19 Outubro 2021
"A dignidade igual entre homens e mulheres também deve ser afirmada em nível linguístico. É anacrônico hoje usar os termos fraternidade/irmãos, ignorando ou desconsiderando os termos sororidade/irmãs."
O comentário é de Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News, 15-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sororidade, o equivalente feminino da fraternidade, é um termo "tão estranho ao nosso vocabulário comum que é indicado como um erro em nossos aplicativos de texto"; e está "completamente ausente dos documentos conciliares nos quais, por outro lado, fraternidade aparece 26 vezes".
Foi o que observou Cettina Militello - uma das primeiras leigas empenhadas no trabalho teológico, ex-professora da Faculdade de Teologia da Sicília, diretora da cadeira Mulher e Cristianismo da Pontifícia Faculdade de Teologia "Marianum" - na pág. 8 de um interessante ensaio recente (cf. Cettina Militello, Fraternità e sororità. Sfida per la Chiesa e la liturgia, Cittadella Editrice, Assisi 2021) que visa destacar dois limites da celebração litúrgica: por um lado, a pesada hipoteca androcêntrica e patriarcal presente na tradução italiana da 3ª edição do Missal Romano do ano 2020 (Parte primeira); por outro lado, a falta de evidência do "vínculo intrínseco" (p. 5) que existe entre a assembleia celebrante e o caráter fraterno-sororal que une discípulos e discípulas do Senhor Jesus que dela participam (Parte segunda).
Esta hipoteca androcêntrica evidencia “a invisibilidade e irrelevância das mulheres não só no léxico da oração, mas também na ação litúrgica” (p. 143) e, consequentemente, não facilita a abertura à sororidade. Na verdade, a abertura no contexto litúrgico à sororidade é mais difícil do quanto o seja também o recurso à fraternidade. “Este último pelo menos tem um excedente, uma visibilidade verbal. A ausência da outra corresponde àquela das mulheres, realmente invisíveis na Igreja, tanto quanto o foram na história” (p. 142).
Na primeira parte do volume Cettina Militello apresenta-nos um exame meticulosos da tradução italiana da 3ª edição do Missal Romano do ano de 2020.
Irmãos aparece 227 vezes, irmão 109, irmãs 76, irmã 74, irmãos e irmãs 43, fraternidade 2 vezes na edição italiana, enquanto na Editio Typica Tertia ocorre 6 vezes (p. 13). O adjetivo fraterno é usado 27 vezes com referência à caridade, à comunhão, à solidariedade, à alegria (pp. 48-49). Filho ocorre 1.655 vezes, filha apenas 24; filhos 225 vezes, filhas 30 (p. 71)
A Ordenação Geral do Missal Romano (OGMR) mantém sempre o plural masculino irmãos, como sinal evidente de uma escrita não aberta à dupla dicção irmãos/irmãs (p. 18).
O reconhecimento nos textos litúrgicos e a leitura da OGMR não nos permitem, portanto, considerar significativo o termo "irmãs", muito menos abrem espaço para o termo "sororidade" (p. 147).
O próprio direcionamento tímido à assembleia orante com o vocativo irmãos e irmãs "obedece às regras do politicamente correto, ao invés de uma inclusão profunda que implicaria sempre e em qualquer caso acrescentar aos irmãos/irmão também o correspectivo irmãs/irmã... Em suma, estamos longe de uma conversão convicta e definitiva a uma cultura litúrgica finalmente inclusiva” (pp. 147-148).
A conclusão da autora é amarga: “por muito tempo ainda, as mulheres terão que se contentar em serem saudadas, exortadas, admoestadas, abençoadas por um homem com a fórmula irmãos e irmãs, desde que ele a use. E por muito tempo ainda, irmã(s) indicará apenas o gênero da pessoa por quem se reza, ou sobre a qual se realiza um rito, sem que isso acarrete nenhuma outra subjetividade, muito menos correspondente à competência que, entretanto, as mulheres adquiriram e não só em nível civil e político, mas também teológico, bíblico e litúrgico” (p. 147).
Sororidade parece, portanto, ser um termo relativamente recente (p. 142).
No entanto, Elisabeth Moltmann-Wendel já em 1977 falava em “sororidade” em Freiheit, Gleichheit, Schwesterlichkeit. Zur Emanzipation der Frau in Kirche und Gesellschaft, publicado em 1979 pela Editora Queriniana com o título Libertà uguaglianza, sororità – Per l’emancipazione della donna.
Hans Küng, em La donna nel cristianesimo (Queriniana, Brescia 2005, p. 151) e no amplo volume Cristianesimo (Rizzoli, Milan 1994, p. 725), escreve sobre a Igreja como uma "comunidade de irmãos e irmãs" que em nenhum caso pode ser regida de forma patriarcal, uma vez que paternalismo e culto da pessoa mergulham as pessoas na menoridade e - no que se refere aos ministérios ou à representatividade - “excluem ou marginalizam, de direito ou de fato, o gênero feminino”. Para o grande teólogo suíço recentemente falecido, “o espírito da fraternidade e da sororidade deveria encontrar realização nas ordenações e nas relações sociais da comunidade cristã”.
Por uma Igreja de fraternidade e da sororidade é o título da palestra proferida em 16 de maio de 2009 em Florença pelo teólogo Giuseppe Ruggeri por ocasião da conferência sobre o tema O Evangelho que recebemos promovida por Paolo Giannoni (disponível em: Alberto Melloni e Giuseppe Ruggeri (org.), Il Vangelo basta. Sulla fede e sullo stato della Chiesa italiana, Carocci Editore, Roma 2010, pp. 31-67).
Almejando uma "Igreja da fraternidade e da sororidade", Giuseppe Ruggeri sublinha "a intensidade das relações entre os cristãos e a sua igualdade fundamental, aquela para a qual o Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja, no n. 32, afirma que embora alguns, pela vontade de Deus, sejam constituídos doutores e dispensadores dos mistérios e pastores para os outros, vigora uma verdadeira igualdade entre todos no que diz respeito à dignidade (aequalitas quo ad dignitatem) e à ação comum a todos os fiéis na construção do corpo de Cristo.
A Igreja como fraternidade e sororidade opõe-se, portanto, em negativo a uma Igreja onde a legítima diversidade dos carismas e dos ministérios se transforma em autoritarismo clerical e, em positivo, sobretudo pelo critério principal do consenso dos fiéis, exige a responsabilidade de todos, apesar da diversidade dos carismas e dos ministérios, bem como na variedade de órgãos institucionais com os quais ela interpretou essa necessidade ao longo da história. Os medievais costumavam expressar tal responsabilidade comum com o adágio segundo o qual aquilo que diz respeito a todos deve ser tratado e aprovado por todos” (Giuseppe Ruggeri, op. cit. Pág. 32).
Sobre a sororidade trataram as teólogas Cristiana Dobner e Rosalba Manes para o número monográfico da revista das Edições Dehonianas de Bolonha "Parola Spirito e Vita" intitulado A Fraternidade (77/2018).
Às vezes polemicamente, mas injustificadamente associado a práticas feministas, "sororidade" é um termo que, na realidade, deveria estimular a reflexão e conter "alguma centelha de profecia" na esfera eclesial. É o que espera Marta Rodriguez, diretora do Instituto de Estudos Superiores sobre a Mulher da Pontifícia Universidade Regina Apostolorum, apresentando o encarte "Donne Chiesa Mondo" intitulado "Sorelle" (cf. Osservatore Romano de 26 de setembro de 2020).
Em conclusão, ignorar o termo sororidade ou dar como certo que o masculino abraça o feminino talvez poderia esconder - questiona Cettina Militello - “o vulnus de uma visão misógina que tenta fazer desaparecer as mulheres num plural masculino cuja suposta valência inclusiva na realidade testemunha, tenaz e permanente, o equívoco de um mundo e de uma Igreja sem mulheres” (p. 7)?
Uma das razões pelas quais é considerado inútil discutir sobre o termo sororidade está no fato que o mais usado termo "fraternidade", por se referir indiferentemente a homens e mulheres, a irmãos e irmãs, incluiria a sororidade.
Se existe o termo sororidade (latim, sororitas, inglês sorority, francês, sororité espanhol, sororidad, português sororidade), isso significa que ele contém um sentido diferente do termo fraternidade que se gostaria inclusivo, mas que na prática acaba por ser excludente. As mulheres, de fato, são titulares de uma experiência, uma perspectiva e uma dignidade que não podem ser subentendidas ou resolvidas de um ponto de vista masculino considerado superior e inclusivo. Assim como as mulheres e as irmãs devem ser nomeadas e não subentendidas nos homens e nos irmãos, assim a sororidade deve ser explicitamente dita e não absorvida na fraternidade.
A dignidade igual entre homens e mulheres também deve ser afirmada em nível linguístico. É anacrônico hoje usar os termos fraternidade/irmãos, ignorando ou desconsiderando os termos sororidade/irmãs. Assim, por exemplo, uma mulher pode dirigir-se a outra mulher ou a um homem, dizendo "Eu sou tua irmã": porém, ela nunca poderá dizer, sob pena de cair no ridículo, "Eu sou teu irmão".
Concluindo, sororidade - escrevia Giorgia Salatiello na inserção "Donne Chiesa Mondo" do Osservatore Romano de 27 de fevereiro de 2019 em um artigo intitulado Redescobrir a sororidade - não é um "duplo de fraternidade" nem "uma coqueteria feminista, motivada pela vontade de explicitar tudo também ao feminino”. Segundo a professora de Filosofia da Pontifícia Universidade Regina Apostolorum, o termo nada mais faz do que explicitar o “desejo de aderir à concretude da existência, sabendo que as mulheres não são de forma alguma homologáveis aos homens e que a diferença entre elas também marca a esfera emocional e espiritual".
A proposta que Cettina Militello esboça na segunda parte do ensaio é particularmente rica em conteúdo: a Igreja como dimensão de casa (a ekklesia kat'oikon) como ambiente ideal para viver uma liturgia no sinal de fraternidade/sororidade.
Isso pressupõe uma Igreja de irmãos e irmãs em Cristo, onde a fraternidade e a sororidade constituem a sua dimensão profunda e, ao mesmo tempo, qualificam o estilo das relações entre as pessoas que fazem parte do Povo de Deus e entre estas e a família humana.
Contígua ao discipulado de iguais, próprio do seguimento de Jesus, a fraternidade/sororidade para os cristãos deve ter a sua máxima manifestação na assembleia litúrgica (p. 5), onde as pessoas se olham no rosto (p. 182), onde se percebe como uma riqueza e um recurso a assembleia celebrativa composta por pessoas de diferentes idades e condições sociais (p. 182), se participa na formulação da oração dos fiéis (pp. 182-183), saboreia-se a alegria de estar juntos, as pessoas se sentem verdadeiramente irmãos e irmãs que valorizam de forma sinérgica tudo o que as une (p. 183), a Palavra de Deus é adquirida “na profundidade sempre nova de uma inteligência compartilhada, partindo o pão eucarístico sem esquecer os muitos, demais, que sofrem fome, injustiça, abandono” (p. 203), estabelecem-se relações dialógico-solidárias, fraterno-sororais, permeadas “pela excedência de amizade” como “resposta à gratuidade” que lhes deu origem (p. 195).
“Uma resposta que visa necessariamente transformar o mundo, reconhecendo como irmãos e irmãs todos os homens e todas as mulheres que o habitam, independentemente do gênero, língua, raça, nação, cultura. Uma resposta direta para ouvir, para abraçar o grito dos últimos e para reafirmar o senhorio evangélico dos pobres. Uma resposta direta para combater os egoísmos, sejam eles quais forem" (p. 195).
Para Cettina Militello, redescobrir e valorizar o "valor eclesiogenético" da Igreja na dimensão da casa, da Igreja doméstica, da ekklesia kat'oikon de Atos 2,46 onde o pão se parte com alegria e simplicidade de coração ou At 5, 42 onde não se deixa de ensinar e de anunciar a boa nova de que Jesus é o Cristo (p. 153), talvez seja o único recurso "para desenhar uma outra face da Igreja" na crise que atravessam nossas comunidades (p. 149), dentro das quais "mais do que irmãos/irmãs somos estranhos" (p. 151) e "nos encontramos em um todo anônimo, habitudinal e distraído" (p. 182).
Além disso, é nas casas que nasceu a comunidade cristã. É dentro de hospitaleiros muros familiares que Jesus celebra a sua Páscoa e é na Igreja que se reúne nas casas que os seguidores e as seguidoras do Crucifixo Ressuscitado se reconhecem, uns aos outros, umas às outras, como membros da família de Deus (p. 155). É numa casa que o Espírito irrompe como um vento impetuoso que está na origem da Igreja (p. 154).
“Deveríamos experimentar, ousar novas formas de ser Igreja, diversamente ligadas ao território. Essas novas células, reais lugares do acontecimento eclesial, deveriam ao menos complementar as formas existentes, não para deixá-las como são, mas para promover uma transformação radical e/ou substituí-las uma vez adquiridas autoridade e competência” (pp. 169- 170).
Na consciência profunda de que “só começando de baixo, sem pompas e sem palavras retumbantes, na simplicidade e na pobreza de uma casa acolhedora, poderemos voltar a ser um sinal de respeito e de atenção. Mas para que isso aconteça, é necessário excluir definitivamente toda forma de clericalismo, toda forma de patriarcalismo, toda hierarcologia indevida. É necessário devolver a boa nova aos pobres, abrir-se à fraternidade/sororidade universal, abandonar toda discriminação de gênero.
Apenas comunidades laicais no sentido original do termo, em plena reciprocidade de homens e mulheres, incluindo carismas e ministérios, poderão conduzir a Igreja rumo a um presente e um futuro segundo o Evangelho. Na experiência renovada de uma fé vivida e celebrada, seremos novamente semente que dá frutos para a glória do único Deus, Pai Filho Espírito, que nos quer todos irmãos e irmãs e derrama sobre todos e todas a sua amável e inesgotável misericórdia" (p. 203).
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Sororidade e não apenas fraternidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU