A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 20º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 12,49-53.
“Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49).
À primeira vista, o evangelho deste domingo pode provocar um certo mal-estar e nos deixar com um sabor amargo; dá a sensação de que Jesus veio para trazer fogo (um incêndio provocado) e divisão. Isto seria incoerente com seu modo de viver e sua mensagem.
Em primeiro lugar, é preciso nos conectar com o evangelho do domingo anterior onde Jesus afirmava que “foi do agrado do Pai nos confiar o Reino”. Se compreendemos bem tal afirmação, que implicações e exigências têm para nós, seus(suas) seguidores(as)?
Fazer caminho com Jesus não é para as pessoas “frias” ou “mornas” em seu modo de viver. Seguimento implica calor humano, paixão, emoção...; seguir é ser fogo, reavivar o fogo interior, iluminar, dar calor...
Jesus não veio provocar um incêndio destruidor. Ele nos fala da imagem do fogo como elemento que limpa e purifica, usado tanto pelos camponeses (“limpará completamente sua eira; recolherá seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em fogo inextinguível” – Mt 3,12), como por aquele que busca purificar o ouro, “que é provado no fogo” (1 Pd 1,7). Em qualquer caso, a imagem do fogo era muito eloquente para os primeiros cristãos, também provados no fogo da perseguição, que deixava a descoberto a pureza e solidez de sua fé.
João Batista também fala de Jesus como aquele que “batizará com Espírito Santo e fogo” (Mt 3,11). E esta promessa se cumpre em Pentecostes: “Apareceram línguas como de fogo... Todos ficaram cheios do Espírito Santo” (At 2,3). Também os discípulos de Emaús sentiram arder seus corações quando escutavam as palavras do Ressuscitado, que caminhava junto deles.
S. Teresa de Jesus entendeu isso bem quando fala da “alma” como uma mariposa que se aproxima do Fogo, até ficar transformada, ela mesma, em fogo.
A imagem do “fogo” nos desafia a nos aproximar da pessoa de Jesus e viver o seguimento de maneira mais ardente e apaixonada. Pois seguir Jesus não é questão de razão, mas de afeto, de atração, de sedução...
O fogo que ardia no interior de Jesus era a paixão pelo Reinado do Pai e a compaixão pelos que sofriam. Jamais poderá ser desvelado esse amor insondável que o animava e o fazia arder em seu compromisso com a vida. O mistério de sua vida nunca poderá ficar contido em fórmulas dogmáticas nem em livros de sábios teólogos. Jesus atraia e queimava, perturbava e purificava. Ninguém podia segui-lo com o coração apagado ou com uma piedade estéril.
Sua palavra, sua liberdade, seu estilo de vida... fez arder os corações de todos aqueles que dele se aproximaram: revelou sua presença amistosa junto aos mais excluídos, despertou a esperança e a confiança nos pecadores mais desprezados, lutou contra tudo aquilo que violentava o ser humano, combateu os formalismos religiosos, os rigorismos desumanos e as interpretações estreitas da lei. Nada e nem ninguém podia bloquear sua liberdade e impedi-lo de fazer o bem.
Nunca poderemos segui-lo vivendo na rotina das práticas religiosas ou no convencionalismo do “politicamente correto”. Nenhuma religião nos protegerá de seu olhar provocante. Nenhuma doutrina nos livrará de seu desafio. Jesus está nos chamando a viver na verdade e amar sem reservas. Isso queima!
A maneira livre de Jesus viver, junto com a fidelidade à missão confiada pelo Pai, fez com que sua vida se tornasse questionadora, e inclusive provocativa, para aqueles que se encontravam instalados em posições de poder e que não estavam dispostos a modificar. Por este motivo, a atitude e o comportamento de Jesus sempre foi fonte de tensão, conflito ou divisão. E assim deve ser entendida toda sua vida.
Jesus, com o seu modo original de ser e viver, acendia os conflitos, não os apagava. Não veio trazer falsa tranquilidade, mas tensões, enfrentamentos e divisões. Na realidade, Ele introduziu o conflito no próprio coração do ser humano. E isso comprometia inclusive a vida e a unidade das famílias. Até ali chegou a radicalidade da mensagem de Jesus, pois Ele mesmo foi incompreendido pelos seus próprios familiares, foi desprezado, traído e crucificado pelo seu povo.
Há um traço na personalidade de Jesus que os Evangelhos destacam: Ele era um “transgressor”.
Sua transgressão decorria da percepção de situações extremamente injustas vigentes na sociedade e das quais as primeiras vítimas eram os excluídos. Jesus optou por ficar do lado das vítimas.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Jesus não buscou o conflito (já que trazia uma mensagem de amor e fraternidade) mas conheceu uma das experiências conflitivas mais dramáticas da história humana.
Falar em conflito na missão de Jesus é o mesmo que falar da sua fidelidade.
O que tem valor em sua vida é seu Amor fiel, e não os conflitos em si mesmos. A dimensão conflitiva da fidelidade de Jesus é o resultado do confronto entre sua missão (que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças) e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade do Reino.
A conflituosidade na vida de Jesus proveio do choque entre as exigências do Amor e a realidade injusta e pecadora. Jesus não cria conflitos; Ele os constata ao dar testemunho das exigências do Amor.
Evidentemente, as palavras e a vida de Jesus nos mostram que Ele foi portador de paz, mas não uma paz sem conflito. Muitas vezes, Ele nos recorda que trabalhar pelo Reino é um processo transformador que exige passar pela porta estreita, deixar-nos refazer até nascer de novo; neste caso, a paz não é comodidade, não é deixar as coisas como estão, mas viver um processo de transformação profunda, que costuma incluir despojamento e sofrimento.
O conflito também perpassa nossa vida pessoal, familiar e comunitária; não é acidente de percurso, é permanente: conflitos no interior da Igreja, no interior das comunidades; conflitos de origem social, cultural e político; conflitos gerados pela missão entre os pobres e pela defesa de seus direitos; conflitos de consciência, de lealdade; conflitos que se originam da missão profética da Igreja...
Mas, o que move a pessoa sábia não é o conflito por si mesmo, e sim o “fogo” interior que a habita. Um fogo que a torna firme e flexível ao mesmo tempo, respeitosa e apaixonada, amorosa e sagaz.
Esse “fogo” não é outra coisa que a expressão da Vida em nós. Se não lhe prestamos atenção e vivemos à margem dele, fica como apagado e morto. Nossa existência permanecerá marcada pela resignação e pelo conformismo. Quando, pelo contrário, mantemos a conexão consciente com a Vida que somos, o fogo se desperta até consumir-nos por completo. A partir daí, já não vive o eu, mas a Vida mesma em nós.
No contexto atual, a vivência cristã parece esvaziar-se, mas o fogo trazido por Jesus ao mundo continua ardendo debaixo das cinzas. Não podemos deixar que se apague. Sem fogo no coração não é possível segui-lo.
Assumir a causa de Jesus gera conflitos; mas o conflito é um “ensaio da esperança”, uma certeza de que o Espírito renova todas as coisas sobre a face da terra. O conflito é certeza da “novidade” que vem; por isso exige um discernimento permanente.
- Como crescer e amadurecer no conflito? Como viver o Evangelho no conflito? Como ser fiel à missão em meio aos conflitos?