Por: André | 17 Agosto 2013
Algumas formas de divisão são intoleráveis. Mas algumas pazes também, quando se trata de um silêncio cúmplice que evita decisões dolorosas que se impõem. O verbo latino que deu origem à nossa palavra decisão, significa cortar, dividir. Jesus não traz a paz no sentido de que a sua palavra, se nós a ouvimos verdadeiramente, nos obriga a decidir, a cortar a favor ou contra o que ela exige de nós.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 20º Domingo do Tempo Comum – Ciclo C do Ano Litúrgico (18 de agosto de 2013). A tradução é de André Langer.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Jr 38,4-6.8-10
Segunda leitura: Hb 12,1-4
Evangelho: Lc 12,49-53
Eis o texto.
Hoje, mais uma vez, somos convidados a seguir Cristo, como discípulos, mensageiros, portadores e portadoras da sua Palavra. Desde o 13º domingo, nós nos encontramos no caminho para Jerusalém, e, a cada semana, o Evangelho de Lucas nos ensina o que quer dizer seguir Cristo. Nas últimas semanas, aprendemos que para seguir Cristo é preciso estar livre, desfazer-se de tudo o que nos impede de prosseguir no caminho da vida, de olhar para frente, que a missão não nos pertence; estamos a serviço da missão, que é preciso nos tornar próximos dos outros, sem nenhuma discriminação, que em nossas celebrações a Palavra é primeira, que a oração nos torna responsáveis pelo que dizemos e pedimos, que devemos ser ricos de coração e não em celeiros, e que somos servos responsáveis. Essas são as exigências para sermos cristãos, e ainda não acabou... Hoje, as exigências nos levam ainda mais longe...
1. O fogo
“Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49). O que isto quer dizer? Eu li comentários de exegetas que veem nesse fogo uma espécie de purificação, uma distinção entre o bem e o mal. Pessoalmente, não concordo com esta interpretação. Prefiro a interpretação da Bíblia TOB que explica, em uma nota de rodapé, que se trata do batismo do Espírito e do fogo inaugurado no Pentecostes. Lembrem-se desse relato de Lucas, no livro dos Atos dos Apóstolos, em que no dia do Pentecostes, línguas de fogo descem sobre todos os presentes... E o que esse fogo provocou neles? Tornou-os capazes de sair a público e falar uma linguagem que todos podiam compreender. É, portanto, a linguagem do Amor, porque é a única linguagem que podemos compreender em todas as línguas.
E este Amor se expressa, em primeiro lugar, na Palavra com “P” maiúsculo, e se torna um gesto, uma ação, na sequência. Não existe o ditado que diz que é preciso dar mãos à Palavra? Todo o Evangelho fala do Amor: um Amor incondicional e total da parte de um Deus que é reconhecido através do homem e da mulher e que se serviu de Jesus de Nazaré, que se tornou o Cristo e Senhor Ressuscitado. Recordemos as mensagens relatadas pelos evangelistas e que provêm do Cristo ressuscitado: a acolhida do outro, sobretudo dos mais fracos, o perdão em toda a sua gratuidade, a partilha com os mais pobres, trabalhar por mais justiça, mais igualdade, mais dignidade... Como discípulos, temos que espalhar esse Amor, esse fogo, e nós somos capazes disso, porque somos habitados pelo Espírito de Cristo desde o Pentecostes, e diria mesmo que desde a noite da Páscoa e mesmo desde a cruz da Sexta-feira Santa.
A própria Palavra é um fogo! Recordemo-nos do profeta Jeremias, não no trecho de hoje, mas no capítulo 20, versículos 7 a 9, onde Jeremias diz, em relação à Palavra que devia proclamar: “Quando eu pensava: ‘Não me lembrarei dele, já não falarei em seu Nome’, então isto era em meu coração como um fogo devorador... Estou cansado de suportar, não posso mais!”. Isso era mais forte que ele, o profeta devia proclamar a Palavra imperiosamente.
2. O batismo
“Devo receber um batismo, e como me angustio até que esteja consumado!” (Lc 12,50). O que também isso quer dizer? De que batismo o Jesus de Lucas , que é o Cristo da Páscoa, está falando? Do batismo que é um mergulho, mergulho na morte, não para ficar aí, mas para ressuscitar. É o mistério pascal que é evocado por Lucas, num momento da história em que as perseguições aos cristãos são moeda corrente.
É evidente que isso faz referência à morte e ressurreição de Jesus, porque é o mesmo sentido do batismo cristão. Não é apenas um batismo na água que purifica, mas também um batismo que é um mergulho na morte de Cristo para ressuscitar com ele. É esse batismo que nós recebemos como cristãos e é por esse batismo que nós devemos viver como discípulos de Cristo, como ressuscitados, como Cristos da Páscoa. Quer sejamos homens ou mulheres, brancos, amarelos ou negros, heterossexuais ou homossexuais ou transgêneros, pequenos ou grandes, somos todos e todas chamados a viver como Cristo, porque fomos mergulhados em sua morte e ressurreição com ele. São Paulo, na carta aos Gálatas, diz: “Pois todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,27-28).
E esse batismo dá todo o sentido ao resto do Evangelho de hoje.
3. A divisão e a decisão
“Pensais que vim para estabelecer a paz sobre a terra? Não, eu vos digo, mas a divisão” (Lc 12,51). Eu li um exegeta que dizia que esta Palavra o chocava muito. Como pode Jesus, que nos fala de paz e de amor, ao mesmo tempo dizer que veio semear a cizânia em nosso mundo? Mas não é isto que esta Palavra quer dizer. Gérard Sindt escreve: “Algumas formas de divisão são intoleráveis. Mas algumas pazes também, quando se trata de um silêncio cúmplice que evita decisões dolorosas que se impõem. O verbo latino que deu origem à nossa palavra decisão, significa cortar, dividir. Jesus não traz a paz no sentido de que a sua palavra, se nós a ouvimos verdadeiramente, nos obriga a decidir, a cortar a favor ou contra o que ela exige de nós”.
Na época em que Lucas escreve o seu evangelho, a decisão de ser cristão, de seguir Cristo, semeava a divisão, a controvérsia, a perseguição, inclusive nas famílias. Mais ainda hoje, na nossa Igreja, não há divisão no seio mesmo daqueles que dizem seguir Cristo? Há, certamente, divisões que persistem entre cristãos de diferentes denominações, mas esse não é meu objetivo; eu falo das divisões dentro da nossa Igreja católica romana. Há mais que diversidade; há ruptura entre a hierarquia e os fiéis. O que fazer para decidir e para cortar? Impor os dogmas contra vento e maré? Excluir todos aqueles e todas aquelas que não pensam como as autoridades romanas? Aplicar as regras com o rigor exigido?
É desta maneira que se agia antes da chegada do novo Papa, o Papa Francisco, e vemos no que isso dá: uma Igreja que se esvazia cada vez mais, uma Igreja a ponto de morrer, uma Igreja em fase terminal. Isso ocorreu por que não se tomou as decisões corretas? O que fazer então? Talvez retomando os evangelhos e aprendendo as mensagens de Cristo que os evangelhos nos ensinam, possamos reencontrar um sopro novo, uma lufada de ar fresco, uma brisa de esperança. É o que o Papa Francisco está fazendo: uma grande limpeza não apenas na Cúria romana, mas também na própria estrutura da nossa Igreja. Pela primeira vez, ele nos fala de pastoral. Ele não recorda a todo momento a doutrina; essa nós conhecemos... Ele nos diz como fazer pastoral, ali onde estamos com os dois pés. Pessoalmente, isso me faz muito bem, e não estou sozinho. Eu ouvi muitas pessoas que se afastaram da Igreja há um bom tempo e que me disseram que esse Papa os interpela profundamente. Faz bem ouvir isso.
Recordemos que nesse domingo em que se celebra o Orgulho Gay, não é normal, nem evangélico que se exclua esta parcela da população, simplesmente porque eles têm uma orientação sexual diferente da maioria, mas uma orientação que eles não escolheram e que eles procuram assumir da melhor maneira possível, sempre guardando a fé e a esperança cristã. “Quem sou eu para julgar os homossexuais?”, disse o Papa Francisco, no avião que o levava de volta para Roma após a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. É evidente que os homossexuais, assim como os heterossexuais não são perfeitos... Mas uns e outros são convidados a amar na fidelidade e no respeito da dignidade de uns e outros. O que está acontecendo na Rússia e em muitos países, e mesmo aqui em Quebec e no Canadá, onde se dá provas de discriminação, violência, desprezo e exclusão em relação aos homossexuais, é inaceitável e isso deve ser denunciado por toda a população, inclusive pelos cristãos. Temos de dizer não à homofobia. Para mim é uma decisão que vai semear a divisão, escusado será dizer, mas é uma decisão que o evangelho me inspira. Será também uma prova de fidelidade aos ensinamentos de Jesus.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O fogo da Palavra (Lc 12,49-53) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU