23 Abril 2022
Quando as valas comuns começaram a vir à tona na Ucrânia e se começou a falar dos civis mortos e enterrados pelos soldados russos como provas a serem levadas perante o Tribunal Penal Internacional de Haia, a escritora espanhola Marta Sanz disse que sentiu angústia e depois perplexidade: “Não, isso não devia acontecer de novo”.
A reportagem é de Stefania Parmeggiani, publicada por La Repubblica, 22-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ela sabe bem o que significa ocultar crimes de guerra e negar dignidade às vítimas, que consequências tudo isso tem não apenas para a vida dos sobreviventes, mas também para o próprio futuro de um país.
Ela contou isso em seu último livro, “Piccole donne rosse” [Pequenas mulheres vermelhas] (Ed. Sellerio), um suspense que encerra a trilogia do detetive Arturo Zarco, mas sobretudo um romance político feminista e antinacionalista que trata do tema da violência de gênero e da memória de uma terra que ainda não fez totalmente as contas com a sua própria história.
“Diante das imagens e dos depoimentos que vieram de Butcha, a primeira coisa que eu pensei foi: o horror. Depois lembrei os 114.226 desaparecidos devido à repressão da ditadura franquista. O silêncio da Europa durante e depois da guerra. Feridas esquecidas e não cicatrizadas.”
As mulheres ucranianas enfrentam a ameaça do estupro como arma de guerra. Por que os crimes sexuais, assunto tratado também no seu romance, se repetem em todos os conflitos?
Digamos que, em condições “normais”, o corpo das mulheres é um campo de batalha pela discriminação econômica, pelo risco de exclusão e pobreza, pela somatização de um esforço que se duplica na esfera pública, pelo modo como as nossas diferenças se tornam desvantagens. Pela realidade dos feminicídios que não são violência doméstica, mas sistêmica. Na guerra, a metáfora não só se torna realidade, como se exacerba: as mulheres são consideradas pedaços de carne sobre os quais se pode exercer a brutalidade. Hoje vemos que, além dos estupros na Ucrânia, no nosso primeiro mundo civilizado já existem redes preparadas para enganar, explorar e prostituir essas mulheres. Para se aproveitar da sua dor e da fragilidade.
Diante de tanto horror, podemos ser equidistantes?
Ser equidistante em uma guerra é muitas vezes imoral. Mas, para não ser, é preciso ter a consciência de dois elementos que às vezes entram em contradição: quem são os fracos, os que sofrem e, diante dessa certeza, considerar que nas guerras são postos em ação mecanismos de propaganda extremamente violentos que muitas vezes nos impedem de ver. Para contar uma guerra é preciso ter muita coragem e muita audácia; ao mesmo tempo, há imagens que, com o passar do tempo, nos parecerão constrangedoras. Acredito também que não ser equidistante não significa necessariamente ser maniqueísta.
O que você acha de Putin?
É um criminoso, mas não é a encarnação de um mal abstrato, mas sim de um mal racional e perfeitamente contextualizado. Por isso, deveria ser processado pelos seus crimes. Porque ele não é louco.
A invasão russa pegou a maioria das pessoas de surpresa. Ela era realmente imprevisível?
Acho que foi imprevisível porque não estávamos suficientemente informados ou porque às vezes não estamos muito interessados em olhar para certos lugares. As guerras nunca são justificadas, mesmo que muitas vezes se busquem argumentos filantrópicos para argumentar uma violência cuja origem geralmente é econômica, e podemos identificar isso nos falsos relatórios sobre as armas de destruição em massa que justificaram “moralmente” a guerra no Iraque. As guerras não têm justificativa e deveriam ser erradicadas da face da terra. Geralmente, elas têm uma causa. Quando algo tem uma causa, acho que não é totalmente imprevisível.
Corremos o risco de voltar às lógicas do século XX?
Parece-me que a nossa memória está vacilante, e isso não me surpreende, porque desconfiamos até da memorização nos currículos educacionais. Esquecemos que Putin é herdeiro dos esquemas imperiais da Rússia neoliberal de Yeltsin. Acredito que, apesar do que diz Fukuyama, a história não acabou, e há lutas econômicas e de poder, interesses geoestratégicos e uma confusão entre ideologia e pensamento crítico.
Para você, quem são os heróis, as vítimas e os algozes nesta guerra?
Os algozes são todos aqueles que promoveram essa guerra, que a encorajaram. Aqueles que não fizeram nada para evitá-la, que dão a ordem de matar e destruir, que brincam com fogo, sabendo que não se queimarão diretamente. As vítimas são todos os outros. Acima de tudo e como sempre, as pessoas que têm menos.
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“A guerra é sempre sobre o corpo das mulheres.” Entrevista com Marta Sanz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU