01 Abril 2022
"Cabe aos analistas políticos explicar por que o presidente estadunidense pretende sabotar com essa escalada verbal a vontade, embora apoiada em palavras, de parar a guerra antes da catástrofe. Ao simples humanista, que só pode aspirar à exatidão do sentir e do sentido das palavras, só resta escutar o mistério primitivo".
O artigo é de Roberta de Monticelli, filósofa italiana, publicado por Domani, 31-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nunca como nestes dias ressoam como pura verdade, na memória de quem já as conheceu, as palavras de abertura do Preâmbulo da Constituição da Unesco: “Uma vez que as guerras começam nas mentes dos homens, é na mente dos homens que devem ser construídas as defesas da paz”.
Ressoam nos ouvidos os epítetos que os "líderes" dos mundos abalados que se chocam mutuamente reservam para o outro lado: em primeiro lugar Vladmir Putin, a quem faz lugubremente eco, em uma nuvem de incenso, o patriarca homofóbico que consagra a guerra.
Mas a linguagem pública de Joe Biden não é ainda mais chocante para nossos ouvidos europeus? Chocante mais pela simplificação quase infantil dos termos (como quando se costumava falar em "estados vilões") do que pela violência.
Alguém comparou as palavras de Biden na Polônia às de John Kennedy, "Ich bin ein Berliner", ou mesmo às de Wiston Churchill sob as bombas em Londres: "Lutaremos nos céus e na terra, nas ruas e nos campos, mas nunca nos renderemos" (Paolo Guzzanti, Il Giornale, 27 de março). Mas o que isso tem a ver? Nem uma sombra de desprezo transparece por essas palavras.
Em vez disso, os epítetos ("criminoso", "assassino", "carniceiro") pregadas pelo presidente em Putin, mesmo quando correspondem à verdade, aparecem, em sua dimensão psicológica, moral e penal, penosamente inadequados à extensão da tragédia pública, pela humanidade e pelos dois povos em particular, que o chefe de Estado russo representa.
Mesmo aquela que seria uma justa indignação diante do agressor é rebaixada por essa linguagem exaltada, mas simplória. Incongruente para quem representa a dignidade suprema de uma República, além de ser - afirma a Constituição - Comandante-em-Chefe do Exército e da Marinha dos Estados Unidos.
Aquelas palavras são uma espécie de revelação, no entanto. Revelam a substância do critério que um pensamento feroz e obscurantista propôs para definir a política: a oposição amigo-inimigo.
Apesar de toda a sua erudição teológica e jurídica, Carl Schmitt, autor desta "definição", reduz a política a algo arcaico e tribal, mais antigo que a política. “O inimigo é simplesmente o outro, o estranho, e basta à sua essência que ele seja existencialmente algo outro e estranho num sentido particularmente intensivo, de modo que... os conflitos não podem ser decididos nem através de um sistema de normas preestabelecidas nem pela intervenção de um terceiro 'desengajado' e, portanto, 'imparcial'" (as categorias do político). Causa calafrios, certo?
Cabe aos analistas políticos explicar por que o presidente estadunidense pretende sabotar com essa escalada verbal a vontade, embora apoiada em palavras, de parar a guerra antes da catástrofe. Ao simples humanista, que só pode aspirar à exatidão do sentir e do sentido das palavras, só resta escutar o mistério primitivo. Em que toda diferença é zerada, e os muitos se tornaram um só corpo que sustenta uma só cabeça.
Há esse “existencialmente e essencialmente outro” a que se opor – e então por definição (antes que por tolice estratégica) não há mediação que segure, não há “norma preestabelecida”.
Assim começam as guerras, "no coração dos homens". Aqui está a distinção schmittiana entre amigo e inimigo como essência da política, que se revela em sua suspensão, a guerra, justamente como a soberania se revelaria no estado de exceção. Então, Carl Schmitt está certo?
Ele está absolutamente errado, teoricamente e eticamente. Não porque esse mistério primitivo não exista. Mas porque ele chama isso de política, nisso ele vê a sua essência. Se ele estivesse certo, a civilização não teria progredido além da Idade do Bronze.
Por isso, seu pensamento é feroz e obscurantista, com todo respeito ao que Norberto Bobbio chamava de "esquerda sem bússola", com a qual namorica há meio século. E com todo respeito aos teóricos do choque de civilizações que são seus herdeiros, para quem só essa cola de sangue, essa religião que nos mantém grudados juntos contra o Outro dá à política a sua tarefa: e não o vínculo normativo que concordamos para que muitas identidades convivam.
Também têm muitos seguidores entre nós, os Huntingtons e Brzezinski, contra a mentalidade segundo a qual "a dimensão do conflito, dos mecanismos e dos sentimentos fatais que o determinam... todos parecem entidades de traços primitivos a serem exorcizadas" (Ernesto Galli della Loggia, Corriere della sera, 20 de março). Contra aqueles que negam que "os princípios liberais devem chegar a um acordo com as regras da política de poder" (Angelo Panebianco, Corriere della sera, 21 de março).
Mas essa mentalidade é o Iluminismo. É a aspiração de Kant, não apenas aquela do papa. E é a obrigação, a tarefa da política. Sua razão de ser.
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Muitos intelectuais degradam a política à lógica amigo-inimigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU