19 Agosto 2022
"Hoje a Igreja parece viver muito dentro do quadrado eclesiástico, apesar dos convites do Papa Bergoglio para sair, enquanto os bispos (que permaneceram a única classe dirigente católica com o esmorecimento dos leigos católicos) poucas vezes tomam palavra. Chama a atenção que, nas missas dominicais, não se ouça rezar pela paz enquanto há guerra na Ucrânia. Muitas vezes os discursos eclesiais não falam à vida comum", escreve o historiador da Igreja italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 18-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A questão católica acompanhou por quase um século e meio, como uma constante, a história da Itália. Trataram dela políticos e intelectuais, de tempos em tempos: do Risorgimento ao afrouxamento do Pacto Gentiloni em 1913, à reconciliação com o fascismo, aos populares de Sturzo e à DC de De Gasperi. Cavour, Gramsci, Sturzo, Togliatti, Berlinguer, para citar apenas alguns nomes, abordaram a questão católica como um componente decisivo do cenário político e cultural da Itália. Em vários momentos, viu-se a importância dos católicos, da Igreja e do papado: três realidades conectadas, não identificáveis em tudo, que fizeram a diferença entre a Itália e a França ou a Espanha. Durante a primeira República, a DC, apoiada pela Igreja, foi a força central. Sua dissolução em 1994 abriu uma nova temporada, determinando o eclipse da questão católica.
O fim do partido católico e a superação da unidade política dos católicos foram geridos pelo Card. Ruini, presidente da CEI de 1991 a 2007, com uma estratégia que recebeu o nome de "ruinismo" (um neologismo que entrou no Vocabulário Treccani). Por um lado, Ruini procurou dar consistência ao "projeto cultural", um horizonte comum que abraçasse os católicos, tendo como pano de fundo os chamados valores não negociáveis; de outro, entre as forças políticas, teve como interlocutor a centro-direita de Berlusconi. A temporada de Ruini também está em grande parte ligada à liderança forte (e diferente) de João Paulo II.
Mas muita coisa mudou na Itália e no mundo. Os católicos italianos não parecem representar um interlocutor no país (com exceção do Papa Francisco: isso foi visto em alguns momentos difíceis como a pandemia). Algum tempo atrás, circulava uma história nos ambientes do Vaticano: depois de um almoço em homenagem aos novos cardeais italianos, Renzi, primeiro-ministro, teria dito aos seus: "Vejam, são eles que precisam de nós, não nós deles". Uma piada talvez não verdadeira, mas que mostra como a Igreja não faz diferença e o voto católico não tem mais peso.
Afinal Matteo Salvini teria dito, algum tempo atrás, a um prelado: "Nós temos em percentual de votos maior do que o das pessoas que vão à missa". Mesmo que o líder da Liga tenha demonstrado devoção e seu slogan eleitoral, "Creio", pretende ter algum significado religioso. Fratelli d’Itália, ao se referir à tradição, leva em consideração uma relação com a Igreja. Mas entre a direita e a Igreja há uma grande distância que não pode ser facilmente transposta. Em suma, a questão católica é periférica na política, quase ausente na centro-esquerda, muito atenta aos direitos individuais.
Dá o que pensar o severo parecer de um observador atento dos eventos internacionais, Lucio Caracciolo, na última edição de Limes: "a decadência da Igreja é o outro lado do declínio italiano". A Igreja sustentou, em parte, os desassestos do terreno social italiano: da guerra, à reconstrução, ao assassinato de Aldo Moro, ao secessionismo nortista (com uma forte intervenção de João Paulo II para a unidade da Itália em 1994).
Nos momentos trágicos, vários bispos falaram como defensor civitatis. Hoje a Igreja parece viver muito dentro do quadrado eclesiástico, apesar dos convites do Papa Bergoglio para sair, enquanto os bispos (que permaneceram a única classe dirigente católica com o esmorecimento dos leigos católicos) poucas vezes tomam palavra. Chama a atenção que, nas missas dominicais, não se ouça rezar pela paz enquanto há guerra na Ucrânia. Muitas vezes os discursos eclesiais não falam à vida comum.
No entanto, a Igreja é a maior rede social do país. Vimos isso durante o Covid e em momentos de difícil coesão social. Na Itália existe uma Igreja do fazer, do crer, do rezar, do entrelaçamento dos laços sociais, que ainda é um valioso recurso civil. No entanto, essa realidade precisa encontrar palavras e linguagem para atravessar um discurso público, para dar voz a experiências e sentimentos que vivem dentro dela.
Não se trata de voltar aos "anos da onipotência", como os definia um protagonista do movimento católico, mas de expressar as dimensões da própria realidade e responsabilidade. De fato, no mundo dos cristãos italianos vive ainda hoje uma abordagem concreta, séria e exigente, que tem muito a dizer à volatilidade da linguagem da política, aguçada na campanha eleitoral e que cansou muitos italianos, como infelizmente mostra o abstencionismo.
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Questão católica, uma centralidade a ser redescoberta. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU