18 Agosto 2022
A cada eleição, setores ligados à agricultura apresentam pautas a candidatos de diferentes colorações políticas. No Brasil de 2022, a dinâmica é outra: as pautas são endereçadas diretamente às candidaturas de preferência. Neste texto, comparamos as demandas de dois setores: o patronal, pela agenda da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), e a dos trabalhadores(as) rurais e povos do campo, reunidos no chamado Campo Unitário. Os documentos deixam visíveis as disputas entre os setores, mesmo quando os grandes temas parecem semelhantes.
A análise é de Ellen Gallerani Corrêa, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas (IFAL) e Priscila D. Carvalho, pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Projeto Inova Juntos), publicado por Observatório das Eleições, 17-08-2022.
O Campo Unitário é formado por mais de 30 organizações, entre elas os Movimentos dos Sem Terra e dos Pequenos Agricultores, Confederação de Extrativistas (CNS) e Conselho de Quilombolas (Conaq), Confederações Sindicais de Agricultores Familiares (Contag) e Assalariados (Contar), e por entidades como a Comissão Pastoral da Terra. A relação do Campo com a candidatura de Lula vai além da apresentação de suas pautas, já que a coalizão participa da construção das diretrizes do programa de governo do candidato. Em conjunto com a Secretaria Agrária e o Núcleo Agrário do PT na Câmara dos Deputados e com o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas Agrícola e Agrária da Fundação Perseu Abramo, o Campo Unitário elaborou a “Plataforma de Governo dos Povos do Campo, da Floresta e das Águas para Ganhar as Eleições e Governar o País” . No dia 06 de maio, o documento foi entregue a Aloizio Mercadante, coordenador do programa de governo, para uma primeira rodada de discussão e, em 16 julho, houve um segundo encontro.
A CNA, por sua vez, apresentou uma primeira versão do documento “O que esperamos dos próximos governantes” durante seu Encontro Nacional do Agro, em Brasília, no dia 08 de agosto. Estavam no evento o presidente Jair Bolsonaro e diversos ministros. Eles ouviram de João Martins, presidente da CNA, o apoio à reeleição. Martins conclamou o público a “sinalizar bem claro que não tem mais espaço neste país para uma equipe corrupta e incompetente, e muito menos do retorno de um candidato que foi processado e preso como ladrão”. Desde maio, foram realizados debates para subsidiar o texto, destinado a candidatos à presidência e ao parlamento. Agora, o documento será levado a debate entre as federações estaduais, e a versão final apresentada aos candidatos à Presidência e a parlamentares.
O documento do Campo Unitário é composto por propostas emergenciais, para serem efetivadas nos primeiros seis meses do novo governo federal, e propostas estruturantes para os temas: direito à terra e territórios; fortalecimento da capacidade produtiva da agricultura familiar para a soberania e segurança alimentar; políticas de infraestrutura e qualidade de vida; políticas e direitos para os assalariados e assalariadas rurais; estrutura de Estado para promover e implementar as políticas públicas. São centrais demandas como a demarcação e proteção dos territórios das comunidades tradicionais e a criação ou retomada de políticas públicas para os povos dos campos, das florestas e das águas, principalmente aquelas voltadas à produção e comercialização de alimentos.
O documento da CNA é dividido em quatro eixos: segurança alimentar e desenvolvimento econômico, social e sustentável. Traz, pela primeira vez, sugestões para áreas como economia e políticas sociais, para além da agricultura. Com vistas ao desenvolvimento econômico, defende reformas administrativa, tributária sem onerar o setor agrícola, e política – nessa, contra o financiamento público de campanhas. Para o desenvolvimento social, traz posições sobre educação, segurança em áreas rurais e saúde. Na última, enfatiza avanços na telemedicina.
No Campo Unitário, o debate sobre alimentos tem como foco a segurança e a soberania alimentar – este último, termo difundido pela Via Campesina para falar não apenas do acesso aos alimentos, mas do papel estratégico de agricultores nas decisões sobre a produção. Para garantir segurança e soberania alimentar, demanda-se políticas de estímulo à produção de alimentos saudáveis a partir de modelos produtivos que promovam a sustentabilidade, justiça social e o respeito às matrizes culturais e territoriais. Enfatizam o fomento à produção agroecológica e orgânica, efetivando a Política e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Sobre fertilizantes, demandam a criação de um Plano de fertilização natural e proteção do solo para uma matriz sustentável de bioinsumos e a criação de um plano nacional de produção, conservação, melhoramento e comercialização de sementes crioulas, com a estruturação de Bancos Comunitários de Sementes. Marca-se posição sobre agrotóxicos, sugerindo a revisão da atual política de desoneração e uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNRA).
Fertilizantes e agrotóxicos também estão no topo da agenda da CNA, mas com a demandas opostas: aprovar a lei de defensivos agrícolas e bioinsumos (PLs 1459/2022 e 658/2021) e ampliar a produção nacional de fertilizantes, reduzindo a dependência externa – tema que ganhou destaque desde a guerra na Ucrânia. O foco aqui é garantir a oferta de fertilizantes, ampliando conhecimento sobre produtos disponíveis no subsolo e estruturando programa para a área – o Profert. Na CNA, estes debates aparecem sob a chave da segurança alimentar, dividida entre os polos da produção – que além dos pontos anteriores inclui irrigação e logística para escoamento dos produtos, apontando a relevância das commodities para a agenda patronal. Para a irrigação, toca-se na crescente demanda por água e aponta-se como solução liberar o uso de áreas de proteção permanente para estruturas de reserva de água.
O outro polo é o do consumo. Programas de transferência de renda são o caminho para ampliar o acesso das famílias a alimentos – pontuando que sejam transitórios. Já o Campo Unitário enfatiza políticas de compras públicas – o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e a volta da política de estoques públicos de alimentos – que, além da regulação dos preços, permite oferecer comida a populações vulneráveis. Ainda para ampliar a oferta de alimentos, propõe-se estimular as feiras e as cozinhas comunitárias.
Na área de crédito, o Campo Unitário concentra-se no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar e demanda tanto a ampliação do orçamento quanto a reformulação do programa, visando a distribuição equilibrada dos recursos por região, ampliação do público atendido e maior atratividade de determinadas linhas de crédito (semiárido, microcrédito, agroecologia, bioeconomia, floresta, mulher e jovem). Também pede a retomada do Plano Safra específico para a agricultura familiar, abandonado desde o governo Temer, em 2019. Na CNA, o Plano Safra é elogiado, e demanda-se apoio à ampliação de fontes de financiamento no mercado privado, com redução de custos do financiamento – menores taxas de juros – e redução de custos cartoriais.
Nessa discussão, o Campo Unitário visa a garantia do direito à terra e territórios dos povos do campo, das florestas e das águas. Propõe-se a identificação, demarcação, regularização e proteção de terras e territórios indígenas, quilombolas, de comunidades pesqueiras e extrativistas e dos demais povos e comunidades tradicionais. A ênfase nos territórios de povos tradicionais indica a força que tais grupos vêm ganhando nas articulações contemporâneas. Também são requeridas medidas para combater a grilagem de terras públicas e a violência gerada pelos conflitos socioambientais e para proteger os direitos humanos, especialmente de pessoas e comunidades ameaçadas.
A bandeira histórica da reforma agrária é reafirmada, solicitando que sejam destinadas para essa finalidade terras públicas federais e estaduais. Propõe-se a elaboração de um plano nacional com ações, metas e prazos para a criação de assentamentos, revisão dos índices de produtividade, organização da produção de alimentos saudáveis e acesso a mercados. Chama atenção, contudo, que o plano proposto, apesar de prever metas e prazos, não explicita números para esses objetivos. Também se menciona a regularização fundiária da agricultura familiar – outro dos temas em que as demandas do Campo Unitário e da CNA se mostram diametralmente opostas.
O Campo Unitário expressa divergências com aspectos da Lei nº 13.465/2017 (oriunda da MP nº 759/2016), aprovada pelo governo Temer. A lei anterior, de 2014 (nº 13.001), previa a concessão de créditos de instalação e a conclusão dos investimentos para considerar os projetos de assentamento como consolidados e aptos à titulação. Desde a legislação de 2017, o único critério para a consolidação é de que os assentamentos atinjam o prazo de 15 anos desde a sua implantação. Quando da discussão da MP que originou a lei, as organizações do Campo Unitário manifestaram preocupação com a consolidação, e consequente titulação, de assentamentos com infraestrutura precária, pois isso poderia estimular a transferência de terras para o mercado. Defendem, ao contrário, que a titulação seja precedida da garantia de infraestrutura e políticas públicas que permitam o pleno desenvolvimento das famílias na área. Outra demanda é pela autonomia dos(as) assentados(as) e de suas organizações na escolha da forma da titulação – Título Definitivo ou Concessão de Direito Real de Uso individual ou coletivo -, permitindo que seja levada em consideração a organização social e produtiva estabelecida desde o início do assentamento. Pela legislação de 2017, as condições e a forma de outorga dos títulos fica remetida a regulamento.
A CNA, por sua vez, elogia a aceleração do processo de titulação empreendida desde o governo Temer, e intensificada por Bolsonaro. Demanda, ainda que se acelere a indenização de produtores desapropriados por demarcações de terras e assentamentos de reforma agrária.
Boa parte dos embates, atualmente, passa pelos poderes legislativo e judiciário. Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF) a definição sobre o primeiro item mencionado pela CNA ao falar de regulação fundiária, que é a garantia da tese do Marco Temporal e das “19 condicionantes”. Trata-se da defesa da demarcação de terras indígenas apenas se ficar comprovada a presença dos povos nas áreas em 1988. As condicionantes referem-se às restrições colocadas pelo STF na demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, demandando-se que sejam válidas para todos os processos demarcatórios. O Marco Temporal é objeto também de um Projeto de Lei que tramita no Congresso – projeto este que o Campo Unitário pede que seja “retirado de pauta”, evidenciando as posições opostas sobre o tema.
O tema ambiental, por fim, aparece nos dois documentos, novamente em contraste. No Campo Unitário, entra-se no tema a partir da demanda por políticas de recuperação, preservação e conservação ambiental, geração de energia sustentável e proteção aos biomas. Na CNA, o agro – como se denominam – é apresentado como setor que já atua no desenvolvimento sustentável, mas precisa receber retorno por isso, capitalizar o investimento. Para isso, pedem a implantação da política nacional de carbono e regulamentação do pagamento por serviços ambientais. Simplificação do licenciamento ambiental também é parte da agenda.
A análise das agendas da CNA e do Campo Unitário mostra que ambas apresentam pautas relacionadas ao desenvolvimento econômico, social e ambiental. No entanto, a comparação entre as agendas indica divergências quanto ao significado deste desenvolvimento. As propostas da CNA não colocam questionamentos quanto ao modelo dominante de produção agrícola no país: a grande produção, associada ao uso generalizado de agrotóxicos, e destinada à exportação. As propostas do Campo Unitário tensionam esse modelo. Isto se verifica, por exemplo, na abordagem da questão social e da segurança alimentar.
Para a CNA, a questão da segurança alimentar se resolve pela viabilização do consumo por meio de programas de transferência de renda. Além de não mencionar questões sociais específicas do rural brasileiro, a proposta pressupõe que os problemas sociais e de fome no campo são somente uma questão de renda, sem se preocupar em fortalecer a produção das famílias mais vulneráveis. Para o Campo Unitário, o fortalecimento da produção familiar é pauta relevante e deve ser associado ao incentivo à produção de alimentos destinados a grupos mais vulneráveis por meio de políticas como o PAA.
Com relação ao meio ambiente, a CNA se concentra em medidas de redução da emissão de carbono e não aborda os impactos ambientais do uso de agrotóxicos. Já o Campo Unitário propõe uma política de redução do uso de agrotóxicos e problematiza seus impactos no meio ambiente e na saúde dos consumidores de alimentos. Em resumo, as intervenções da CNA para pautar os atuais debates sobre alimentação e meio ambiente apontam para a conservação do atual modelo de produção agrícola, enquanto o Campo Unitário procura reformá-lo.
É patente a relevância que a questão dos territórios indígenas ocupa em ambas as agendas, apontando para o deslocamento das questões fundiárias para esta pauta. Contudo, as preocupações são distintas. No documento do Campo Unitário, as demandas por demarcação e proteção dos territórios já demarcados são reafirmadas diversas vezes. Na CNA, a questão também é relevante, mas o foco é na defesa de medidas que freiem as demarcações em favor da expansão das terras do agronegócio.
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Entre o “agro” e os “povos do campo”: as disputas em torno da agricultura em 2022 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU