“O Novo Regime Climático impõe uma nova forma de fazer política”. Entrevista com Bruno Latour

Fonte: Pixabay

28 Março 2022

 

A questão climática faz emergir uma nova luta de classes, estima Bruno Latour. Se as antigas relações de força sociais permanecem, as formas de responder, ou não, à crise ecológica estão mudando nossas representações políticas.

 

 “Ninguém é profeta em sua própria terra”, diz o ditado, e aos 74 anos, o pensador sabe algo sobre isso. Aquele que o New York Times considera ser “o mais famoso e incompreendido dos filósofos franceses” na verdade goza de um reconhecimento bastante tardio em seu país natal. Seu pensamento continua suscitando acalorados debates mesmo dentro da grande família da esquerda.

 

“Como pode emergir uma classe ecológica consciente e orgulhosa de si mesma?” Este é o objeto inscrito no subtítulo do Mémo sur la nouvelle classe écologique (Memorando sobre a nova classe ecológica), um pequeno livro de notas incisivas e preciosas publicado por Bruno Latour, com o doutorando Nikolaj Schultz.

 

A entrevista é de Barnabé Binctin, publicada por Basta!, 16-02-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

No ‘Memorando sobre a nova classe ecológica’, você analisa a maneira como a crise ecológica nos desorienta politicamente, ao embaralhar as nossas referências tradicionais. Você escreve em particular: “A ecologia deve concordar em dar um novo significado ao termo classe”. Como a questão ecológica redefine a noção de luta de classes?

 

Até agora, as “classes” sempre foram organizadas e definidas de acordo com as relações de produção. Desde meados do século XIX, todos os debates políticos giram em torno de duas questões fundamentais: como desenvolver as forças produtivas? Como partilhar e distribuir os frutos dessa produção? Os liberais, os socialdemocratas e os comunistas entraram neste debate e entraram em confronto nesse mesmo quadro de discussão. Agora percebemos que tudo isso dependia do carvão e do petróleo, e que esse “pacto” político se baseava, portanto, em uma circulação material que não é mais viável. Todo mundo está arrancando os cabelos agora com essa nova realidade – é a isso que eu chamo de “Novo Regime Climático”. Essa situação exige a formulação de novas categorias políticas, um projeto em andamento.

 

O que é esse “Novo Regime Climático”?

 

É essa pressão que se exerce sobre nós diante da certeza de que devemos rever toda a organização do nosso mundo material. A questão climática faz da habitabilidade do planeta o problema fundamental, o centro da nossa atenção política. Esta torna-se a questão prioritária, à qual todas as outras questões políticas estão agora sujeitas. O Novo Regime Climático introduz uma inversão completa da cosmogonia, com a descoberta – surpreendente, deve-se admitir, para os modernos que somos – de que nós temos proprietários e que, portanto, somos “posseiros”, de certa forma.

 

Quando nos interessamos apenas pela produção, consideramos o resto da vida e todas as suas entidades físicas e biológicas apenas sob o estatuto de “recursos”, recursos dos quais seríamos proprietários. Mas se mudarmos a perspectiva, agora focando nas condições de habitabilidade, é exatamente o contrário: percebemos que são eles, esses seres de quem dependemos, que nos possuem. Isso muda tudo.

 

Isso tem a particular consequência de borrar o mapa da paisagem política e suas fronteiras clássicas, ao criar “frentes menos claras do que no passado entre amigos e inimigos”, escreve.

 

Assistimos a uma verdadeira recomposição, com o surgimento de muitas contradições dentro das antigas classes. Neste Novo Regime Climático, já não temos mais certeza da classe a que pertencemos. Existem agora situações em que as pessoas que eram unidas pela noção de classe social agora se encontram desunidas pela questão ambiental. Porque os desafios variam muito quando priorizamos a habitabilidade sobre a produção: esse é o exemplo clássico de projetos de infraestrutura com todas essas pessoas que defendem o emprego ao invés da preservação de uma zona úmida. É o que explica hoje que as classes que mais sofrem com a crise ecológica sejam também as que mais consideram os ecologistas como “burgueses diplomados”. Claro que não devemos nos iludir sobre a instrumentalização política do lado da direita; é uma ferramenta clássica da batalha ideológica pretender falar em nome da população. Mas também diz algo sobre a urgência de realizar esse trabalho de reclassificação em torno de novas categorias políticas.

 

Se dizemos que estamos lutando pela ecologia, a maioria das pessoas fica chateada ou não se importa. Mas se dizemos que lutamos para comer bem, ter moradia adequada e nos deslocar sem que isso custe uma fortuna, quem vai ser contra? Ninguém. A questão de uma vida “boa”, de ter boas condições de vida, certamente não é um problema da elite. Pelo contrário, é uma importante fonte da cultura popular! Isso desenha novos acordos possíveis, com pessoas que não necessariamente se denominariam de “ecologistas”, mas que na verdade se preocupam com seu território e o tornam habitável. São essas filiações de classe tradicionais que estão se reorientando atualmente, sob a influência de todas essas rupturas que se multiplicam com o Novo Regime Climático e que estão penetrando em todos os lares: o preço da energia, neste momento, todo o mundo percebe...

 

E quanto ao proletariado ou à burguesia: essas classes deixaram de existir, na sua opinião?

 

Não! Elas ainda existem, elas continuam a existir entre nós. Mas o ideal de desenvolvimento que lhes deu forma está suspenso, a burguesia não é mais capaz de envolver as classes populares em tal projeto. Além disso, a própria burguesia não está necessariamente em boa forma; ela foi devorada pela globalização e pelas finanças – o capitalismo industrial francês está completamente esmagado. Todos se sentem traídos, entendemos que esse modelo não é mais possível. Mas o que fazer então? Esse tipo de interrupção no movimento linear da história, que deveria ser o da modernização, leva a reações negativas que vemos muito bem na proliferação dos movimentos neofascistas, facilitados por esse sentimento de traição. Devemos medir o que isso significa, essa perda do sentido da história.

 

Isso tem guiado nossas representações políticas desde o século XIX. Ao colocar a flecha do que se chama “progresso” nas questões da habitabilidade, invertemos muitas posições: os zadistas ou os nativos no meio da floresta amazônica não aparecem mais como arcaicos, mas como uma das muitas pontas desse progresso, uma das vias de inovação a serem defendidos para manter a reprodução das condições de vida na Terra. Hoje, os ambientalistas são um pouco como os canários na mina, aqueles que dão o alerta para essa necessária reformulação política, mas é necessariamente um projeto longo, que leva tempo. Essa nova luta de classes ainda deve conviver e compor com a antiga.

 

Ao fazer isso, você também inscreve a ecologia em um determinado lado do espectro político, escrevendo que ela “prolonga e renova as lutas tradicionais da esquerda” e que, como tal, “ela é de esquerda, e até ‘au carré'" [ao quadrado]. É importante continuar a reivindicar essa afiliação?

 

Os ecologistas estão simplesmente tentando sair de uma situação insustentável, que efetivamente os coloca no campo dos progressistas. No fundo, continuam a resistência histórica da esquerda à permanente “economização” da sociedade – ou seja, a essa deriva que consistia em transformar uma ferramenta de cálculo muito útil para gerenciar o compartilhamento de recursos em grade de leitura para governar o mundo. O que obviamente não faz sentido: a economia não pode cobrir todos os desafios das nossas relações com o mundo vivo. Nisso, a ecologia tem a ver com a esquerda. Mas a atual reclassificação está embaralhando profundamente as divisões tradicionais, entre aqueles que se dizem de direita, mas podem nutrir relações interessantes com os vivos, e aqueles que se dizem de esquerda, mas percebemos que são reacionários... O princípio da reclassificação é que as pessoas que você achava que eram seus amigos se tornam seus inimigos, e vice-versa.

 

Um exemplo?

 

Veja os caçadores, que nós opomos sistematicamente aos ambientalistas em uma abordagem muito binária das coisas. Na realidade, as capacidades de reorientação são imensas segundo o critério da “reclassificação”: claramente já não fazemos mais parte do mesmo mundo se o objetivo é matar o maior número possível de javalis em dois dias de fim de semana que passamos em Mercedes de Paris, ou se estivermos interessados nas ligações que estes javalis mantêm com os ecossistemas, e nas questões da regulação, que é o caso de muitos pequenos caçadores “rurais”. Neste último caso, podem muito bem aproximar-se de uma visão ecológica da habitabilidade.

 

O Novo Regime Climático é exatamente isso: cada vez, a pedra de toque é se perguntar se as questões da condição de habitabilidade são realmente primordiais, comparadas a todas as outras. O mesmo vale para os engenheiros: não há dúvida de que muitos deles são eles próprios vítimas de uma real desapropriação de sua capacidade de inovação, investimento e inteligência pelo capital financeiro. Então, o que são eles: aliados ou inimigos? Potencialmente aliados, porque sofrem tanto com a financeirização da economia, e com a extraterritorialidade que ela induz, quanto os agricultores, por exemplo.

 

De fato, a divisão direita-esquerda certamente continua a organizar os campos, mas não tem mais nenhuma relevância em termos de conteúdo. O problema é que com o discurso de “nem direita nem esquerda”, caímos em abismos de ambiguidade. Ao escrever que a ecologia é “de gauche au carré" [de esquerda ao quadrado], houve nisso uma certa ironia, mas sei que muito mais pessoas se reconhecerão nela, de fato. Mas não devemos nos iludir: no final deste período de transição, não se parecerá em nada com a esquerda do século XX.

 

Isso se refere a uma polêmica da qual você é regularmente objeto: uma franja de intelectuais de esquerda critica você em particular por nunca usar o termo “anticapitalismo” [1].

 

Isso mesmo, eu nunca uso esse termo – Marx também não, devo, aliás, apontar de passagem. Não tenho nenhuma razão para usar este termo, que não descreve nada. Isso não nos permite pensar a complexidade do mundo, pelo contrário, é colocar no mesmo pacote milhares de decisões que não são mais analisadas se estamos falando de um mesmo sistema capitalista contra o qual teríamos que lutar.

 

O anticapitalismo é uma forma de encantamento com a ideia de que é um sistema que deveria ser derrubado de uma só vez, em um ato revolucionário magnífico. É um mantra, uma “palavra de ordem” no sentido de Deleuze, algo que paralisa a atenção e, portanto, a ação. Isso cria um quadro indiscutível dentro do qual tudo deve se situar, o que torna as pessoas naturalmente desamparadas, mas elas se consolam pensando que têm razão... Esta é a famosa expressão que a direita usa para ironizar a esquerda: “Eu perco, mas tenho razão”.

 

Na verdade, ainda existe uma certa matriz que estrutura nosso modelo econômico e organiza essa destruição da habitabilidade do planeta...

 

Certamente. Mas os capitalismos só existem graças às nossas instituições públicas. O termo capitalismo dirige a atenção para a economia, ao passo que são, em grande parte, as decisões do Estado, incluindo as da esquerda mitterrandiana de 1983, que as tornaram possíveis. Essas organizações de mercado são permitidas e autorizadas por reuniões em Bercy, por decisão de Joe Biden ou da União Europeia. Há mil oportunidades para agir contra essa sistematização que o pacote “anticapitalismo” torna invisível. Todos os espaços onde os grupos de pressão podem atuar são substituídos por uma espécie de botão vermelho, como nos filmes de James Bond, que basta apertar para explodir tudo.

 

No entanto, seu trabalho não deixou de se radicalizar nos últimos anos. Você não hesita em evocar um “estado de guerra ecológica”, ao explicar que “falar da natureza não é assinar um tratado de paz, mas reconhecer a existência de uma infinidade de conflitos em todos os possíveis sujeitos da existência e em todas as escalas”.

 

Mas a radicalidade não tem nada a ver com anticapitalismo! É precisamente este campo de batalha que ele esconde. O anticapitalismo tem obcecado as mentes de esquerda há 70 anos, e com que resultado? Diverte-me muito que decidamos continuar a usar este termo no século XXI. É um tipo de religião que agrada ao senhor [Frédéric] Lordon e aos três partidos trotskistas que representam 2% dos votos... Esta esquerda é completamente impotente, mas continua acreditando neste ideal de substituir o mundo por um outro mundo. Mas a política não é isso: não se trata de substituir, mas de encontrar a Terra, o que não é a mesma coisa! E esse é também um dos problemas dos ambientalistas na política: há um problema de tom.

 

Ou seja?

 

O problema com as questões ecológicas é que elas já são moralizadas demais. Mas não é assim que a discussão deve ser organizada. A vida política consiste precisamente em fazer arranjos, e é precisamente isso que não se pode fazer quando se tem uma posição moral. As exigências morais são estimáveis, certamente, mas o moralismo muito menos, porque marca um ponto de parada, não há mais modus vivendi em torno do qual discutir. É útil para traçar linhas vermelhas, mas paralisa a vida pública, que por definição é feita de negociações.

 

Veja questões como a energia nuclear ou a indústria agroalimentar: se você substituir essas questões de ordem política, ligadas à habitabilidade do planeta, por questões morais, você estará apenas abrindo caminho para uma nova gama de guerra cultural que se soma a todas aquelas que a direita e a extrema direita já estão inventando sobre o “wokismo” etc. E você estará feito. É um problema bem francês, onde a ideia da política está enquistada nesses ideais revolucionários de oposição e de queda. Mesmo que, por definição, pensar em termos de condições de vida exija arranjos bastante sutis – embora isso sempre pareça decepcionante aos olhos dos militantes. O Novo Regime Climático impõe, portanto, uma nova forma de fazer política. E, nesse contexto, exigir que as pessoas se chamem anticapitalistas antes de passar para outra coisa é um erro político.

 

Hoje, de acordo com você, “a ecologia está em todos os lugares e em nenhum lugar”. Em outras palavras, você está interessado no seguinte paradoxo: enquanto a ecologia se estabeleceu como uma grande preocupação em poucos anos, sua tradução nas urnas ainda parece tão fraca... Como explica isso?

 

Todo mundo agora está falando sobre ecologia e, de certa forma, isso quer dizer que essas ideias têm o potencial de substituir os antigos objetivos de modernização e de desenvolvimento que se impuseram desde os anos do pós-guerra. Mas para que esse potencial se transforme em maioria concreta, ainda resta muito trabalho. Por um lado, para organizá-lo em um movimento coletivo alternativo capaz de rivalizar com seus adversários. É uma das peculiaridades dos ambientalistas trabalhar a partir de baixo, e admiro a energia de todos esses ativistas, seu trabalho no terreno. A França está hoje repleta da multiplicidade dessas iniciativas, cuja representação midiática também está muito longe da conta, na minha opinião. É preciso reconhecer também que essas experiências não recebem a importância política necessária: o EELV (Europe Écologie Les Verts) é realmente capaz de captar isso, de organizar e tornar todas essas lutas coerentes e de dar-lhes um sentido comum? Esta é uma pergunta real.

 

Por outro lado, não se deve subestimar a resistência dos adversários. Os outros partidos políticos não têm realmente interesse em que a ecologia se torne a nova matriz de decisões políticas, e está claro como os ambientalistas são regularmente caricaturizados ou estigmatizados. Além disso, eles também se beneficiam de um conteúdo conceitual ainda bastante vago: do que estamos falando quando falamos de ecologia hoje? Estou assustado com todos esses discursos em torno do bem-estar animal, muito simplistas e moralizantes, que realmente não me parecem estar à altura do desafio. Temos que sair do “gueto” desses poucos assuntos identificados e rotulados como “ambientalistas”, e que muitas vezes permanecem estreitos demais para serem compreendidos pela maioria. A ecologia não é uma disciplina “a mais”, mas uma disciplina que abrange todas.

 

Na verdade, seu livro é um pouco ofensivo para o EELV, que você não poupa. Você escreve em particular que “os ecologistas criam a proeza de espalhar o pânico nas mentes das pessoas e de fazê-las bocejar de tédio”. Mas é realmente culpa deles? Seria possível objetar que, por definição, a própria natureza de suas demandas – reduzir o consumo, reconsiderar a ideia de limite, o princípio da “habitabilidade” etc. – traça um horizonte de sociedade menos desejável para defender, em comparação com as grandes promessas sobre as quais trabalham seus adversários.

 

É muito fácil contornar assim a questão! Cabe a nós construir afetos mais mobilizadores. Caso contrário, como podemos imaginar que conseguiremos convencer e transformar 65 milhões de pessoas nutridas e acostumadas aos ideais do desenvolvimento e da modernização? Isso pressupõe um verdadeiro trabalho intelectual, uma análise das palavras tanto quanto da psicologia – e acredito que ainda há um déficit real nisso. O próprio comitê político do EELV reconhece que não trabalhou muito essas questões. Enquanto a extrema-direita trabalha há 40 anos, com think tanks, para se posicionar e construir um discurso audível, e podemos ver o resultado.

 

Hoje, eu simplesmente meço a velocidade com que alguém como Zemmour é capaz de mobilizar os afetos, comparado aos ambientalistas. Na batalha cultural, essa questão dos afetos é inevitável. É como quando você para de fumar: você não faz isso porque já lhe disseram centenas de vezes. Pelo contrário, é por ocasião de mudanças mais existenciais, que são trabalhadas longamente através de inúmeros canais em nossa cultura coletiva. É por isso que o fenômeno em torno do filme Não olhe para cima é interessante, porque é o tipo de objeto que certamente possibilita sensibilizar muito mais pessoas. E, a propósito, para reorientar um pouco a banda larga da mídia…

 

Nota

 

1. Ver a este respeito a nota crítica do economista e filósofo Frédéric Lordon, “Pleurnicher le Vivant”, publicado no Le Monde Diplomatique (set. 2021).

 

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