17 Fevereiro 2022
"Recomeçar das "alteridades negadas" significa olhar além, pular a cerca dos medos e da indiferença, para se deixar contaminar. É o início de uma virada antropológica que para a testemunha da fé cristã é uma tarefa eminentemente evangélica: esta é a ética da transcendência que pode aproximar crentes de diferentes fés e tradições e não crentes", escreve Claudio Monge, teólogo italiano, em artigo publicado por revista Nuovo Progetto, 01 de janeiro de 2022, pág. 12-13. A tradução é de Luisa Rabolini.
Claudio Monge é Frade da Ordem dos Pregadores - OP, desde 1997 vive sua experiência teológica e pastoral em Istambul, Turquia, como Superior da comunidade e responsável pelo Centro Dominicano para o Diálogo Inter-religioso e Cultural - DOST-I no diálogo-encontro com a tradição muçulmana.
A Igreja não pretende fornecer uma solução a todos os problemas presentes na dramática situação do mundo contemporâneo, mas pode e deve dar, iluminada pela luz que vem do Evangelho, os princípios e as orientações essenciais para a justa organização da vida social, para a dignidade da pessoa humana e para o bem comum.
Este princípio fundamental na base do desenvolvimento do Magistério social da Igreja Católica, claramente estampado na Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et Spes, promulgada pelo Vaticano II em dezembro de 1965, ressurgiu de forma clara na recente visita do Papa Francisco ao Chipre e à Grécia.
São as bases de uma abordagem leiga, de um falar em nome de "uma ecologia integral", que não entra em competição com os paradigmas científicos (o estado da ciência atual) ou políticos (conservadorismo, liberalismo, social-democracia... ) e que faz com que o discurso a culturas que se reportam a sistemas de valores não diretamente inspirados no cristianismo também seja pertinente e desafiador. Pessoas e não dinheiro, porque somente com base na justiça social atenua-se a violência e pode ser estabelecida a paz duradoura entre os povos.
Desde que o "Documento sobre a Fraternidade Humana" assinado em Abu Dhabi com o Imã Al-Tayyeb, o Papa Francisco tinha manifestado o desejo de envolver as religiões, em particular o cristianismo e o islamismo, na difusão de uma civilização do encontro.
Para isso, o diálogo não deve ser considerado uma estratégia para alcançar segundas intenções, mas um caminho de verdade que merece ser percorrido com paciência para transformar a competição em colaboração, onde cada um tem dons para colocar à disposição do outro. A colaboração exprime-se de modo particular na vivência da própria fé religiosa como serviço à causa da paz.
Precisamente na recente Mensagem para o 55º Dia Mundial da Paz, o Papa Francisco explicita esse tema segundo três diretrizes fundamentais: o diálogo entre as gerações, a educação e o trabalho, consideradas prioridades essenciais para a construção de uma paz duradoura. É difícil contestar a pertinência de tais observações que, além disso, não necessitam de referências explícitas a argumentos de autoridade extraídos do campo da fé.
Mas os crentes, sejam cristãos ou muçulmanos, sabem bem que a fé pede compaixão, misericórdia e atenção ao humano. É mais complexo compreender que essa atenção não está em concorrência com a homenagem ao Deus transcendente: demasiadas vezes a crença errônea de que os supostos "direitos de Deus" podem ser afirmados mesmo em detrimento daqueles dos seres humanos, levou a derivas de religiões e a manipulações idólatras em nome do próprio Deus.
Nunca como agora soa revolucionária e profética a repetição anafórica "Em nome da inocente alma humana ", "Em nome dos pobres", "Em nome dos órfãos", "Em nome dos desprovidos de segurança"... que aparece na mencionada Declaração de Abu Dhabi.
O crente sabe que, em filigrana, essas fortes afirmações antropológicas contêm a referência ao "Nome de Deus Clemente e Misericordioso", aquele que chama suas criaturas para uma relação no signo da fraternidade, que é o nome de uma matriz e, portanto, de uma pertença comum.
Trata-se de compreender, de forma "ética", mas não moralista, que o outro nos questiona e assim fazendo nos educa e nos transforma; obriga-nos a tomar uma posição, a sair da indiferença, a dar uma "resposta" (respondere, de onde deriva o pleno sentido da "responsabilidade").
Recomeçar das "alteridades negadas" significa olhar além, pular a cerca dos medos e da indiferença, para se deixar contaminar. É o início de uma virada antropológica que para a testemunha da fé cristã é uma tarefa eminentemente evangélica: esta é a ética da transcendência que pode aproximar crentes de diferentes fés e tradições e não crentes.
Extraído da revista Nuovo Progetto, n. 1 de janeiro de 2022, pág. 12-13.
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Vamos recomeçar pelo outro. Artigo de Claudio Monge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU