19 Setembro 2022
"Paulo diz: quem morreu não tem pecado. Podemos acrescentar: quem morre não tem mais títulos. Ser o chefe de uma igreja por direito de sangue não é uma questão fácil de resolver. Por isso teria sido oportuno que o corpo da rainha, Sua Alteza, tocado pela morte, não permanecesse em uma espécie de luz inacessível, mas descesse ao plano daquela humilde igualdade que permite que aqueles que a honram permaneçam exatamente no seu mesmo nível", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant'Anselmo, em artigo publicado por Come se non, 16-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Cão sarnento Vasari, besta, porco, asno". Em 1564 era possível que Benvenuto Cellini se dirigisse a Giorgio Vasari com esses insultos, durante as discussões da comissão encarregada de projetar o catafalco do grande Michelangelo Buonarroti. Quantas ideias e quantas indignações por um catafalco!
Cerca de 460 anos depois, é difícil sair da ideia de que "catafalco" seja algo em si inútil. Mas vale a pena observar uma reação que talvez espontaneamente sentimos quando, vendo as centenas de milhares de pessoas na fila para prestar homenagem à rainha Elizabeth, descobrimos então que no final do percurso encontram sim o cadáver da rainha, mas em cima de um catafalco a uma altura de cerca de 3 metros. Era o caso de Sua Alteza permanecer a tal alteza mesmo na morte? A morte não teve sobre ela a capacidade de transformá-la em mera criatura humana.
Foto: Reprodução
Aparentemente, a resposta a essa pergunta pode ser muito simples. Os mestres de cerimônia da corte repetiram em 2022 as mesmas formas de catafalco que usaram da última vez, ou seja, em 1952, quando morreu o rei George VI, pai de Elizabeth. Setenta anos depois, exatamente a mesma coisa: não é justamente essa a tradição?
Pode ser útil neste momento fazer uma comparação com os catafalcos que a Cidade do Vaticano soube construir ao longo dos séculos e que poucos anos após a morte de Jorge VI, ou seja, em 1958, homenagearam o corpo do Papa Pio XII com um catafalco muito semelhante ao da rainha de hoje, ainda que, como é óbvio em âmbito eclesial, coberto de incontáveis castiçais.
Como fica evidente nessa imagem, na década de 1950 todos os grandes personagens eram submetidos a mais ou menos o mesmo tratamento em termos de catafalco. No Vaticano, alguns anos depois, houve outro funeral papal em 1963 com um catafalco semelhante. Mas a elaboração de um novo pensamento sobre a autoridade e a morte preparava a grande surpresa de 1975: Paulo VI, em seu testamento, prevê a ausência de qualquer catafalco, substituído por um simples estrado que o coloca na altura daqueles que lhe prestam honra.
Essa virada se impõe na tradição católica papal e é conservada por João Paulo I e João Paulo II em 2005. Assim podemos inferir a partir desta breve análise que na Igreja Católica entre 1958 e 2005 houve uma grande elaboração dos ritos que acompanham a morte do bispo de Roma.
Foto: Reprodução
É evidente que nada disso poderia ter acontecido no Reino Unido graças à extraordinária longevidade da rainha Elizabeth que, como resultado, recebeu simplesmente o mesmo tratamento cerimonial que seu pai setenta anos depois dele. Poderíamos dizer que a falta de experiência de morte criou uma forma de surdez para o desenvolvimento das formas comuns de costume e do luto.
Um último aspecto, talvez o mais delicado, retrata um perfil da rainha muitas vezes pouco considerado. A rainha Elizabeth, como o rei Charles hoje, estão na liderança da Igreja da Inglaterra. Isso representa um problema nada pequeno para o desenvolvimento não dos cerimoniais monárquicos, mas dos ritos cristãos. Se morre o chefe de uma Igreja, como acontece com o papa, ter adquirido nos últimos setenta anos uma certa sensibilidade para o rebaixamento, para a kenosis, para a humilhação que a morte comporta é uma grande conquista, que certamente também está presente na cultura britânica. Talvez a diferença fundamental esteja no fato de que o papa não é papa por direito de sangue e que, quando seu sangue não circula mais em suas veias, cai ao nível de um comum batizado.
Foto: Reprodução
Paulo diz: quem morreu não tem pecado. Podemos acrescentar: quem morre não tem mais títulos. Ser o chefe de uma igreja por direito de sangue não é uma questão fácil de resolver. Por isso teria sido oportuno que o corpo da rainha, Sua Alteza, tocado pela morte, não permanecesse em uma espécie de luz inacessível, mas descesse ao plano daquela humilde igualdade que permite que aqueles que a honram permaneçam exatamente no seu mesmo nível.
Talvez em tudo isso ainda fale aquela sociedade de honra que produziu funerais de diferentes classes ao longo dos séculos e que projetou para além da morte os pequenos e frágeis títulos da vida.
A longa peregrinação para prestar honra à rainha merece uma rainha excepcionalmente acessível justamente porque está morta. O poder singular de uma morte que permite a todos, mesmo à realeza, justificar-se apenas dizendo “sua graça me basta”.
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Pequena teologia do catafalco. Qual o espaço para rainhas e papas na hora de sua morte? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU