31 Outubro 2022
Em 21 de fevereiro de 2021, o Papa Francisco vai à casa de Edith Bruck, escritora, sobrevivente de Auschwitz. Havia lido uma entrevista que ela concedera ao L'Osservatore Romano algumas semanas antes, ficou impressionado com sua força "calma e luminosa" e foi até ela para conhecê-la, presenteá-la com um menorá e um Talmud, fazer algo que outros seus antecessores também fizeram, mas sempre em ocasiões oficiais, em lugares públicos: pedir perdão pela perseguição aos judeus. Ela o espera à porta, chora assim que o vê, pensa “Parece feito de algodão doce”.
Em Sono Francesco (La nave di Teseo), Bruck relata aquele encontro, a luz que trouxe à sua vida, a amizade que gerou. Como em todos os seus livros, escolhe por contar algo que não é inteiramente pronunciável e explicável, e que por isso mesmo impõe um dever de testemunho. Desta vez, porém, aquele algo de inapreensível nasce da beleza e não do horror.
Sono Francesco
A entrevista com Edith Bruck é de Simonetta Sciandivasci, publicada por La Stampa, 29-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A senhora escreveu que sentir "um sentimento de bem imediato pelo mais alto representante dos meus perseguidores" a fez se sentir culpada.
Mas o senso de culpa não inibe um sentimento. Nada pode fazê-lo.
E o afeto, por outro lado, pode inibir o sentimento de culpa?
Isso aconteceu comigo. Depois de conhecer o Papa Francisco, aquele mal-estar se dissipou. E isso mudou minha vida. Acho que ele entendeu aquela minha dificuldade e de uma forma que não consigo explicar fez com que, lentamente, se dissolvesse. Ou talvez a tenhamos dissolvida juntos. Certamente, se ele veio à minha casa em vez de me convidar para a sua, ele o fez também porque imaginou o que mais tarde reconheceu: que dentro de mim se teria agitado o embaraço que sempre o perdão e o afeto despertam. A grandeza do seu gesto está nisto, e em ter-me escolhido para dar uma mensagem universal.
A senhora sempre disse que não perdoou. Mudou de ideia?
Não.
Por quê?
Porque para perdoar você tem que julgar e eu não tenho condições de fazer nenhuma das duas coisas.
Porém, em La donna col cappotto verde (Garzanti) a senhora disse que não denunciou a sua kapo quando a encontrou anos depois. Isso não é perdoar?
Talvez seja apenas egoísmo: eu não conseguiria dormir se alguém fosse preso por minha causa. Certa vez, meu marido e eu encontramos um ladrão em casa: oferecemos café e ele fugiu. Ficou com medo.
Belo paradoxo.
Ele estava apenas com fome.
O ódio nasce do julgamento?
Eu não sei odiar, não posso responder.
O que significa amar?
Aceitar o outro como ele é.
Então, mesmo aceitar o que representa?
O Papa Francisco está bem ciente do que a Igreja foi por milênios e sabe, como eu sei, que herdou suas responsabilidades. Ele sabe, como eu, que se não houvesse as perseguições, guetos, conversões forçadas e torturas que o judaísmo sofreu em dois mil anos de história, também por causa da Igreja, Auschwitz não teria existido: Auschwitz foi o ápice daquela história. E eu aceito que ele também represente isso. E sinto afeto por ele.
A primeira-ministra Giorgia Meloni escreveu em seu livro que ama o Papa Woytila e que não consegue fazer o mesmo com Francisco.
Como ela poderia amar um Papa que disse 'Quem sou eu para julgar os homossexuais?'.
O que a senhora sentiu quando viu Ignazio La Russa dar flores e estender a mão para Liliana Segre no Senado?
Admirei Liliana, ela não tinha que retribuir, não sei se teria feito o mesmo, mas sei que chorei. E chorar é sempre bom.
Este governo a preocupa?
Preocupa-me que ninguém esteja realmente preocupado.
A senhora se sente em perigo?
O futuro está em perigo, não eu.
Escreve que "o passado é presente, é futuro".
Para mim, o tempo é único. Somos filhos de ontem e nossos filhos serão o amanhã, então o amanhã se parecerá com a educação e o exemplo que conseguimos dar hoje. Frequento escolas há 62 anos, conto às crianças o que vi, e nunca como agora recebi uma resposta apaixonada, calorosa e solidária: os meninos me escrevem, me enviam desenhos, me prometem que vão se empenhar ao máximo para que esse ódio não se repita.
Já pensou em desistir?
Sempre que falo com os garotos, penso que gostaria que fossem o dobro.
Já pensou no que será da sua memória depois da senhora?
Já aconteceu de ser convidada para ir às escolas por professores que me ouviram quando criança, e então entendo que criei uma continuidade, testemunhas.
E isso é mais forte do que os reaparecimentos nazistas e fascistas de nosso tempo?
O Papa disse-me que é importante colocar mesmo que apenas uma gota de bem neste mar negro. E eu disse a ele que já fiz uma poça. Não que isso baste: a memória está sempre em perigo. Comecei a escrever em 1946, assim que voltei do campo, porque já então ninguém acreditava. Nesse sentido, não há diferença entre a memória transmitida por testemunhas diretas e aquela proferida por testemunhas indiretas, como serão os meninos que me ouviram nestes últimos anos.
Isso é fé?
Isso é esperança.
O que é fé?
O respeito universal.
É possível ter fé sem acreditar em Deus?
Claro que sim. Aprendi a fé com a família do meu marido, Nelo Risi, e com a mãe dele: ele poupava a vida até dos camundongos que entravam na casa, e vi minha sogra levar para o jardim as formigas que encontrava no açúcar.
Sobre o marido, a senhora relata um poema que diz a certa altura: "O poeta escreve, o gato mia".
A poesia diz mais em menos. Quando o Papa foi à Hungria depois do nosso primeiro encontro, leu no avião alguns poetas húngaros que traduzi para o italiano e que lhe havia aconselhado. Pela emoção, esqueci de aconselhar Átila Jòzsef e seu verso que diz: ‘Quando recebemos um golpe forte, seria bom não o retribuis nem com as mãos nem com a palavra’. Entre nós, desde então, existe uma relação de troca, voltamos a nos ver, voltaremos a nos ver.
Realmente para a senhora "escrever é mais fácil do que falar"?
As palavras perderam o seu sentido e substância. Para mim, dizer igualdade ou amor não significa nada. Escrevê-las, no entanto, é outra coisa. Por isso falo com o papel, porque o papel escuta: não te interrompe, não julga.
Conhecer o Papa Francisco lhe trouxe felicidade?
Ele me fez voltar a ser criança.
Tem lembranças felizes da sua infância?
Quando meu pai me deu um par de botas de borracha e a costureira fez meu primeiro e único vestido de Páscoa. Aquela felicidade nunca mais voltará.
Por causa do que viveu?
Não. Porque agora se quiser, posso comprar até três vestidos.
A senhora se sente sozinha?
Muitas vezes.
E depois do encontro com o Papa essa solidão diminuiu?
Sim, porque penso nele como penso em meus entes queridos. Por isso digo que carrego em mim todos os meus mortos. Quando perdi meu marido, eu disse: abram espaço para ele. Francisco me enriqueceu. O bem sempre o faz.
Como se cultiva o bem?
Deixando o mal morrer de fome. Dentro de nós existem tanto o bem quanto o mal: não são apenas as circunstâncias que os trazem à tona, como pensava Primo Levi. Minha kapo os deixou desumanizá-la. Depende sempre de nós, do que escolhemos nutrir.
De onde tira a "força luminosa" que o Papa vê na senhora?
Do fato de que não suporto as injustiças.
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Meu amigo Francisco. Entrevista com Edith Bruck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU