"Não raramente, cristãos, católicos, pastores e até teólogos se sentiram tentados a identificar-se simplesmente com o segundo aspecto da alternativa: e colocaram decisivamente a fraternidade como resultado de uma autoridade e de uma alteridade. Fratelli Tutti não segue simplesmente esse caminho. Em vez disso, busca uma mediação sapiencial entre esses opostos. Porque bem sabe que tanto o caminho da evidência quanto o caminho da autoridade conhecem facilmente o fracasso."
Publicamos a seguir o texto da conferência 'Fraternidade e fratricídio no tempo presente' a ser proferida por Andrea Grillo, hoje, 11-05-2022, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, às 9h30min.
Andrea Grillo, filósofo e teólogo italiano, especialista em liturgia e pastoral é doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.
Prof. Dr. Andrea Grillo (Foto: Foto: Susana Rocca | IHU)
Reproduzimos a seguir a íntegra da
A conferência será transmitida on-line na página do IHU e no canal do Youtube.
A atividade integra o Ciclo de Estudos: O Decálogo sobre o Fim do Mundo.
A tradução é de Luisa Rabolini.
“Sou eu o responsável pelo meu irmão?” Gn 4,9
“Não se pode confiar no Estado; não se pode confiar nos amigos; não se pode confiar na bondade da humanidade, que também pode estar presente no conjunto, mas é entregue de maneira bastante irregular. Os casais se divorciam, os amigos se perdem, os pais morrem uma geração antes de nós. Apenas os irmãos permanecem ligados por toda a vida: eles são o único vínculo vagamente seguro que existe." (P. Collins, Né giusto né sbagliato. Avventure nell’autismo, Milão, Adelphi, 2005, 243)
As palavras que lemos em “Fratelli tutti” (= FT) ressoam, há mais de dois meses, singularmente proféticas: o princípio da fraternidade, colocado entre os três princípios que fundam a civilização liberal moderno-tardia, é o menos garantido e ao mesmo tempo o mais decisivo. A liberdade de autodeterminação de cada sujeito e de cada povo, e a igualdade entre os sujeitos e os povos são princípios gerais necessários, que encontram sua normativa de referência em nível nacional e internacional. Por mais frágeis ou ineficazes que sejam, existem leis que supervisionam a liberdade e a igualdade. Não é o caso da fraternidade. Ser irmãos é, por um lado, um mero dado originário e, por outro, é um grande dom. Mas a tarefa da fraternidade foge do alcance das leis e é deixada de lado. Vamos tentar entender melhor esse fenômeno decisivo.
A fraternidade é elaborada em um complexo equilíbrio de liberdade e de igualdade, mas que nunca é suficiente para sustentá-la. Porque a lógica da fraternidade não é nem a da liberdade nem a da igualdade. É mais uma lógica da "diferença em comum" que implica uma delimitação tanto da liberdade quanto da igualdade. Para ser irmãos e irmãs, é preciso um certo temperamento tanto da liberdade como da igualdade. Como irmãos e irmãs, não somos completamente livres nem completamente iguais.
Essa ideia foi expressa pelo Papa Francisco já três anos antes da Encíclica FT, em um discurso de 2017:
“A palavra-chave que hoje, mais do que qualquer outra, exprime a exigência de superar tal dicotomia (entre eficiência e solidariedade) é fraternidade, termo evangélico, retomado pelo lema da Revolução francesa, mas que em seguida a ordem pós-revolucionária abandonou — pelos conhecidos motivos — até ao seu cancelamento do léxico da política e da economia. Foi o testemunho evangélico de São Francisco, com a sua escola de pensamento, que atribuiu a este termo o significado que sucessivamente se conservou ao longo dos séculos, ou seja, de constituir o complemento e ao mesmo tempo a exaltação do princípio de solidariedade. Com efeito, enquanto a solidariedade é o princípio de planificação social que permite aos desiguais tornar-se iguais, a fraternidade é o princípio que permite aos iguais ser pessoas diferentes. A fraternidade consente que pessoas que são iguais na sua essência, dignidade, liberdade e direitos fundamentais, participem diversamente no bem comum, em conformidade com a sua capacidade, o seu plano de vida, a sua vocação, o seu trabalho ou o seu carisma de serviço.” (Papa Francisco, Mensagem à Academia de Ciências Sociais de 24.04.2017)
Hoje encontramos um sério desafio em nosso caminho. A delicadeza da fraternidade, tão diferente da liberdade e da igualdade, repousa precisamente em sua "aspiração universal" - como liberdade e igualdade -, mas também repousa em suas raízes contemporâneas em uma história particular. Uma raiz particular corresponde ao ideal universal.
A fraternidade começa sempre num contexto familiar, tribal, local, nacional, numa língua específica, numa tradição de usos e costumes. Somos irmãos em relação a um ato pontual de geração e a um ato temporal de cuidado. Viemos formalmente de um homem e uma mulher que, no entanto, nos tornam irmãos porque nos criam juntos. Os irmãos e irmãs são certamente "filhos diferentes", mas dentro de uma dada uniformidade, um cuidado comum. Por isso a fraternidade é ao mesmo tempo experiência de diferença e de identidade.
No entanto, há também um viés violento da fraternidade, que lhe é tanto interno como externo. É interno ao "vínculo paterno e materno" (em relação ao qual se cria conflito entre irmãos diferentes) e é externo ao vínculo, em relação àqueles que são "não-irmãos" de um ponto de vista particular. Irmãos e irmãs se sentem ameaçados tanto pela "origem" (que poderia não os reconhecer) quanto pelos "outros" (que podem agredi-los). Os irmãos e as irmãs aparecem assim expostos a uma dupla "frente de confronto": entre si, no conflito pela sucessão da identidade; e com os outros, pela defesa da identidade das negações. Em alguns casos pode acontecer que os dois registros se sobreponham e que a luta interna e a luta externa se acrescentem uma à outra. Nesses casos, quando o outro de si é "parte de si", (ou seja, quando o "não-irmão" é "irmão", o inimigo é o mais caro amigo) a fúria da violência e a impossibilidade de evitá-la atingem níveis quase indomáveis, porque se sentem ameaçadas ao mesmo tempo tanto a identidade como a segurança.
O anúncio da "fraternidade em Cristo" é um exercício da promessa de reconhecimento de si e de misericórdia para com o outro. O que é a fé cristã senão a superação do medo da morte: confiança no Pai/Mãe e comunhão com o próximo. O que é a salvação senão a impossibilidade da guerra? Todos os irmãos se sentem reconhecidos e se veem em comunhão com todos. E, no entanto, na raiz da comunidade, tanto na narrativa histórica quanto na narrativa bíblica, se devem reconhecer “irmãos em guerra”. Caim e Abel no Gênesis, Rômulo e Remo em Roma, Édipo e seus filhos/irmãos em Tebas.
No embate de uma guerra, como a experimentamos hoje, a fraternidade não ajuda em nada a ganhar um espaço de mediação. Aliás, justamente entre "povos irmãos" a disputa pode ser mais dura, mais profunda, mais trágica. Onde a guerra transborda para "guerra civil", para "acerto de contas", para "rixa familiar", onde se está mais próximo da "fraternidade natural", da fraternidade de sangue, da fraternidade universal, a fraternidade no Espírito pode ser vivida como um "flatus vocis", uma ilusão, uma ideologia. Até as igrejas podem chegar a essa blasfêmia: só veem o "próprio povo" e até crucificam as vítimas. Este é o drama da guerra: que leva a duvidar dos irmãos. E a admiração pelas formas "naturais" de fraternidade se inverte, imediatamente, em preocupação pela absolutização do outro como inimigo.
Como ficamos surpresos ao ver jovens e idosos enchendo sacos de areia, preparando coquetéis molotov, segurando fuzis, cavando trincheiras. O imaginário mais sério da "defesa da pátria" foi ativado com um poder que talvez pensássemos relegada ao passado, como um capítulo ultrapassado da história. No entanto, devemos também nos perguntar se esse "resistir" e "não ceder" é realmente o que responde plenamente à necessidade primária desses homens e mulheres. Se sua fraternidade se possa realmente cumprir na luta contra os inimigos invasores. Ninguém pode negar-lhes o direito de resistir. Mas qual é o preço dessa resistência? É como se estivéssemos voltando ao sentido de fraternidade de 230 anos atrás: na época da Revolução Francesa, os irmãos eram apenas os franceses!
Se os irmãos são apenas os italianos para os italianos, os russos para os russos, os ucranianos para os ucranianos e os alemães para os alemães, isso poderia ser não apenas uma coisa boa, mas também um problema insuperável. E se, como acontece neste caso, a oposição entre russos e ucranianos deriva de uma "origem comum" de natureza política, religiosa e cultural, tanto maior parece a violência potencial. Em casos como este, vê-se no inimigo também, e talvez mais ainda, o traidor da própria identidade. Pelo fato de existir, mina a própria identidade.
E por isso a rígida alternativa entre vidas consideradas incompatíveis torna-se uma terrível tentação, quase uma vocação. O ato da guerra, o início das hostilidades, começa a persuadir a todos de que é assim: e não há mais alternativa. Entra-se em uma cadeia de atos e reações que não tem mais fim. Um começa sem querer terminar, e outro termina sem ter desejado começar. Ou a sua vida ou a minha. E é aqui que, na afirmação da fraternidade particular, a fraternidade pode perder toda misericórdia e tornar-se ódio, perseguição, negação do outro, abuso, insulto, até o genocídio.
O temperamento desta "fraternidade particular" deveria ser a função principal sobretudo das instituições religiosas. Este é o plano em que seria legítimo esperar uma palavra clara de todas as Igrejas, na indicação da "fraternidade em Cristo" como recuperação da dignidade de cada rosto, mesmo do mais hostil, recuperado para uma fraternidade que não é de sangue, de origem ou de natureza, mas de graça, de espírito e da vocação. Esta fraternidade não parece nem um dado nem uma evidência racional ou ideal, mas um mistério de graça, a ser preservado.
A palavra que está no cerne de Fratelli Tutti move-se nessa direção e busca uma mediação refinada entre esses dois polos opostos: por um lado, a ideia de que a fraternidade consiste na "evidência do humano universal" e, pelo outro, a convicção de que a fraternidade seja garantida apenas pela "autoridade de uma tradição específica". Não raramente, cristãos, católicos, pastores e até teólogos se sentiram tentados a identificar-se simplesmente com o segundo aspecto da alternativa: e colocaram decisivamente a fraternidade como resultado de uma autoridade e de uma alteridade.
Fratelli Tutti não segue simplesmente esse caminho. Em vez disso, busca uma mediação sapiencial entre esses opostos. Porque bem sabe que tanto o caminho da evidência quanto o caminho da autoridade conhecem facilmente o fracasso.
Como disse, a fraternidade se manifesta como desastrosa tanto na narrativa bíblica quanto no mito civil: Caim e Abel, de um lado, e Rômulo e Remo, do outro, representam uma tremenda advertência: as formas de evidência "genética", "tradicional", "social" da fraternidade não são realmente consistentes. Aliás, ao se colocarem como "parciais", os irmãos se tornam princípio de guerra e não de paz. Sem vocação - seja religiosa ou civil, inspirada ou pensada - a fraternidade pode tornar-se um desvalor: não só as mortes entre irmãos, mas também os excessos de favores para com os irmãos sabem violar toda comunhão: aquela familiar como aquela social.
No entanto, falar de "vocação para a fraternidade" significa superar a suposta evidência e confiá-la a autoridades como a palavra, a lei, a família, a geração, a educação. E o ato de mediação entre determinação particular da fraternidade e experiência universal da fraternidade está no centro do trabalho cultural, da tarefa pastoral e também do trabalho teológico. Há aqui um desafio para o pensamento, a ser assumido integralmente.
Se fizermos da teologia simplesmente a inimiga das evidências modernas, desfiguramos irremediavelmente tanto a teologia quanto as evidências modernas. Aliás, justamente a teologia católica deveria ser a mais interessada em apreender as razões da universalidade do tema, para desenvolvê-lo com o mais diligente cuidado em todas as suas implicações. Como a única via sólida de evitar a guerra, desmontando os pretextos ofensivos juntamente com as ilusões defensivas. Os povos têm direito à autodeterminação e à igualdade de oportunidades, mas as vítimas, as crianças e os idosos têm direito à fraternidade. Vamos tentar pensar mais sobre esta última afirmação.
Na época moderno-tardia, inaugurada pelas três grandes revoluções (americana, francesa e industrial), muda o perfil da fraternidade. Ser irmãos torna-se, ao mesmo tempo, um conceito suspeito e particular do ancien régime e um conceito universal e novo, a realizar-se como um grande ideal.
Essa polarização da fraternidade é arrastada até nós: por um lado, de fato, é fruto de uma leitura masculina, patriarcal, familiar, autoritária e sentimental da sociedade e da história. A redução da fraternidade à "paternidade comum" (ou à pátria!) entrelaça-se fortemente com as formas clássicas de exercício da paternidade e da autoridade. Em certo sentido, a "verdadeira fraternidade" aparece como aquela garantida pelo sangue, pela origem, pelo poder, pela nação, pelo povo, pela terra.
Esta fraternidade não é universal, mas rigorosamente particular. Ao lado dela nasce um ideal de fraternidade desvinculado de qualquer autoridade, fundado na natureza ou na razão, em que a liberdade de cada homem e a igualdade entre todos os homens estabelece, idealmente, uma fraternidade universal pacífica, a ser instituída de acordo com uma nova "ordo". Esta irmandade parece, por um lado, uma simples consequência do princípio da liberdade e da igualdade. Mas, do outro lado, amadurece a consciência de se confrontar com uma noção que é de qualidade diferente dos dois primeiros termos do “lema revolucionário”, liberté, égalité, fraternité.
Precisamente essa suposta "imediatez" da fraternidade parece ser sua fraqueza. Porque, por um lado, se reduzida à consequência imediata da liberdade e da igualdade, a fraternidade tende a desaparecer: sua tematização é difícil no momento em que as questões de liberdade e igualdade se traduzem em um projeto normativo, algo que para a fraternidade não é possível. Por outro lado, e este é o segundo aspecto da fragilidade, no momento em que a fraternidade é reconhecida em sua alteridade - ao impor um "outro" como interlocutor - facilmente escorrega para o lado "oposto" no que diz respeito à liberdade e à igualdade. Assim, é percebida como uma lógica "regressiva", "fechada", "autoritária".
O ponto decisivo é a articulação diferente da própria noção. Se compararmos as três grandes ideias da revolução, observamos de fato que:
A novidade, inaugurada na idade moderno-tardia a partir do final do século XVIII, é constituída pelo sonho, pelo projeto e pelo pesadelo de poder reler cada uma dessas noções a partir da visão política da primeira, reduzindo a liberdade tanto a igualdade, quanto a fraternidade. Em outras palavras, uma leitura política da liberdade como "a posse originária de cada homem" se propõe e se impõe como capaz de reinterpretar radicalmente tanto a igualdade quanto a fraternidade. Consegue relativamente bem com a primeira das duas, mas inevitavelmente deixa a segunda à margem. O projeto liberal - com toda a sua seriedade - é grandioso em correlacionar profundamente liberdade e igualdade, mas faz a fraternidade deslizar para uma estranha forma de imediatismo, a meio caminho entre o sentimental desejado e o tradicional temido. Há uma "diferença" que a fraternidade traz à tona e que, ao contrário, a liberdade e a igualdade tendem a ocultar, remover ou mesmo demonizar. Ainda temos nos demorar um pouco sobre essa diferença.
Em si, o conceito de "fraternidade" apresenta-se, originalmente, com uma dupla conotação: uma experiência "natural" e "familiar" junto com uma experiência religiosa. A fraternidade indica, portanto, uma "condição natural e ao mesmo tempo criatural", isto é, uma certa "relação com o outro", um "ponto em comum de paternidade e maternidade". É ter “em comum” mãe e/ou pai. Uma "comunidade de origem" é o horizonte da fraternidade.
Há, portanto, três diferentes níveis de fraternidade a serem brevemente examinados: o natural, o religioso e o político, a saber:
a) fraternidade natural
b) fraternidade eclesial
c) fraternidade política
Com os primeiros irmãos do que tivemos notícia, as coisas foram desastrosas, em Jerusalém como em Roma, na Grécia como no Egito. A memória de uma fraternidade como fonte de conflito está escrita na história de Roma e também na Bíblia, desde as primeiras páginas. A esperança de que o "fato natural" de ter mãe e/ou pai em comum pudesse levar os sujeitos a uma relação positiva parece, no mito das origens, como uma ardente ilusão. Ter ações e bens em comuns - pais, casa, refeições, sono, jogos, tempos, espaços... - não dispensa do "trabalho sobre si mesmo". O fato de ser "irmãos" ou "irmãs" nunca é simplesmente um "dado natural", não é um imediatismo. Naturalizar a fraternidade/irmandade é um “truque” da consciência e da história, com o qual nos desresponsabilizamos pela relação. No entanto, é preciso dizer que o termo "irmão" - no uso de muitas línguas mediterrâneas antigas - tem uma origem já em si mais ampla do que o mero dado "genético": consanguinidade (mais ampla que a família nuclear, hoje clara no uso não europeu do termo), comunidade de fé (irmãos na fé) e relacionamento conjugal (a esposa como irmã e o marido como irmão).
Por outro lado, a sociedade, com sua experiência, tem percebido bem a fraternidade como “insidiosa” para o patrimônio familiar. Operou seleções cuidadosas entre irmãos - entre primogênitos e segundos, entre gêmeos para identificar o mais velho e, em qualquer caso, entre irmãos homens e irmãs mulheres - para garantir a integridade patrimonial. Assim, no "matrimônio", a lógica do "patrimônio" orientou a experiência fraterna de maneiras também profundamente orientadas e distorcidas.
O "fato de comunhão" que a fraternidade/sororidade representa de forma objetiva, não tem a força espontânea de se resguardar da soberba, da inveja e da ira como "pecados capitais", que dizem respeito não prioritariamente ao estranho, mas ao irmão. O provérbio "fratelli coltelli" (irmãos traiçoeiros) não é sem razão. E uma página inesquecível dessa distorção da filiação/irmandade são os capítulos IX e X de Os Noivos de Manzoni, onde a história de Gertrudes (Freira de Monza) é um drama de filiação, fraternidade e sororidade. O peso dessa tradição, transformada em romance na primeira metade do século XIX, pode emergir e tornar-se evidente: um ideal universal pode reler com lucidez a liberdade negada e a igualdade esmagada no exercício da paternidade/maternidade e na experiência da fraternidade/sororidade. A descoberta de que também a fraternidade/sororidade é uma vocação constitui um princípio de “re-compreensão” da sociedade. Inspiração cristã e católica e releitura da estrutura social e da cultura de homens e mulheres assumem uma forma singularmente evidente.
As crenças aspiram ao reconhecimento da originária fraternidade entre os homens. A fé em Deus que cria os homens é o horizonte do "chamado à fraternidade". Aqui, porém, a experiência natural e ambígua da fraternidade não é cancelada. Não só a tradição judaica do Primeiro Testamento - com Gênesis e Tobias como extremos - mas também o Novo Testamento nos oferece uma clara indicação para a fraternidade universal, que permanece sempre marcada pela fraternidade e sororidade parcial, criatural, natural. Alguns "modelos" de fraternidade atravessam os Evangelhos. Em particular, é Lucas (mas não apenas ele) que nos dá alguns "pares" de irmãos/irmãs particularmente eficazes:
- Marta e Maria
- irmão pródigo e irmão mais velho
- os irmãos do rico epulão
- os irmãos na fé (fariseu e publicano)
- os irmãos no destino (os dois ladrões)
O reconhecimento da “pobreza” e a falta de primazia de um sobre o outro são o horizonte que permite equilibrar o esquecimento da origem. Poderíamos dizer que o Evangelho, como plenitude da fraternidade "em Cristo", nos é apresentado como a reconciliação dos "esforços da fraternidade social, religiosa e familiar". Por outro lado, como confirmam as reflexões bíblicas mais acuradas, a exposição do "consanguíneo" à violência é radical. Abel e José soam etimologicamente como "intrusos", como "acrescentado" e como "vaidade": são as figuras exemplares dessa tendência originária.
Uma releitura bíblica da encíclica pode reservar grandes surpresas . A fraternidade bíblica, no primeiro livro do Gênesis, aparece de fato com características não naturais, desde os primeiros irmãos: Caim e Abel. Assim também no ciclo de Abraão (Isaque e Ismael), no ciclo de Isaque (Jacó e Esaú) e no ciclo de Jacó (José e seus irmãos). De Abel a José mostra-se uma tensão interna à fraternidade, que reflete as tensões da relação da qual os irmãos nascem. A fraternidade carrega em si a relação que a gera. E a relação dos irmãos mais novos com os irmãos mais velhos é de ser "acrescentados" e arriscar a irrelevância: assim no nome de Abel se pode ler a "inconsistência da vaidade", enquanto o próprio nome de José tem a mesma raiz de "acrescentar". Chegam "depois" e são percebidos como a mais, como diferentes.
A diversidade é precisamente a marca da fraternidade bíblica, que a narra como o surgimento de conflito, de concorrência, de aversão, de confronto. E é justamente aqui que cabe nos perguntar: como passar dessa fraternidade conflitiva e fechada para uma fraternidade que reconheça a diferença e a valorize como abertura? Nesse sentido, a reação de Adão e Caim à pergunta de Deus parece esclarecedora: depois do pecado do primeiro e do segundo, a pergunta de Deus, em sua simplicidade - "onde estás?" e "onde está seu irmão?" - destaca a fragilidade de uma resposta que é de fuga e de ocultação: apenas reconhecendo a relação com Deus é possível ser irmãos. A fraternidade naufraga se todo ‘eu’ não se reconhece como "diferente" de Deus. A diversidade do irmão só pode ser "guardada" se ele não se tornar como Deus. A fraternidade só pode florescer quando a relação heterônoma se torna mais importante que a posição autônoma: isso se reflete no final do livro do Gênesis, onde a relação fraterna entre José e seus irmãos não tem o resultado fratricida, mas o da reconciliação: José, ao contrário de Caim, diz: "Estaria eu no lugar de Deus?". Essa diferença de Deus permite ao homem manter a diferença fraterna como uma riqueza preciosa.
No entanto, a Escritura também nos indica o caminho pelo qual é possível honrar a "vocação à fraternidade": há não apenas a manifestação de uma dificuldade diante da condição fraterna, mas também a indicação dos caminhos para enfrentá-la e valorizá-la . Há três passagens preciosas às quais o texto bíblico se refere:
Exemplarmente o ato extremo de Caim é fruto de uma palavra impossível, enquanto a reconciliação entre José e seus irmãos ocorre na explícita verbalização do que aconteceu entre eles. Assim como a crise tinha nascido de uma comunicação impossível – que reduz o outro a caricatura com a qual não se deve falar –, assim a paz brita do reconhecimento do outro como interlocutor .
Uma imagem altamente eficaz, ligada a um rito da festa do Sucot (festa das cabanas) pode ser útil para concluir esta parte.
O Lulav, que é o rito central da festa, é um feixe de ramos formado por 4 plantas diferentes:
- a palmeira, sem perfume e com frutos saborosos;
- a mirta, com perfume e sem frutos;
- o salgueiro, sem perfume e sem frutos;
- a cidra, com perfume e frutos saborosos
Que se “conheça a torá" (perfume) e que seja "posta em prática" (frutos) não é condição de pertencimento à comunidade. A comunidade inclui radicalmente a todos, sem exceção.
Por isso, a responsabilidade para com o outro - o exercício da fraternidade - não é uma questão de "caridade", mas de justiça. À sua maneira Fratelli Tutti é uma encíclica que retoma esta grande tradição de responsabilidade pela inclusão social que se escreve na fraternidade entendida como vocação, que atravessa todas as identidades e todas as crenças.
Mas isso abre para a terceira dimensão da fraternidade.
A liberdade e a igualdade precisam da "fraternidade" para se equilibrar. Caso contrário, a partida do sujeito perde todo horizonte não tanto de “limite”, mas de “instituição/constituição” de si. E a partida da igualdade, vice-versa, não consegue valorizar as diferenças. Poderíamos dizer que a liberdade é pura diferença sem pontos em comum; enquanto a igualdade é puramente pontos em comum sem diferença. Enquanto a fraternidade trabalha, como dizia H. Bergson, como moderadora das duas "irmãs mais velhas" ou, talvez, de suas "filhas mais novas". Compreende as razões da diferença de homens/mulheres livres e aquela da comunhão de homens/mulheres iguais, colocando-as em relação e correlacionando uns aos outros.
Mas a fraternidade, ao contrário da liberdade e da igualdade, é difícil de "gerenciar de cima". Na verdade, só pode ser gerenciada "de baixo". E exige razões e motivações que estão, inevitavelmente, da esfera do "pré-político" e do "metapolítico". Uma política de fraternidade é diretamente impossível. Só pode ser realizada por uma gestão da liberdade e da igualdade inspirada pela fraternidade e orientada para a fraternidade.
Essas considerações conduzem a uma visão do homem que deve ser calibrada de acordo com a prevalência de cada uma das noções examinadas. Se é verdade que a irrupção da "tríade revolucionária" encontrou seu lugar específico na última parte do século XVIII, então podemos identificar uma série de "definições de homem", que já vimos acima, a serem colocadas agora numa espécie de sequência temporal:
A questão antiga, mas que hoje assume uma nova luz, é que a liberdade e a igualdade se deixam "gerir" pela lei, enquanto a "fraternidade" escapa ao alcance de toda lei: fica aquém e além da mesma. Este é precisamente o sentido da fraternidade: o de ser não tanto uma tarefa, mas uma vocação. Assume a "relação" como original, ao contrário da liberdade e da igualdade, que podem se iludir de trabalhar apenas com o individual. Por isso uma reflexão e uma prática de fraternidade obriga nosso tempo a pensar mais profundamente sobre a identidade livre do sujeito e a igualdade radical entre os sujeitos. Assim podemos descobrir os vestígios de uma relação fraterna (mas, portanto, também paterna/materna e filial) na nossa liberdade e na nossa igualdade.
O termo fraternidade introduz uma dinâmica “genealógica” no imediatismo suspeito da liberdade e da igualdade e nos leva a refletir mais profundamente sobre as condições e os destinos fraternos da liberdade e da igualdade. Uma diferença reconciliada: esta é a vocação à fraternidade que visa resolver as inevitáveis tensões que a liberdade e a igualdade introduzem na sociedade. Se cada um é diferente (exatamente por ser reconhecido como livre) e se todos são iguais apenas fraternalmente, a história poderá ser direcionada não para o desastre, mas para a paz. A diferença estrutural da fraternidade, em relação à solidariedade, ressoa profeticamente nestas palavras de Francisco, de 2017:
"Com efeito, enquanto a solidariedade é o princípio de planificação social que permite aos desiguais tornar-se iguais, a fraternidade é o princípio que permite aos iguais ser pessoas diferentes. A fraternidade consente que pessoas que são iguais na sua essência, dignidade, liberdade e direitos fundamentais, participem diversamente no bem comum, em conformidade com a sua capacidade, o seu plano de vida, a sua vocação, o seu trabalho ou o seu carisma de serviço".
Ter apontado decisivamente para esta forma de "sociedade aberta", onde as conquistas da liberdade e da igualdade não esquecem a vocação à fraternidade, que as justifica e enobrece, parece-me ser o mérito histórico dessa Encíclica. Com isso aflora também a sua capacidade de entrar com autoridade não só na consciência teológica e eclesial, mas também no debate cultural e antropológico do nosso tempo. Algo que hoje, diante da nova possibilidade de "guerra fratricida" na Europa, exige um empenho teórico e uma nova disponibilidade prática.
A força universal da diferença fraterna, tal como se apresenta no mundo contemporâneo, entra em conflito com os dois princípios mais "evidentes" da época moderno-tardia: isto é, com o princípio da liberdade e com o princípio da igualdade. A liberdade como "diferença absoluta" e a igualdade como "superação de toda diferença" são os grandes ideais e os grandes mitos do mundo moderno-tardio. Mas nós "idealizamos" esses ideais. Nós os separamos entre si e os separamos internamente.
A primeira separação opõe diferença absoluta e igualdade absoluta e depois tem dificuldade para recompô-las. A segunda separação, de certa forma, é a mais insidiosa e a mais fácil. Ela divide e opõe o que deve ser distinto, mas não separado.
Na liberdade vê apenas a "posse originária": já não vê mais nem a "tarefa inesgotável" nem o "dom do outro". E assim abstrai uma liberdade originária que não é humana, mas ao mesmo tempo sobre-humana e desumana. Onde há humanidade, nunca se "parte" da liberdade, mas se chega à liberdade através da família, da sociedade e do Estado, isto é, através de uma forma comunitária de elaboração de autoridade da linguagem e da ação, do pensamento e da vontade. Uma liberdade sem cultura, sem mediação comunitária, é uma contradição em termos. Essa é a primeira idealização que sofremos.
O mesmo vale para a "igualdade", embora de forma diferente: porque a noção de igualdade, diferentemente do conceito de liberdade, tem em si a referência ao outro. E, no entanto, se refere ao outro em termos de “igualdade de direitos e deveres”. A fórmula, juridicamente bastante preciosa e objetivamente fecunda, assume, no entanto, uma irrelevância da diferença que contribui para pensar a relação social como condição de "igualdade de oportunidades no exercício da liberdade".
No entanto, não é difícil entender que o princípio da igualdade é formal em relação às diferenças determinadas pela liberdade. Se todo sujeito é livre, é livre para ser "diferente" e "diverso" em relação a qualquer modelo imposto e em relação aos outros.
Uma precisa e nova conexão entre fraternidade, liberdade e igualdade é a única via para permitir que o irmão não entre nas malhas de Caim e evitar confundir a ideia de fraternidade com a programação do fratricídio.
A esta superposição originária de amor e ódio entre irmãos, as tradições religiosas devem oferecer bons instrumentos de argumentação, bem como exemplos de comunhão. Não há nada pior que tradições religiosas ou cristãs que se achatam na justificação de uma fraternidade reduzida ao fratricídio.