O professor José de Souza Martins, ao comentar os atos de 11 de agosto, aponta que "muitos, ingenuamente, acharam que com as Diretas, já! e a nova Constituição todos os problemas estruturais da sociedade brasileira estavam resolvidos". Para ele, "A estrutura fundamental do Estado brasileiro continuou retrógrada e autoritária. O que houve foi uma conciliação de sobrevivência entre esquerda e direita, que foi se esgotando aos poucos".
Mais especificamente com relação à carta e toda a mobilização da semana passada, considera que o documento em si revela muito pouco. "Prudentes, seus autores reduziram o propósito do documento ao que pode unificar a complexa diversidade política e social brasileira para que pudesse favorecer a formação de uma frente ampla pela democracia e, sobretudo, pelo Estado democrático de Direito", observa. "Diferente do que ocorreu em grandes manifestações de massa do passado, nesta o Brasil mostrou uma nova cara política. Não a da estrutura de classes sociais, mas a das identidades segmentárias, os novos sujeitos que nasceram durante a luta contra a ditadura militar e se consolidaram nos anos seguintes. Só a bela trajetória política dos povos indígenas desse longo período não teve a devida visibilidade nos atos", completa, defendendo a tese de que o ato foi muito mais de "uma mentalidade urbana e de classe média".
A entrevista reproduzida a seguir foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 15-08-2022.
José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do Youtube)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016) e Sociologia do Desconhecimento – Ensaios sobre a incerteza do instante (Editora Unesp, 2021).
IHU – Qual sua análise quanto ao atual momento da democracia no Brasil? Como chegamos a esse quadro?
José de Souza Martins – A democracia no Brasil, mesmo com a Constituição de 1988, tem sido frágil e fragilizável. Apesar da robustez dos primeiros governos, tem sido uma democracia do papel, mas não tem sido substantiva e sólida, baseada no reconhecimento da pluralidade cada vez maior da sociedade brasileira. Polarizada entre uma direita voraz, frequentemente corrupta e corruptora, e uma esquerda dividida e de vários modos alienada porque limitada à polarização e aos antagonismos ideológicos, mais partidária do que propriamente política. Muitos, ingenuamente, acharam que com as Diretas, já! e a nova Constituição todos os problemas estruturais da sociedade brasileira estavam resolvidos. Não estavam. A estrutura fundamental do Estado brasileiro continuou retrógrada e autoritária. O que houve foi uma conciliação de sobrevivência entre esquerda e direita, que foi se esgotando aos poucos.
Nossas esquerdas nunca tiveram clara consciência social e crítica, fundada nas revelações e carências fundamentadoras da práxis e da diversidade estrutural desta sociedade. Não se deram conta de que o Brasil faz parte do mundo, de que a história não se repete nem é cópia da de outras sociedades. Sobrepusemos uma alienação de esquerda à alienação capitalista. Não nos demos conta de que o capitalismo se realiza de modos singulares e peculiares em cada sociedade. Aqui, com o neoliberalismo, trataram de nos impor o modelo econômico americano. Importamos irracionalidades e contradições dos outros.
Não levaram em conta as heranças persistentes e incontornáveis da ditadura militar. A mais sólida, a da aliança do capital com a renda fundiária, sob a forma de renda capitalizada, uma mutilação do capitalismo que fez do nosso um capitalismo rentista, isto é, anticapitalista, que não pode ser interpretado corretamente com o marxismo esquemático dos manuais de ideologia. Não pode ser combatido nem superado com a concepção de um capitalismo binário no qual não há como reconhecer o caráter trinário do capitalismo brasileiro e suas tensões únicas, por isso mesmo, agravadas.
IHU – O que a ação da organização de uma carta pública em defesa da democracia revela? Por que esse movimento chegou a tal proporção com milhares de assinaturas?
José de Souza Martins – A carta revela pouco. Prudentes, seus autores reduziram o propósito do documento ao que pode unificar a complexa diversidade política e social brasileira para que pudesse favorecer a formação de uma frente ampla pela democracia e, sobretudo, pelo Estado democrático de Direito.
As revelações ocorreram nos atos de leitura da carta em vários cantos do Brasil. Diferente do que ocorreu em grandes manifestações de massa do passado, nesta o Brasil mostrou uma nova cara política. Não a da estrutura de classes sociais, mas a das identidades segmentárias, os novos sujeitos que nasceram durante a luta contra a ditadura militar e se consolidaram nos anos seguintes. Só a bela trajetória política dos povos indígenas desse longo período não teve a devida visibilidade nos atos.
Aparentemente, uma mentalidade urbana e de classe média perpassou os atos. Um novo Brasil político se expressou nas falas e manifestações, o que praticamente inaugura uma nova era política na sociedade brasileira.
IHU – Quais os pontos mais significativos que destacas da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”?
José de Souza Martins – Apesar da euforia das milhares de pessoas que acorreram às manifestações, o documento é cauteloso e objetivo. Especialmente na alusão ao fato de que a pátria está em perigo, ameaçada por aqueles que constitucionalmente deveriam defender as instituições. É uma conclamação à vigilância pela democracia.
IHU – Enquanto acompanhamos todas essas manifestações pela democracia, há um Brasil que não chega a ler, assinar ou participar de debates como o proposto na carta. De que forma podemos envolver e levar essa lufada de ar impregnado de Estado Democrático de Direito a essas pessoas?
José de Souza Martins – Essa é uma questão antiga e não é a questão do momento, embora seja muito conveniente ficar atento a esse problema. O momento pede uma ação focada e aglutinadora em favor da democracia. Mas a onda de adesões ao documento no dia da leitura da carta sugere que ele representa um despertar de consciência e de coragem, é ele o antivírus do entorpecimento da vontade política dos que foram abatidos pela pandemia e pelo bolsonarismo.
Estou muito surpreso com a reação dos pastores de várias igrejas evangélicas contra a onda autoritária e a instrumentalização de religiões como meios de afirmação do caráter autoritário do Estado herdado da ditadura, autoritarismo de que evangélicos e protestantes foram cúmplices, em alguns casos até mesmo apoiadores da tortura e morte de presos políticos. A reação desses pastores é uma rebelião política em nome da fé. Destaco alguns: o pastor Ariovaldo Ramos, o pastor Henrique Vieira, o pastor Ed René Kivitz. Destaco a preocupação do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, apoiadora da ditadura militar e do retorno do autoritarismo com Bolsonaro, com a possibilidade de um novo cisma na Igreja em consequência desse envolvimento.
IHU – Diante dos indicadores de insatisfação e desconfiança da população com o sistema político brasileiro, as atuais mobilizações pela manutenção do Estado Democrático de Direito são suficientes para evitar um golpe?
José de Souza Martins – Não necessariamente. Mas diversamente do que aconteceu em 1964, a tentativa de retomar o que havia de pior e mais iníquo naquela ocasião, a pressuposição de que com a eleição de Bolsonaro o eleitorado teria optado por um retorno à ditadura não vingou para um número expressivo de eleitores que poderão decidir o destino do Brasil já no dia 2 de outubro. Diversamente do que aconteceu na eleição de Bolsonaro, as fake news foram situadas, desmascaradas e criminalizadas. Em 2018, o povo foi enganado. A questão é saber se o número dos enganáveis será suficiente para legitimar um golpe de Estado.
Os militares sabem que estão desmoralizados por reles e duvidoso tenente, já acusado de terrorismo e excluído do Exército com o prêmio de consolação da promoção administrativa a capitão, sem qualquer mérito militar. O que não quer dizer que ele tenha deixado de ser perigoso. Por outro lado, os países civilizados já mandaram seu recado claro e objetivo quanto ao que esperam que aconteça no Brasil. Um país falido não tem condições de peitar as potências. O preço econômico e político será muito alto.
O recado cívico e cidadão que o general Lloyd Austin, dos EUA, mandou ao governo brasileiro e aos militares brasileiros, de que os militares são servidores da sociedade civil e não o contrário, é um murro naquele equivocado artigo 142 da Constituição que marotamente foi introduzido na carta de 1988, que definiu os militares como tutores do Estado e da sociedade. É o artigo que tem sido invocado em todas as manobras golpistas do governo Bolsonaro.
IHU - Deseja acrescentar algo?
José de Souza Martins - As eleições dirão de que lado Deus está, já que Deus foi transformado em eleitor no Brasil.