03 Setembro 2022
O cardeal, que foi nomeado bispo-auxiliar de San Francisco, a cidade onde ele nasceu, pelo Papa Bento XVI em julho de 2010 e bispo titular de San Diego pelo Papa Francisco em março de 2015, deu essa entrevista exclusiva à revista America, dos jesuítas estadunidenses, no dia em que se celebraram os 10 anos da morte do cardeal Carlo Maria Martini, s.j..
Na entrevista, o cardeal, que muitos veem como um análogo estadunidense de Martini, compartilhou breves reflexões sobre ser feito cardeal e então falou extensamente sobre o encontro de dois dias dos cardeais que o Papa Francisco marcou para discutir “Praedicate Evangelium”, a constituição para a reforma da Cúria Romana que ele promulgou em 19 de março e que entrou em vigor em 05 de junho.
Ele compartilhou suas reflexões e insights sobre a discussão que ocorreu a portas fechadas na sessão plenária e em 12 grupos de idiomas. Cada grupo nomeou um moderador e um relator que sintetizou as discussões para a plenária.
O cardeal Robert McElroy disse que os cardeais focaram principalmente em quatro temas da nova constituição, que tem a evangelização como prioridade máxima: a separação dos poderes de governança das ordens sagradas (e que então leigos podem assumir altos cargos na Cúria Romana); a questão da Igreja sinodal e hierárquica; o tema das finanças do Vaticano e as reformas nesse campo; a necessidade de construir uma cultura que assegura a proteção de menores e jovens de abusos sexuais e assédios na Igreja. Ele disse que também foi discutido o Ano Santo de 2015 na sessão final do encontro.
A entrevista é de Gerard O'Connell, publicada por America, 02-09-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Você foi criado um cardeal. Qual é a lembrança mais profunda que você leva desse momento importante de sua vida e do consistório?
Eu diria duas coisas. Uma é que fui agraciado por ter muitas pessoas da minha vida presentes no consistório: minha família, pessoas com quem estudei, pessoas nas paróquias com quem trabalhei que se tornaram grandes amigos ao longo dos anos, padres e colegas de trabalho da Diocese de San Diego. E assim foi, em certo sentido, uma recapitulação da minha vida e de todos os momentos da minha vida se unindo naquele momento em que fui feito cardeal.
A segunda lembrança que eu diria que realmente me marcou naquele momento foi como o Papa Francisco deu a cada um dos candidatos uma palavra muito pessoal de encorajamento, agradecimento e exortação, enquanto nos ajoelhamos diante dele para receber o anel e o barrete vermelho e o título da Igreja. Ele tinha uma mensagem diferente e específica para nos dar; foi de encorajamento e desafio para o futuro.
Você poderia sintetizar a mensagem pessoal que o papa lhe deu?
Ele me pediu para continuar a dar testemunho na vida da Igreja nos Estados Unidos sobre questões importantes que existem e que virão. Isso estava no cerne disso. Embora o que aconteceu foi que, depois que comecei a me levantar, ele me disse: “Como está seu coração?” porque eu fiz uma cirurgia no coração em novembro, e ele sabia disso e orou por mim. Fiquei meio surpreso com isso. Então tropecei um pouco e disse: “Meu coração está perfeito, mas meus joelhos não estão tão bons”. E ele disse: “Nem os meus!”.
Como você vê seu papel como cardeal, além de ter que votar em um conclave?
Vejo dois elementos adicionais que são fundamentais. Uma é fornecer uma assistência solidária e colaborativa ao Santo Padre em seu trabalho na Igreja e ao abordar os problemas que a Igreja enfrenta em todos os países do mundo, particularmente o de forjar a unidade.
E em segundo lugar, isso me ocorre particularmente como cardeal nos Estados Unidos. Sou muito americano em hábitos, gostos e atitudes, e sei quantos de nós nos Estados Unidos tendem a ver a realidade através de lentes americanas. Então, acho que um dos papéis dos cardeais é tentar orientar o pensamento das pessoas em todos os níveis da Igreja nos Estados Unidos para a realidade de que somos parte de uma comunidade global de fé e de uma sociedade global.
Você participou da reunião de cardeais de dois dias, na qual o papa esteve presente, que envolveu sessões plenárias e discussão nos pequenos grupos de idiomas. Qual é a sua principal lição desse encontro?
A primeira coisa para mim foi o compartilhamento dos pequenos grupos – isso foi incrivelmente importante, em parte porque estávamos em grupos de cerca de 15. Assim, você conhece os outros cardeais de uma maneira diferente nesse tipo de conversa. Em segundo lugar, muitas de nossas conversas se concentraram nas diferentes situações em que as Igrejas locais estão em todo o mundo e como elas enfrentam essas questões de reforma e sinodalidade nas situações que enfrentam, que variam bastante.
E as sessões plenárias?
Quanto às sessões plenárias, houve uma tremenda abertura, e isso porque o papa exortou todos os participantes a dizer o que estava em sua mente, e eles o fizeram em vários assuntos durante os dois dias de reuniões. E isso era uma coisa importante, em parte porque esse tipo de reunião não ocorria há muitos anos, e todos os participantes estavam tentando descobrir que papel esse tipo de reunião deveria desempenhar na vida da igreja e em ajudar o Santo Padre, e em ajudar a Igreja particularmente na integração do “Praedicate Evangelium” na vida da Igreja, não apenas aqui em Roma, mas dentro da igreja maior ao redor do mundo.
Acho que deveria haver mais reuniões desse tipo. Foi um encontro útil e produtivo, não apenas para aprender mais sobre o outro, mas também para refletir sobre questões importantes globalmente e quais desafios as Igrejas locais estão enfrentando.
Eu entendi que os pequenos grupos se reportaram às sessões plenárias. As pessoas também podiam fazer intervenções nas sessões plenárias e fazer perguntas?
Sim. E eles fizeram.
O que mais lhe impressionou nas perguntas?
Bem, havia alguns temas. Uma é que alguns levantaram a questão sobre a proclamação do “Praedicate Evangelium” que os leigos poderiam ser chefes de dicastérios; houve alguns que questionaram isso.
Acho que o que aconteceu tanto em nosso pequeno grupo quanto na sessão plenária maior foi que a maioria das pessoas saiu e disse que “Praedicate Evangelium” é um documento que apresenta a visão e a estrutura para a reforma da Cúria. Eles viram que a integração desse documento na vida da Igreja local vai acontecer ao longo do tempo, e a especificação de alguns elementos dele também.
Acho que havia um sentimento geral de que certos dicastérios deveriam ter bispos consistentemente à frente – por exemplo, o Dicastério para os Bispos, o Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica, o Dicastério para o Clero – mas havia muitos outros que não precisavam. E então o pensamento era que, esperançosamente, o papa vai especificar isso à medida que o documento se desdobra e é implementado.
Pode-se dizer que esta reunião de cardeais resultará em um "ajuste" da constituição?
Eu não diria isso dessa forma. Não, não é um ajuste do que é, mas sim da implementação da Constituição. Seria útil saber como está ocorrendo a implementação como esta diferenciação está sendo feita: de alguns ofícios onde faz sentido ter leigos e de alguns ofícios onde faz mais sentido ter sempre um bispo à sua frente. Quais são esses escritórios?
Eu acho que a maneira realmente importante de olhar para a questão é esta: o documento foi promulgado. Está lá. É um bom documento, e acho que funciona de duas maneiras. Uma é como orientação da Cúria Romana sobre qual é a sua missão e como deve realizar essa missão. E essa missão deve ser de serviço, não apenas ao papa, mas também às Igrejas locais.
Em segundo lugar, há um dinamismo na missão da Cúria tal como é vislumbrado neste documento: A noção de discipulado missionário está muito presente na discussão do papel da Cúria. Não é para ser manutenção. Pretende ser o envolvimento da Cúria e de toda a Igreja, é claro, na expansão do trabalho de anunciar o Evangelho de Jesus Cristo e o querigma e aproximar as pessoas do Senhor e da Igreja. Então eu acho que esse é o conjunto fundamental de princípios. Essa é a contribuição mais importante deste documento. É uma reorientação da Cúria Romana – não que não houvesse elementos dessas coisas lá e sempre houve – mas para enfatizar isso.
Houve um apoio muito significativo para a priorização do Dicastério da Evangelização, mesmo sobre o Dicastério da Doutrina da Fé. Alguns se opuseram, mas a esmagadora maioria dos presentes foi a favor. E houve muito apoio para a colocação do Dicastério para o Serviço de Caridade bem perto do topo também. Eu diria que isso foi particularmente verdadeiro entre os bispos africanos, asiáticos e latino-americanos; eles viram a importância da caridade como um caminho de evangelização para a Igreja.
Entendo de minhas conversas com outros cardeais que alguns participantes estavam inquietos ou discordavam da ênfase na Igreja sinodal e pareciam estar mais ligados ao conceito de Igreja hierárquica. Isso veio à tona nas discussões?
Sim, surgiu nas discussões dos pequenos grupos, mas não me pareceu que esse sentimento fosse predominante em nenhum dos pequenos grupos. Isso foi observado nos relatos dos grupos, mas não foi apontado como o sentimento dominante.
Houve várias intervenções sobre esta questão na sessão plenária, e fiquei em parte intrigado com isso. Não fiquei intrigado com a questão da natureza hierárquica da Igreja e o desejo de ver isso afirmado. Isso faz sentido para mim. Mas fiquei parcialmente intrigado por causa da teologia da sinodalidade, como tem sido consistentemente proposta pelo Papa Francisco em suas declarações, por todos os documentos que vieram do escritório sinodal em preparação para o sínodo e pela Comissão Teológica Internacional: em cada um deles é uma afirmação muito significativa da natureza hierárquica da Igreja. Assim, a teologia da sinodalidade afirma a natureza hierárquica da Igreja. Não começa com esse conceito; começa com o conceito de sinodalidade. Mas certamente está presente lá; ele está embutido lá e certamente afirmado explicitamente.
Devo dizer que a noção de começar com a natureza hierárquica da Igreja, e não com um conceito sinodal ou algo próximo da sinodalidade, para mim arrisca um recuo para a visão da Igreja que a vê antes de tudo como uma sociedade perfeita, em vez de povo peregrino de Deus. Acho que esse é o problema com a crítica à sinodalidade como foi apresentada.
Então você vê essa crítica como um afastamento do Concílio Vaticano II?
Sim! E novamente, ninguém, ou pelo menos ninguém que eu tenha escutado falar, se opõe a essa afirmação, uma afirmação forte da natureza hierárquica da Igreja. A teologia da sinodalidade está fazendo isso, mas não foi ela que a começou; não é um ponto de partida, mas é a reflexão da teologia sinodal.
Na sua visão, então, houve um apoio amplo na reunião à abordagem sinodal?
Absolutamente, sim!
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A primeira entrevista de Robert McElroy como cardeal: “A missão da Cúria é estar a serviço” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU