"Jesus sabe que todo ser humano é habitado profundamente por um senso de culpa ancestral, que emerge prepotentemente todas as vezes que ocorre uma desgraça ou aparece a força do mal. Quando uma doença vem ao nosso encontro, quando um fato doloroso nos ocorre, imediatamente nos fazemos a pergunta: “Mas o que eu fiz de errado para merecer isso?”. Está enraizada em nós a dinâmica bem expressada pelo título do célebre romance de Fiódor Dostoiévski, “Crime e castigo”: onde há crime e pecado, deve chegar a punição e a pena, pensamos nós...".
O comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 3º Domingo da Quaresma, 20 de março de 2022 (Lucas 13, 1-9). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "Jesus, como profeta, não fornece, portanto, uma explicação teológica para o mal, mas convida à conversão"
Depois dos dois primeiros domingos da Quaresma, que sempre fazem memória das tentações de Jesus no deserto e da sua transfiguração na montanha, a Igreja nos leva a percorrer um itinerário diferente em cada ciclo. Neste ano (ciclo C), seguindo o Evangelho segundo Lucas, o tema dominante nos trechos do Evangelho é o da misericórdia-conversão, caminho a ser renovado especialmente no tempo de preparação para a Páscoa.
Essa página contém duas mensagens: a primeira sobre a conversão, a segunda sobre a misericórdia de Deus. Os ouvintes de Jesus receberam uma notícia sobre um massacre ocorrido na Galileia: enquanto eram oferecidos sacrifícios para pedir ajuda e proteção a Deus, a polícia do governador Pilatos cometera uma chacina, misturando o sangue das vítimas oferecidas com o dos oferentes. Os presentes querem que Jesus se expresse sobre a opressiva e persecutória dominação romana, sobre a situação daqueles galileus talvez revolucionários, sobre a culpa daqueles seus concidadãos que haviam sido massacrados tragicamente. A mentalidade corrente, de fato, considerava toda desgraça ocorrida como castigo por uma culpa cometida.
Mas Jesus, que faz um juízo negativo sobre os dominadores deste mundo – que oprimem, dominam e se fazem chamar de benfeitores (cf. Lc 22,25 e par.) – responde envolvendo os ouvintes em outro nível, indicando como decisiva não a morte física, mas sim a hora escatológica.
De fato, ele diz: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”.
Ele responde no nível da fé e do conhecimento de Deus. É como se dissesse: “Vós pensais que o pecado cometido pelo homem desencadeia automaticamente o castigo por parte de Deus, mas não é assim. Desse modo, dais a Deus um rosto perverso!”.
De fato, Jesus sabe que todo ser humano é habitado profundamente por um senso de culpa ancestral, que emerge prepotentemente todas as vezes que ocorre uma desgraça ou aparece a força do mal. Quando uma doença vem ao nosso encontro, quando um fato doloroso nos ocorre, imediatamente nos fazemos a pergunta: “Mas o que eu fiz de errado para merecer isso?”. Está enraizada em nós a dinâmica bem expressada pelo título do célebre romance de Fiódor Dostoévski, “Crime e castigo”: onde há crime e pecado, deve chegar a punição e a pena, pensamos nós...
Jesus quer destruir essa imagem do Deus que castiga, tão cara aos homens religiosos de todos os tempos, em Israel assim como na Igreja. Para fazer isso, ele mesmo menciona outro fato ocorrido, que não se devia à violência e à responsabilidade humana, mas que ocorreu por acaso, e o acompanha com o mesmo comentário: “E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”.
Qual é, portanto, o caminho indicado por Jesus? Acima de tudo, ele nos ensina a ter um olhar diferente sobre a vida: toda vida é precária, é contraditada pela violência, pelo mal, pela morte. Por trás desses eventos, não devemos ver Deus como castigador e juiz – porque Deus poderá, eventualmente, fazer isso apenas no juízo final, quando tivermos passado pela morte –, mas sim discernir as nossas fragilidades, os nossos erros inevitáveis, a precariedade da vida.
Ninguém é tão pecador a ponto de merecer tais desgraças enviadas por Deus, que não é um espião à espera de ver o nosso pecado para nos castigar! Porém, entre pecado cometido e responsabilidade na culpa, existe uma relação que se manifestará no juízo final.
Aqueles assassinatos e aquelas mortes são, no entanto, um sinal de outra morte possível, que aguarda aqueles que não se convertem, porque quem continua fazendo o mal caminha por uma estrada mortífera e, consequentemente, obtém sozinho o mal que já encontrará aqui na terra e, depois, no juízo último de Deus. Além da morte biológica do corpo, que sempre pode nos surpreender, há outra perdição eterna, provocada pelo mal que escolhemos fazer na nossa vida.
Jesus, como profeta, não fornece, portanto, uma explicação teológica para o mal, mas convida à conversão. Não nos esqueçamos dos significados dessa palavra. De acordo com o Antigo Testamento, converter-se (shuv/teshuvah) significa “retornar”, isto é, voltar ao Senhor, retornar à lei rompida, para renovar a aliança com Deus. O caminho exigido diz respeito à mente e ao agir, e se manifesta também como arrependimento/penitência no tempo presente, último espaço antes do juízo.
Por isso, Jesus pregou: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15; cf. Mt 4,17), ou seja, “convertei-vos crendo e, crendo, convertei-vos”. Jesus é um profeta e, como tal, sabe que os humanos são pecadores e cometem o mal; por isso, pede-lhes que façam a sua adesão à boa notícia do Evangelho e acolham a misericórdia de Deus que vai ao seu encontro, oferecendo o perdão.
E, para que seus ouvintes compreendam a novidade trazida pelo Evangelho, Jesus lhes conta uma belíssima parábola. Um homem plantou com esforço uma figueira na própria vinha e, com muita confiança, todos os verões, vai buscar os seus frutos, mas não os encontra, porque essa árvore parece estéril. Impulsionado por essa decepção que se repetiu por nada menos do que três anos, ele pensa, portanto, em cortar a figueira, para plantar outra. Então, chama o agricultor que está na vinha e lhe expressa a sua frustração, intimando-lhe a cortar a árvore: por que deve explorar inutilmente o solo e roubar o alimento de outras plantas?
Todos nós compreendemos essa decisão do dono da vinha, inspirada no nosso conceito de justiça retributiva e meritocrática: não se paga a quem não dá fruto, enquanto os outros são pagos proporcionalmente ao fruto que cada um dá!
Mas o agricultor, que trabalha naquela terra, ama aquilo que plantou, capinou, regou e fertilizou. O vinhateiro, como se sabe, ama a vinha como uma esposa; por isso ousa interceder junto ao dono: “Senhor (Kýrie), deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás!”.
É extraordinário o amor do vinhateiro pela figueira: ele tem paciência, sabe esperar, dedica-lhe o seu tempo e o seu trabalho. Promete ao dono que vai tomar um cuidado particular dessa árvore infeliz; em todo o caso, não vai cortá-la, mas vai deixar que o dono a corte, se quiser: “Tu a cortarás, não eu!”. Esse “tu a cortarás” é mais uma intercessão, que equivale a dizer: “Eu estou pronto para esperar de novo e de novo até que ela dê frutos”.
Aqui, estão frente a frente a justiça humana retributiva e a justiça de Deus, que não só contém em si a misericórdia, mas é sempre misericórdia, paciência, espera, sentir grande (makrothymía). O agricultor concede a confiança, sabe esperar os tempos dos outros.
Esse agricultor é Jesus, que veio à vinha (cf. Lc 20,13 e par.) de Israel capinada, liberta das pedras, plantada por Deus como videira excelente: “E Deus esperou que produzisse uvas” (Is 5,2)...
Sim, o Filho de Deus veio à vinha, fez-se vinhateiro entre os outros vinhateiros, amou verdadeiramente a vinha e cuidou dela, elevando intercessões por ela em todas as situações, colocando-se entre a vinha-Israel e o Deus vivo, dando um passo comprometendo a si mesmo no cuidado da vinha, aumentando o seu trabalho e o seu esforço por amor à vinha, fazendo todo o possível para que dê fruto e viva.
É estando “in medio vineae”, no meio da vinha, que ele diz a Deus: “Deixa-a, deixa-a mais um pouco, espere pelos seus frutos; eu, enquanto isso, assumo o seu cuidado, que é responsabilidade!”. Assim, a vinha-Israel e a vinha-Igreja, às vezes atingidas pela esterilidade, são conservadas até mesmo quando não dão os frutos esperados por Deus, porque Jesus, o Messias, é o vinhateiro em seu meio (cf. Jo 15,1-8), é o seu esposo (cf. Lc 5,34-35 e par.) e sabe esperar com aquela expectativa que é a “paciência de Cristo” (2Ts 3,5).
João Batista havia pregado: “O machado já está posto na raiz das árvores. E toda árvore que não der bom fruto, será cortada e jogada no fogo” (Lc 3,9; Mt 3,10). Isso acontecerá no fim dos tempos, no dia do juízo, mas agora, enquanto isso, Jesus continua dizendo a Deus: “Tenha paciência, tenha misericórdia, espere ainda para arrancar a figueira. Eu vou trabalhar e farei todo o possível para que dê frutos”.
Mas atenção: esse tempo de espera termina para cada um de nós com a morte.