"As religiões precisam forjar entre si um caminho de paz (n. 281) e isso faz parte de sua vocação original, religar o ser humano com seu criador [16], e devem esforçar-se por vencer o caminho do fundamentalismo religioso", escreve Adriano Cézar de Oliveira, licenciado em Filosofia, bacharel e especialista em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Especialista em História da Arte Sacra pela Faculdade Dom Luciano Mendes. Especialista em Ciências da Religião pela Faculdade Única. Pesquisador do grupo “A imagem de Deus: Religião, História e Arte” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Não obstante à longa travessia, ainda em curso, da pandemia global do novo coronavírus (SARS-CoV-2), atualmente no planeta, além da guerra impetrada pela Rússia à Ucrânia, acontecem conflitos de guerra na Síria, Iêmen, Etiópia, além do Israel-Palestino. Todos, sem exceção, produzem um incalculável contingente de mortos, desabrigados, uma multidão de refugiados. Para além disso, há um catálogo infindável de crimes marcados por fundamentalismo religioso, racismo, xenofobia, torturas e guerra de versões, potencializadas por ataques hackers.
Todos esses elementos são costurados com o fio do discurso econômico, senão determinados por ele. O lucro descortinado pela produção de armas se soma à constante ameaça de conflito nuclear e o mercado é o único que sai lucrando balizado pela lei da oferta e procura. Quem paga esta conta? A resposta é sempre clara e evidente quanto óbvia.
Demétrio Magnoli, organizador das obras História da Guerra e História da Paz, no início desde último questiona: a insanidade dos homens conduzirá realmente o planeta à sua destruição por conta de guerras nucleares e desequilíbrio ecológico? Será que temos feito esforços adequados para manter a paz entre nações e a habitabilidade deste nosso abrigo comum? E quem não tem interesse em saber que sempre houve pessoas empenhadas em evitar guerras, em prevenir situações de conflito, em preservar a natureza e evitar a proliferação de artefatos nucleares?
Frei Francisco de Assis (1182-1226)[1], mesmo antes do reconhecimento de sua santidade ao ser canonizado, em 1228, pelo Papa Gregório IX (1170-1241), na pregação de sua vida[2] e em seus escritos, buscou e testemunhou o laborioso trabalho da paz e não violência, deixando essa herança[3] ao franciscanismo nascente.[4]
Papa Francisco em sua mais recente Carta Encíclica sobre a Fraternidade e a Amizade Social destaca, já no início, a figura de Francisco de Assis como um buscador unido à humanidade e um autêntico promotor da paz e não violência. Afirma o pontífice, “São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos.[5] E continua,
"naquele mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos." [6]
Passemos aos testemunhos literários, Frei Francisco em seu Testamento[7], escrito em seus últimos dias de vida, deixou testemunhado as seguintes palavras: “Salutationem mihi Dominus revelavit, ut diceremus: Dominus ded tibi pacem - Uma saudação me revelou o Senhor, que disséssemos: O Senhor te dê a paz (cfr. 2Ts 3,16)[8]”, fazendo, assim, memória sobre como viveu e transmitiu a paz. Esse testemunho pode ser verificado no corpus da produção literária do período, tanto nas múltiplas propostas hagiográficas escritas sobre a vida do poverello, quanto em seus escritos[9]. Assim, encontramos os seguintes testemunhos:
Nos Escritos de Francisco, no que se refere aos textos legislativos, ou proposta de vida, isto é, regra de vida para aqueles que desejarem seguir a forma de vida dos irmãos menores, destacamos dois testemunhos. O primeiro da Regra não Bulada 17,15: “e se esforça pela humildade e paciência e pura e simples e verdadeira paz de espírito” e o segundo da Regra Bulada 3,10-13:
"Aconselho, porém, admoesto e exorto meus frades no Senhor Jesus Cristo que, quando vão pelo mundo, não litiguem nem contendam com palavras (cfr. 2Tm 2,14), nem julguem os outros; mas sejam amáveis, pacíficos e modestos, mansos e humildes, falando a todos honestamente, como convém. E não devem cavalgar, senão obrigados por manifesta necessidade ou doença. Em qualquer casa em que entrem, digam primeiro: Paz a esta casa (cfr. Lc 10,5)."
Nas Hagiografias existem muitos episódios que demonstram a atitude de Francisco na busca e na promoção da paz, destes destacamos alguns. Na Segunda Vida Tomás de Celano 89, Francisco quebra a lógica da violência e da injustiça e exorta um conhecido à prática do perdão. Ainda no mesmo livro, no número 108, narra-se o episódio da luta interna na cidade de Arezzo, e Francisco envia Frei Silvestre para rezar na porta da cidade e a cidade volta à paz.
Na narrativa da Legenda Perusina 37, lemos o encontro de Francisco com o sultão Malek-al-Kamil durante a V Cruzada (1217-1221), no ano de 1219, na cidade de Damieta, Egito, no qual, superando as hostilidades da guerra, parte ao acampamento inimigo para clamar pelo fim da guerra[10]. No mesmo livro, agora no número 44, conta-se que no ano de 1225-1226, houve litígio e excomunhão entre o bispo e o podestà, prefeito, de Assis, e Francisco, doente e debilitado, pediu aos companheiros que cantassem a eles o Cântico do Frei Sol, envergonhados e comovidos fizeram as pazes e restabeleceram a concórdia. Diz o Cântico 10-11: Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor (cfr. Mt 6,12), e suportam enfermidades e tribulações. Bem-aventurados os que as suportam em paz (cfr. Mt 5,10), que por ti, Altíssimo, serão coroados. Ainda, no número 90, Francisco se destaca em sua pedagogia de paz para lidar com os ladrões de Borgo San Sepolcro.
O episódio mais clássico relacionando Francisco à paz é o texto de Fioretti 21 que conta a alegoria do Lobo de Gubbio e o “tratado de paz” em que Francisco foi o ‘diplomata”, rico episódio no qual percebemos que a paz não nasce milagrosamente, mas é fruto de um laborioso trabalho de prática de abertura e integração das diferenças.[11]
No que tange à reflexão da não violência, propomos a Carta a um Ministro, como um ícone capaz de exprimir a singularidade e a sensibilidade que exige a reflexão dessa temática. Francisco, após abençoar o Ministro, exorta-o a acolher tudo como graça de Deus e testemunhar isso como verdadeira obediência e amor (1-8). Em seguida, lança o maior dos desafios da não violência, a capacidade de acolher (9-11). Por fim, procede descrevendo o modo de agir em relação à confissão dos pecados (12-20) e pede ao Ministro que guarde consigo este escrito e o cumpra com a ajuda do Senhor (21-22).
"E nisto quero conhecer se tu amas ao Senhor e a mim, servo seu e teu, se fizeres isto, a saber: que não haja nenhum frade no mundo, que tenha pecado tanto quanto puder pecar, que, depois que tiver visto teus olhos, nunca se retire sem a tua misericórdia, se buscar misericórdia. E se não buscar misericórdia, que tu lhe perguntes se quer misericórdia. E se depois pecasse mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim, para isto, para que o atraias ao Senhor; e que sempre tenhas misericórdia de tais [pessoas]." [12]
Construir caminho de reflexão e ação no que tange a construção da paz e não violência não era tarefa fácil e nem simples no tempo de Frei Francisco e continua não sendo em nosso tempo. Na contemporaneidade, observamos o aferramento de ideologias e conflitos políticos, múltiplas demonstrações de violência, crescimento da proliferação de notícias falsas e negacionismos. Sobre o enfrentamento desses desafios sempre crescentes, Papa Francisco dedicou muitos pontos de sua reflexão na já citada Fratelli Tutti, traremos alguns deles para a nossa reflexão.
Papa Francisco, afirma que “pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração (n. 10), mas que a história dá sinais de regressão:
"Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. Isto lembra-nos que 'cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos'." [13]
Numa atmosfera de conflito e medo, “o nosso mundo avança numa dicotomia sem sentido, pretendendo 'garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança'” (n. 26) e “esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos.” (n. 30). Exclama o pontífice, “como precisa a nossa família humana de aprender a viver conjuntamente em harmonia e paz, sem necessidade de sermos todos iguais!” (n. 100). [14]
A realidade presente fica mais complexa, de acordo com Francisco de Roma, pela “má noção da política (...) a isto vêm juntar-se as estratégias que visam enfraquecê-la, substituí-la pela economia ou dominá-la por alguma ideologia.” (n. 176). Para ele, neste contexto, construir paz social é uma tarefa laboriosa e artesanal:
"Seria mais fácil conter as liberdades e as diferenças com um pouco de astúcia e algumas compensações; mas esta paz seria superficial e frágil, não o fruto duma cultura do encontro que a sustente. Integrar as realidades diferentes é muito mais difícil e lento, embora seja a garantia duma paz real e sólida. Isto não se consegue agrupando só os puros, porque 'até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não se deve perder'. Nem consiste numa paz que surja acalmando as reivindicações sociais ou impedindo-as de criar confusão, pois não é 'um consenso de escritório nem uma paz efêmera para uma feliz minoria'. O que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo! Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro!" [15]
As religiões precisam forjar entre si um caminho de paz (n. 281) e isso faz parte de sua vocação original, religar o ser humano com seu criador [16], e devem esforçar-se por vencer o caminho do fundamentalismo religioso. Em suas palavras,
“às vezes, a violência fundamentalista desencadeia-se em alguns grupos de qualquer religião pela imprudência dos seus líderes. Mas 'o mandamento da paz está inscrito nas profundezas das tradições religiosas que nós representamos. (...) Nós, líderes religiosos, somos chamados a ser verdadeiros “dialogantes”, a agir na construção da paz, e não como intermediários, mas como mediadores autênticos. Os intermediários procuram contentar todas as partes, com a finalidade de obter um lucro para si mesmos. O mediador, ao contrário, é aquele que nada reserva para si próprio, mas que se dedica generosamente, até se consumir, consciente de que o único lucro é a paz. Cada um de nós é chamado a ser um artífice da paz, unindo e não dividindo, extinguindo o ódio em vez de o conservar, abrindo caminhos de diálogo em vez de erguer novos muros'”. [17]
Por fim, Papa Francisco nos convida a sermos arquitetos e artesãos da paz e desenvolver percursos concretos de paz em nossa vida cotidiana. Não devemos esquecer que “os processos efetivos duma paz duradoura são, antes de mais nada, transformações artesanais realizadas pelos povos, onde cada pessoa pode ser um fermento eficaz com o seu estilo de vida diária. As grandes transformações não são construídas à escrivaninha ou no escritório. Por isso, 'cada qual desempenha um papel fundamental, num único projeto criador, para escrever uma nova página da história, uma página cheia de esperança, cheia de paz, cheia de reconciliação'. Existe uma 'arquitetura' da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade, cada uma dentro de sua competência, mas há também um 'artesanato' da paz que nos envolve a todos.” [18]
[1] Cf. FRUGONI, Chiara. Francisco de Assis, a vida de um homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[2] Primeira Vida Tomás de Celano, 23.
[3] Segunda Vida Tomás de Celano, 29.41.
[4] BARROS, José D'Assunção. Considerações sobre a história do franciscanismo na Idade Média. Estudos de Religião, v. 25, n. 40, 110-126, jan./jun. 2011 • ISSN Impresso: 0103-801X – Eletrônico: 2176-1078. Disponível aqui.
[5] Cf. Fratelli Tutti, n. 2.
[6] Fratelli Tutti, n. 4.
[7] As citações das Fontes Franciscanas estão conforme a edição bilíngue disponível aqui.
[8] Testamentum, 23.
[9] Cf. SILVA, Andréa Cristina Lopes Frazão da. Reflexões sobre a produção literária franciscana no século XIII. Revista do Centro de Estudos Portugueses, [S.l.], v. 29, n. 42, p. 107-137, dez. 2009. ISSN 2359-0076. Disponível aqui.
[10] Cf. OLIVEIRA, A. C. . Diálogo, paz e não violência: ressonâncias do encontro de Frei Francisco de Assis com o sultão Malek-al-Kamil em 1219. Horizonte Teológico, v. 1, p. 104-123, 2018, e OLIVEIRA, A. C. . O encontro de Frei Francisco com o sultão Malek al-Kamil, das representações iconográficas à ética da hospitalidade. Grande Sinal (Petrópolis), v. 73, p. 181-198, 2019.
[11] “A mensagem é clara. O lobo não é naturalmente mau. Estava com fome e as pessoas não haviam pensado nisso. Compreender o outro que é diferente, que tem suas razões que talvez minha razão ignore.
“Francisco não é ingênuo, explica Bernard Forthomme, “É a fome que faz com que o lobo saia da mata e o torna feroz e criminoso. Aliança alguma pode ser concluída sem que a questão de fome e de injustiça tenha sido resolvida”.
O que empolgante nesta história é aquilo que passa depois da conclusão do “tratado de paz”. O lobo, designado de “irmão” não é mais reprovado, mas abertamente adotado pela população de Gubbio, não, porém, assimilado. Nada perdeu de seu aspecto de lobo – mas é acolhido e alimentado. Torna-se mesmo “mascote” da cidade onde vive ainda por dois anos antes de morrer para desolação de todos. A diferença não é mais um problema. Chegou mesmo a tornar-se motivo de júbilo, objeto de atenção afetuosa e alegre”. Cf. SAUQUET, Michel. Le passe-murailles. Francois d'Assise: Un héritage pour penser l'interculturel au XXIe siècle. Paris: Editions Franciscaines, 2015.
[12] Carta a um Ministro, 9-11.
[13] Fratelli Tutti, n. 11.
[14] “É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só 'a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira1”. (Fratelli Tutti, n. 127).
[15] Fratelli Tutti, n. 217.
[16] “Como crentes, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos, não podem haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade. Estamos convencidos de que 1só com esta consciência de filhos que não são órfãos, podemos viver em paz entre nós'”. (Fratelli Tutti, n. 272).
[17] Fratelli Tutti, n. 217.
[18] Fratelli Tutti, n. 231.