19 Agosto 2022
A transição ecológica deve conceber um sistema de distribuição dos alimentos que envolva a sociedade civil global.
A jornada rumo ao Terra Madre-Salone del Gusto continua com um diálogo com Olivier De Schutter: copresidente do IPES - Food (grupo internacional de especialistas em sistemas alimentares sustentáveis) e relator especial das Nações Unidas para a pobreza extrema e os direitos humanos. Parte da nossa conversa concentrou-se no conflito na Ucrânia e na situação crítica da insegurança alimentar global.
Espero que as reflexões surgidas sejam úteis para imaginar um sistema alimentar mais justo, sustentável e capaz de enfrentar as crises.
O artigo publicado a seguir é uma conversa entre Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore) e Olivier De Schutter, copresidente do Painel Internacional de Peritos em Sistemas de Alimentação Sustentáveis (IPES-Food), relator especial das Nações Unidas para a Pobreza Extrema e os Direitos Humanos, em artigo publicado por La Stampa, 18-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O conflito trouxe para o centro a exigência, fictícia, de aumentar a produção alimentar. Um aumento solicitado sobretudo por empresas multinacionais que justificam, com supostas motivações humanitárias, pedidos de adiamento da regulamentação dos pesticidas ou de flexibilização das normas de rotação das culturas.
Mas eu acredito que o ponto é outro: o preço de alguns bens como o trigo permaneceu inalterado nos últimos 30 anos e, portanto, os agricultores abandonaram essas culturas que não garantiam uma renda adequada. Por que permitimos que isso acontecesse, minando nossa própria soberania alimentar, e com ela também a possibilidade de produzir em harmonia com a natureza e em equilíbrio com o que é produzido por outros países? Esses são os discursos que a política deve abordar.
Por um lado, entendo aqueles que dizem para aumentar a produção como se fosse um reflexo incondicional capaz de acalmar a volatilidade dos mercados. Pena que seja uma afirmação mal informada: as safras de 2020 e 2021 foram boas e os estoques suficientes. O problema é que muitos países emergentes são fortemente dependentes de bens alimentares (cereais, óleos vegetais) vindos da Rússia e da Ucrânia. O bloqueio das exportações em decorrência do conflito fez com que esses estados criassem rapidamente novos fornecedores em um cenário de inflação crescente e, com ele, o espectro da fome e de possíveis distúrbios sociais.
A inflação que atribuímos ao conflito, na realidade remonta ao início de 2020, quando os preços do petróleo e do gás começaram a aumentar, e nosso sistema alimentar é extremamente dependente disso (produção de pesticidas e fertilizantes, transporte, processamento e conservação dos produtos). À medida que o preço dos combustíveis fósseis aumenta, cresce a tentação de destinar uma parcela maior dos produtos agrícolas à produção de biocombustíveis, e não ao consumo humano. Além disso, existem fontes de investimento denominadas "fundos matérias-primas" que agrupam petróleo, gás, minerais e produtos agrícolas em cestas que são vendidas especulando sobre seu valor.
À medida que os preços do petróleo e do gás subiram, houve um aumento no valor das ações desses fundos. Portanto, a mensagem enviada ao mercado é que o preço dos produtos agrícolas também subiria. O custo maior daquilo que comemos, portanto, tem raízes mais distantes do conflito. Devemos trabalhar por um sistema alimentar que deixe de depender dos fósseis, acabando com a submissão dos bens agrícolas a mecanismos financeiros mais grosseiros. A União Europeia deve adotar práticas agrícolas regenerativas e sustentáveis, como a agroecologia, que reduzam a dependência de insumos externos e que respeitem o meio ambiente.
Pandemia e guerra reforçaram a ideia de que a questão ambiental pode continuar a ser adiada porque há crises mais graves a serem enfrentadas. No entanto, não percebemos que, ao fazer isso, enfrentaremos situações catastróficas nos anos vindouros. Devemos trabalhar para responsabilizar a sociedade civil e deixar claro que a transição ecológica é indispensável. Nesse sentido, é animador saber que a Europa realizou a Farm to Fork, a primeira estratégia alimentar comunitária fundamental para enfrentar a transição agroalimentar.
O que falta de forma mais completa é o envolvimento da sociedade civil. A estratégia chama-se “do campo à mesa”, e quando falamos de mesa nos referimos a milhões de cidadãos que todos os dias escolhem quais alimentos comer. Em virtude dessa escolha, deveriam estar envolvidos nos processos decisórios, enquanto os políticos se empenham a dialogar apenas com as federações de produtores e com as multinacionais de alimentos.
Para tornar a sociedade civil protagonista da transição, é necessário investir na educação alimentar: instrumento indispensável para ter cidadãos que demandam e motivam a exigência de mudança. Uma mudança que passa pelo fortalecimento da agricultura local em pequena escala, bem como por canais alternativos de distribuição aos supermercados, pela redução do consumo de carne que gera graves problemas para a saúde nossa e do planeta, sem esquecer o problema do desperdício. A Farm to Fork deve passar para a fase operacional, e só pode fazê-lo incluindo a voz da sociedade civil.
O envolvimento da sociedade civil é fundamental, desde que feito da forma correta. Os primeiros responsáveis pela mudança nas formas de produzir e consumir deveriam ser os decisores políticos nacionais e europeus, ainda que muitos tentem delegar essa responsabilidade aos cidadãos.
Eles costumam apontar o dedo contra os indivíduos, dizendo que dispõem de todas as informações para fazer escolhas alimentares melhores. No entanto, negligenciam o fato de que as escolhas são fortemente influenciadas pelo ambiente alimentar em que se vive, não dependendo, portanto, apenas das informações. Embora o potencial de exercer uma ação individual não esteja em dúvida, a decisão sobre o que comer é moldada por uma gama de influências físicas, econômicas, políticas e socioculturais, a maioria das quais escapa ao controle do indivíduo.
Esse deveria ser a tarefa da estratégia Farm to Fork: olhar além da questão produtiva objeto da Política Agrícola Comum (PAC) e tratar a alimentação em sua natureza sistemática. Nesse sentido, acho que chegou também a hora de estabelecer uma governança da transição que obrigue a manter a rota, definindo indicadores ambientais a serem buscados independentemente da emergência imediata, para garantir a resiliência dos sistemas alimentares. No início da pandemia, já tínhamos assistido a uma interrupção das cadeias de suprimentos, mesmo assim não enfrentamos o problema de maneira estrutural e, portanto, agora está ressurgindo um cenário semelhante com o trigo.
Devemos adotar medidas capazes de proteger nossos sistemas das ondas de choque ligadas a choques externos. Para que isso aconteça, a centralidade da questão ambiental é absolutamente decisiva, assim como o redirecionamento dos fluxos financeiros para sustentar um sistema alimentar que preste serviços ecossistêmicos, crie empregos e produza alimentos saudáveis e nutritivos.
Concordo totalmente. Precisamos sair de uma lógica de pensamento errada que rotula o alimento bom limpo e justo como um privilégio, ao invés de um direito humano. Uma crítica que há anos fazem contra a Slow Food é o fato de pregarmos uma alimentação para gourmands que têm dinheiro. Isso porque eles nos acostumaram a pedir passivamente que o alimento fosse o mais econômico possível.
Aqui volto a reiterar a importância da educação alimentar para compreender o verdadeiro valor do alimento. De fato, não são só os ricos que desperdiçam alimento, isso é uma praga comum a todo mundo, independente da renda. Assim como há alimentos a preços baixíssimos, mas que fazem mal. A educação é essencial para entender que os alimentos não devem ser nem baratos nem caros, mas justos.
A produção em massa para baixar os preços e garantir a segurança alimentar foi um dos pressupostos básicos da PAC desde a sua criação. Mas agora podemos constatar que o alimento a baixo custo não é a solução, pois destrói o planeta e deixa as pessoas doentes. As famílias pobres são as que mais sofrem com essa armadilha: afeitas por obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares associadas ao junk food. Hoje, o alimento bom ainda é muito caro e muitas pessoas não podem comprá-lo.
Se os danos sociais e ambientais se refletissem no preço final dos alimentos, ou seja, se começássemos a fazer o agronegócio pagar suas externalidades, em vez de subsidiá-las, começaríamos a ver uma mudança. Ao mesmo tempo, o preço não é a única variável que define o acesso aos alimentos. Para muitos, o tempo gasto na preparação das refeições está se reduzindo.
Alguns apartamentos nem sequer têm a cozinha, mas apenas um micro-ondas para aquecer refeições prontas. Refeições em companhia estão se tornando quase uma exceção, enquanto alimentar-se deveria ser um ato fisiologicamente convivial. Existe, portanto, uma série de obstáculos à boa alimentação que vão além do preço e que necessitam de uma aliança de intenções e organizações que, na diversidade de preocupações e competências, deem início à regeneração na forma de comer.
Devemos travar uma batalha feliz em direção a uma mudança sustentável. Podemos fazer isso juntos, através do alimento.
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Fome de justiça. Uma conversa de Carlo Petrini, fundador do Slow Food, com Olivier De Schutter, presidente do IPES-Food - Instituto Humanitas Unisinos - IHU