O desafio da sobriedade para responder à emergência climática

Fonte: Wikimedia Commons

02 Junho 2022

 

“Sinônimo, para alguns, de uma poderosa e instigante alavanca para inventar um modelo mais respeitoso com o meio ambiente, a sobriedade é um repelente absoluto para outros, que temem o fim do progresso e do crescimento. Desejada ou temida, ela questiona, em todo caso, os próprios fundamentos e a organização da nossa sociedade”. A reflexão é de Béatrice Madeline, Perrine Mouterde e Adrien Pécout, em artigo publicado por Le Monde, 30-05-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

Em 10 de fevereiro passado, o Chefe de Estado ainda não era oficialmente candidato à sua própria sucessão. Dois meses antes do primeiro turno das eleições presidenciais, ele veio apresentar, em Belfort, sua visão do futuro energético da França. Ao longo deste discurso, fez grandes anúncios sobre a reativação do setor nuclear ou sobre os objetivos de desenvolvimento das energias renováveis. Mas o primeiríssimo projeto não diz respeito nem ao átomo nem às turbinas eólicas: trata-se, em primeiro lugar, declara, de “ganhar em sobriedade”, para “reduzir nosso consumo de energia em 40%” até 2050. A palavra foi dita: “sobriedade”. Agora será apresentada como um dos pilares do programa energético do presidente.

 

Ao retomar o termo por conta própria, Emmanuel Macron envia um sinal ao eleitorado de esquerda e aos ambientalistas. Mas, de forma mais ampla, esse empréstimo revela o modo como essa velha noção acabou se impondo no debate público. Da “sobriedade feliz” de Pierre Rabhi (1938-2021) à primeira encíclica papal sobre a ecologia, em 2015, dos trabalhos da Agência Internacional de Energia (AIE) aos dos climatologistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a sobriedade parece cada vez mais inevitável, ao mesmo tempo que permanece fator de divisões. Sinônimo, para alguns, de uma poderosa e instigante alavanca para inventar um modelo mais respeitoso com o meio ambiente, é um repelente absoluto para outros, que temem o fim do progresso e do crescimento. Desejada ou temida, ela questiona, em todo caso, os próprios fundamentos e a organização da nossa sociedade.

 

Este questionamento não é novo. Desde o século XIX, a revolução industrial e a ascensão do capitalismo deram uma dimensão política ao conceito. “Na década de 1970, após a publicação do relatório do Clube de Roma [associação internacional de reflexão sobre as problemáticas do desenvolvimento sustentável], surgiu a ideia de que nosso crescimento exponencial e nosso desejo insaciável de riqueza poderiam levar à nossa perda”, lembra o círculo de reflexão La Fabrique Écologique. Difundida na França pelo pensador André Gorz (1923-2007), essa ideia encontra-se primeiramente na noção de “decrescimento”, ao mesmo tempo a favor da ecologia e contra o capitalismo. Mas, aos poucos, o termo “sobriedade”, com uma conotação menos política, foi ganhando espaço.

 

Embora não haja uma definição precisa e compartilhada, a sobriedade implica uma moderação na produção e no consumo de bens e serviços e o abandono de práticas ou usos excessivos ou supérfluos. “Esse termo pode prestar-se a confusões, observa Eloi Laurent, pesquisador do Observatório Francês de Conjunturas Econômicas (OFCE). Sugere que nós vivemos bem e que agora devemos viver de maneira reduzida. Na verdade, trata-se do contrário: devemos aprender a viver melhor, não pior. Aprender a viver com a biosfera, não contra ela”.

 

A necessidade de agir em todas as frentes simultaneamente

 

Em França, a Associação négaWatt foi um dos primeiros grupos a assumir este conceito, no início dos anos 2000. A política energética centrava-se então essencialmente na busca de ganhos de eficiência, ou seja, no progresso técnico ou tecnológico que permitisse atingir o mesmo serviço prestado com menos consumo de energia. Mas estes ganhos de eficiência não são suficientes para reduzir amplamente as emissões de gases de efeito estufa que aquecem o planeta. “Nós nos damos conta de que esses ganhos de eficiência foram parcialmente anulados pela falta de sobriedade, explica Stéphane Chatelin, diretor da Associação négaWatt. Fabricamos motores mais potentes, mas, ao mesmo tempo, os carros estão ficando cada vez mais pesados; o consumo de energia por quilo de roupa lavada está diminuindo, mas as máquinas de lavar estão funcionando cada vez mais vazias…”. Durante anos, a defesa da associação encontrou pouco eco. Tanto que seus membros estavam considerando a possibilidade de abandonar o próprio termo “sobriedade”, considerado muito austero...

 

Uma hipótese hoje abandonada. Nos últimos anos, a emergência climática ajudou a recolocar o tema no centro do debate. Quanto mais o tempo passa, mais a equação para atingir o objetivo da neutralidade carbônica em 2050 parece complicada de resolver. E quanto mais se torna inevitável a necessidade de agir em todas as frentes simultaneamente e, portanto, também na demanda e nos usos, mais trabalhos científicos afirmam que é tarde demais para esperar limitar as mudanças climáticas confiando apenas na eficiência tecnológica ou na inovação, sem alterar nada nas práticas e nos estilos de vida individuais e coletivos. Ainda mais quando se leva em conta todas as crises – a extinção da biodiversidade, o empobrecimento do solo, o esgotamento dos recursos minerais…

 

Na esteira dos cientistas, o setor da energia passou a considerar a alavanca da sobriedade. Na França, tem sido central nos trabalhos publicados pela Associação négaWatt, mas também pelo gestor da rede de transporte de eletricidade RTE ou pela Agência para o Ambiente e Gestão da Energia (Ademe). Caminhar ou andar de bicicleta em vez de andar de carro, teletrabalhar parte da semana, reduzir o número de viagens de avião... Em maio de 2021, a Agência Internacional de Energia declarou, pela primeira vez, que as mudanças de comportamentos ligadas à energia são “uma parte importante” da caixa de ferramentas para atingir “emissões líquidas zero” até 2050.

 

Uma grande mudança para essa instituição, que tem abrangência global, originalmente organizada para proteger os interesses dos países consumidores de petróleo. Em abril, foi a vez do IPCC dedicar – também pela primeira vez – um capítulo do seu sexto relatório de avaliação às mudanças dos estilos de vida e ao uso de energia. Desde a eclosão da guerra na Ucrânia em fevereiro, os pedidos de ação sobre o consumo (pela diminuição das temperaturas de aquecimento, uma redução da velocidade do tráfego nas estradas, etc.) também se multiplicaram na tentativa de reduzir a dependência europeia dos hidrocarbonetos russos.

 

“Tenho a impressão de que todo o meu modo de vida está desmoronando”

 

Para as pessoas encarregadas de traçar cenários ou criar modelos, integrar a dimensão da sobriedade requer primeiramente a objetivação dos comportamentos e das dinâmicas sociais. Quilômetros percorridos, número de habitantes por metro quadrado, tamanho dos veículos, número de pessoas por domicílio, consumo de carne... Com base em quatro setores (residencial, terciário, industrial e transportes), a RTE estima, por exemplo, em seu estudo “Futuros Energéticos 2050”, que o país poderia evitar o consumo de 90 terawatts-hora (TWh) de eletricidade até 2050, sobre um consumo de referência de 645 TWh.

 

As consultas realizadas por este organismo independente antes da realização destes trabalhos ilustraram, acima de tudo, até que ponto o conceito está longe de ser consensual. Embora seja óbvio para alguns, outros rejeitam o próprio princípio de uma forma de austeridade. Por ocasião da publicação do relatório, o deputado Jérôme Nury (Les Républicains) perguntou-se diante da Comissão dos Assuntos Econômicos da Assembleia Nacional sobre a prevista redução do consumo de energia. “É o decrescimento? Isso não é um incentivo para limitar nossos deslocamentos individuais? Eu, que sou uma pessoa profundamente rural, tenho a impressão de que todo o meu modo de vida está desmoronando com o este relatório”, declarou ao presidente do conselho executivo da RTE, Xavier Piechaczyk.

 

“No cenário négaWatt prevê-se a interrupção da construção de casas individuais até 2050, também protestou o candidato comunista Fabien Roussel, durante a campanha presidencial. Isso é a sobriedade energética! Sou a favor do isolamento das habitações, mas nega-se às pessoas do campo o direito de construir a sua casa!”. Em seus trabalhos publicados em 2018, a associação evocou a redução de 175 mil casas construídas em 2010 para apenas 19 mil em 2050.

 

A questão é fundamental: nossos modos de vida devem “colapsar”? Em Belfort, Emmanuel Macron afirma o contrário. Os ganhos em sobriedade podem ser obtidos sem qualquer “privação”, “restrição” ou “decrescimento”, mas graças à “inovação” ou à “transformação dos processos industriais”. Algo como “mudar de modelo” enquanto “se produz mais”. Para o Chefe de Estado, sobriedade rima com eficiência. Muitos adeptos do conceito apelam, pelo contrário, a grandes e por vezes difíceis transformações, que envolvem verdadeiras mudanças de paradigma: trata-se de repensar em profundidade as formas de consumir, alimentar-se, trabalhar, habitar ou deslocar-se.

 

“A sobriedade requer privações”

 

Em alguns setores, tornar-se mais sóbrio pode ser relativamente indolor: nos escritórios, por exemplo, desligar as luzes à noite ou quando estão vazios pode economizar até 30% de eletricidade, de acordo com a Associação négaWatt. Reduzir pela metade o desperdício de alimentos poderia reduzir as emissões de gases de efeito estufa em toda a cadeia em cerca de 5%. No início de maio, um estudo publicado na revista científica Nature afirmou que a redução do nosso consumo de carne bovina em apenas 20% poderia reduzir pela metade as emissões do sistema alimentar global, bem como o desmatamento.

 

Mas em outras áreas serão necessárias mudanças mais radicais, dizem alguns observadores. Abandonar (para quem tem acesso a ele) o modelo do pavilhão individual, renunciar a viagens aéreas para estadias curtas em uma capital europeia, ao excesso de equipamentos eletrônicos… “A sobriedade requer privação, reconhece Stéphane Chatelin. Para descarbonizar a aviação, por exemplo, não há outro jeito senão voar menos”.

 

“A sobriedade envolve necessariamente abrir mão de certas liberdades, acrescenta Bruno Villalba, professor de ciências políticas da AgroParisTech. Abandonar a ficção segundo a qual deveria haver sempre mais escolhas para todos, a nível político, mas também a nível material, seria abrir mão de duzentos e cinquenta anos de um imaginário que nos promete acesso ao bem-estar material como condição sine qua non de felicidade”. Hoje, todos têm o direito de acessar o que é considerado o padrão normal do conforto, mas isso, em parte ditado pela onipresença das mensagens publicitárias, não parou de aumentar. Enquanto uma casa, no final do século XIX, continha algumas centenas de objetos, hoje uma casa francesa teria perto de 100 mil objetos. E é esse acúmulo que gera uma sensação de bem-estar, que é, aliás, “real e efetiva”, lembra Bruno Villalba.

 

O decrescimento não é algo inevitável

 

Devemos ter medo também de uma queda do Produto Interno Bruto (PIB), que quantifica a riqueza produzida no país e, portanto, a renda das famílias? Para os economistas, ainda é difícil avaliar as consequências de uma possível redução em determinados consumos. “Limitar o consumo custa um pouco de crescimento no curto prazo, diz Christian de Perthuis, professor da Universidade Paris-Dauphine-PSL. Mas, no médio prazo, o impacto macroeconômico da sobriedade dependerá da capacidade de adaptação pelo lado da oferta”. Em outras palavras, o decrescimento não é algo inevitável, mas questão de transformar profundamente o sistema produtivo e a distribuição dos empregos.

 

“O verdadeiro debate é sobre o conteúdo do PIB, não sobre o seu nível, acrescenta Patrick Jolivet, diretor de estudos socioeconômicos da Ademe. Você vai ter substituições dentro do consumo em vez de uma diminuição geral”. Nenhum dos quatro cenários construídos pela Ademe para alcançar a neutralidade de carvão, incluindo o mais sóbrio, resulta em um recuo do crescimento. Três razões explicam isso: as energias fósseis importadas são substituídas por energias produzidas localmente; o declínio na produção e no consumo de bens manufaturados importados massivamente é compensado pela compra de bens e serviços locais; e, finalmente, os investimentos feitos para melhorar a eficiência energética são rentáveis e bons para o crescimento.

 

Para tentar convencer os cidadãos a abrir mão de alguns direitos e liberdades em nome da proteção do ambiente, todos os atores insistem, em primeiro lugar, em um ponto: são os mais ricos que terão que apertar o cinto primeiro. De acordo com o Laboratório de Desigualdades Globais, os 10% mais ricos dos franceses emitiram 24,7 toneladas de dióxido de carbono per capita em 2019, cerca de cinco vezes mais do que a metade mais pobre da população. “A questão da justiça social deve estar no centro dos debates”, insiste a sindicalista Marie-Claire Cailletaud, representante da CGT no Conselho Econômico, Social e Ambiental.

 

“Não há política de renovação suficiente”

 

“Quando se trata da precariedade energética, tem havido uma tendência de se concentrar nos gestos ecológicos, dizendo às pessoas: ‘Não cubra seus radiadores, coloque uma tampa em sua panela, coloque um suéter, dois suéteres, três suéteres...’. São conselhos úteis e importantes, mas que se tornam indecentes quando, ao mesmo tempo, não há uma política de renovação suficiente”, destaca também Manuel Domergue, diretor de estudos da Fundação Abbé Pierre.

 

Outros apontam que se devemos estabelecer um “teto” para os nossos consumos e estilos de vida, para limitá-los àqueles que são compatíveis com os limites planetários, devemos também introduzir um “piso”, que corresponda ao das condições de vida dignas para todos.

 

Em seguida, os pesquisadores ressaltam que essa questão deve ser pensada, organizada e debatida em escala coletiva e não fazer pesar todos os esforços sobre os indivíduos. A socióloga Sophie Dubuisson-Quellier, diretora de pesquisa do CNRS, alerta contra o risco de substituir o “solucionismo tecnológico” por um “solucionismo comportamental”. “Não é possível pedir sobriedade de comportamento em uma sociedade organizada em torno da abundância e que valoriza, econômica e socialmente, a acumulação, insiste. Apelar para estilos de vida sóbrios requer formas de organização política, social e econômica que valorizem a sobriedade”.

 

“Ou utopia ou vigilância cerrada”

 

Em vez de penalizar os proprietários de veículos poluentes, devemos desenvolver massivamente meios de transporte coletivo e ciclovias para que os cidadãos precisem menos de seus carros. Repensar o planejamento das cidades e territórios para aproximar as residências dos locais de trabalho e comércio. Incentivar o consumo de produtos menos poluentes, por exemplo, introduzindo sistemas bonus-malus ou de impostos específicos. Outra hipótese, mais sujeita a controvérsias: a da coerção, proibindo ou racionalizando o consumo deste ou daquele produto. “Quanto mais demorar a redução voluntária do consumo, maior o risco de ocorrer sob coação”, estima Michel Bourban, pesquisador em ciências políticas da universidade britânica de Warwick.

 

Como essas coações poderiam ser consideradas aceitáveis? Em que quadro democrático? A Companhia Francesa de Energia Nuclear (SFEN), por exemplo, questionou-se após a publicação dos últimos trabalhos da Associação négaWatt. “Como serão monitorados (e punidos) os estados de intoxicação energética dos franceses? Ou o cenário é pura utopia, especulando sobre a implementação voluntária espontânea, ou trata-se de uma vigilância cerrada”, escreveu ela no outono de 2021.

 

“A Lei Evin [adotada em 1991 para combater o tabagismo e o alcoolismo], é o Parlamento, portanto, o povo, que decide limitar a liberdade individual de intoxicar a si e aos outros, lembra Bruno Villalba. A carteira de motorista também é uma coação coletiva. Se as restrições têm um significado e um propósito, são justas e controladas pelas autoridades, isso funciona”. Já estão surgindo algumas práticas. O uso de roupas ou objetos de segunda mão é valorizado e aclamado por um número cada vez maior de franceses, ainda que possa estimular, paradoxalmente, a comprar mais. O consumo de carne está em queda, a prática de andar de bicicleta está em alta. Por toda parte nascem movimentos de luta contra a instalação de novos armazéns da Amazon, os boicotes a campanhas consumistas como a “Black Friday”, as experiências com eco-aldeias, as moradias compartilhadas, os centros de reciclagem estão se multiplicando...

 

“Ter ambições”

 

Para os adeptos da sobriedade, o principal desafio continua a ser o de conseguir fazer deste conceito um horizonte desejável para o maior número de pessoas, e enfatizar os benefícios que podem estar associados a este estilo de vida: melhoria da saúde, do ambiente de vida, redução da poluição... O que a Ademe está tentando fazer quando adiciona “relatos” aos seus quatro cenários para alcançar a neutralidade de carbono até 2050 para descrever o impacto das nossas escolhas na habitação, na mobilidade, na indústria ou na governança. É também o que tenta fazer o círculo de reflexão The Shift Project no seu “Plano para a transformação da economia”: “Nossa aposta consiste em descrever um futuro possível, e as formas e meios para concretizá-lo, permitindo assinalar esta caixa de ressonância para falar ao nosso afeto: dar ambição”, resume seu presidente, Jean-Marc Jancovici.

 

Se a sobriedade apareceu em alguns programas eleitorais ou nos discursos do Chefe de Estado ou de ministros, os líderes políticos ainda estão longe de ter compreendido essa noção. Ataque ao poder de compra, ao modelo econômico, a determinadas liberdades individuais... No curto prazo, eles parecem não ter nada a ganhar com isso. No longo prazo, se quiser enfrentar os desafios energéticos e ambientais, a sociedade não pode prescindir de um debate de fundo sobre o assunto.

 

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