"Os esforços feitos para manter muitas das prisões funcionando servem, acima de tudo, não para reprimir a criminalidade ou realizar alguma ilusão ressocializadora, mas para viabilizar e legitimar a própria existência das prisões", diz a socióloga
As relações entre traficantes e agentes do Estado são fundamentais não somente para a manutenção e expansão do tráfico de drogas e disputas territoriais, mas para a "reprodução" do atual sistema prisional. A importância desses grupos para "a reprodução da prisão", afirma Marcelli Cipriani, "recai não só no investimento que é revertido em melhorias nas instalações e no consumo de bens e produtos, mas especialmente no estabelecimento da 'ordem' em um contexto que tende, pela profunda precariedade, à desordem – e que, em última instância, é central para viabilizar o funcionamento cotidiano da instituição".
A colaboração entre agentes do Estado e integrantes do tráfico, afirma, "não é ingênua, e é porque os agrupamentos adquirem variados benefícios, monetários e não monetários, que se esforçam para manter a prisão tranquila e silenciosa".
Segundo ela, "por mais contraintuitivo que possa parecer, hoje é necessário esconder o impacto que as prisões exercem no crime e que os grupos criminais exercem na reprodução do sistema prisional, para então afirmar que o sucesso desse duplo ocultamento é, na verdade, um sucesso da própria gestão".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Marcelli Cipriani explica como os coletivos criminais têm atuado no Rio Grande do Sul, usando diferentes estratégias na capital gaúcha, nos municípios da região metropolitana e no interior do Estado. "No Rio Grande do Sul, esses grupos são basicamente os Manos e os Bala na Cara, que hoje atuam como espécies de hubs, conectando uma série de gangues, quadrilhas e agrupamentos como um todo em uma mesma rede multiescalar, composta por alianças que podem ser tanto frágeis quanto sólidas, meramente instrumentais ou profundamente afetivas".
Marcelli Cipriani (Foto: Arquivo pessoal)
Marcelli Cipriani é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, mestre em Ciências Sociais pela UFRGS, onde atualmente está cursando o doutorado em Sociologia. Integra o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal - GPESC - PUCRS e o Grupo de Pesquisa Gestão Integrada da Segurança Pública - GESEG - PUCRS. É autora de Os coletivos criminais de Porto Alegre. Entre a “paz” na prisão e a guerra na rua.
IHU - No que consistem (no sentido do conceito) os coletivos criminais estudados por você?
Marcelli Cipriani - Uso o termo “coletivos criminais” para me referir a grupos que se constituem, de forma durável e a partir de afetos positivos e negativos, em torno de certas atividades ilegais – e, ao fazê-lo, não só disputam mercados e regulam seus conflitos, como participam da produção de modos de vida mais amplos, que se costuram entre experiências de violência estatal, precariedade e desigualdade e irradiam no espaço urbano com graus de legitimidade variáveis.
Ou seja, se tratam de grupos nos quais o “núcleo duro” orbita o envolvimento no crime (tráfico de drogas, armas e veículos, assaltos e contrabandos etc.), a incriminação e a capacidade de controlar vilas e prisões, mas cuja presença não se reduz a racionalidades econômicas ou à brutalidade dos confrontos – embora certamente as incorpore – porque também entabula práticas sociais e regimes de regras morais que ultrapassam os seus integrantes, sendo constantemente reproduzidas no cotidiano de periferias e fluindo por famílias, comunidades e redes de vizinhança.
Essa não é uma definição exaustiva dos grupos e de suas características, antes indicando uma maneira de olhar para aquilo que, no mundo do crime, se conhece por facção. Se trata de uma abordagem que dialoga com o trabalho de outros pesquisadores que, há muito mais tempo, vêm atentando para as várias dimensões e faces desses agrupamentos, cuja predominância varia de acordo com cada contexto. Nesse sentido, utilizo coletivo criminal justamente para enfatizar sua dimensão produtora de relações sociais e sociabilidades.
Além disso, é uma maneira de problematizar o enquadramento dos grupos como “criminalidade organizada” – tão comum nas páginas policiais, nos tribunais e nos relatos de agentes da segurança pública. Entendo que, ao se orientar primordialmente pela normatividade estatal, a interpretação dos coletivos pela lente do “crime organizado” os achata, pois ainda que as categorias legal e ilegal interessem ao Estado e ao Direito, pouco contribuem para a compreensão dos múltiplos arranjos, criminais e não criminais, que estão a eles associados.
Ademais, essa é uma leitura que opõe crime e Estado radicalmente – quando, no cotidiano, esses conjuntos de atores, racionalidades e práticas se cruzam o tempo inteiro. De um lado, está claro que o próprio discurso de combate ao crime pode dar (e efetivamente dá) respaldo legal a ilegalidades estatais. De outro, há uma série de acordos e negociações entre coletivos criminais e gestores estatais que, firmados tanto em prisões quanto em periferias, são feitos e refeitos constantemente, na medida em que se mostram de algum modo funcionais (quando não fundamentais) a ambos.
IHU - Atualmente, como os coletivos criminais do estado se distribuem e se articulam?
Marcelli Cipriani - Dezenas de grupos, fruto de distintos processos de constituição e com variados níveis de influência, hoje se espalham pelas prisões e periferias do estado. Por exemplo, os Taura e os Mata Rindo são atores centrais à história social do crime de Pelotas e permanecem relevantes à compreensão das redes criminais daquela região, mas pouco impactam o cenário da capital, onde pouco estão presentes. Por sua vez, em Porto Alegre, um agrupamento de nome V7 passou de irrelevante a considerável ao capitanear, entre 2015 e 2016, a formação de um bloco de aliados (um embolamento) chamado Antibala. Essa coalizão de pequenas gangues e grupos médios, que se uniram para reagir ao expansionismo violento do coletivo Bala na Cara, polarizou o crime do município entre duas frentes e deu início ao período mais violento de sua história – que ficou conhecido, entre eles próprios, como a guerra das facções.
Com a criação dos Antibala, a V7 foi protagonista de um grande rearranjo nas redes criminais do Rio Grande do Sul, devido à centralidade que a organização por meio de embolamentos adquiriu na gestão de mercados, na determinação de rivalidades e no estabelecimento de apoios (parcerias comerciais, trocas de favores etc.). Nesse sentido, sua atuação produziu consequências muito mais prolongadas no tempo e no espaço, impactando grupos nativos de outros lugares como os próprios Taura e Mata Rindo, que também viriam a ser englobados pelas novas logísticas do crime.
Apesar disso, a V7 tem pouca ou nenhuma influência fora de Porto Alegre e da região metropolitana – e, assim como os agrupamentos de Pelotas, só está presente em unidades prisionais distantes quando é acolhida na galeria de um grupo ou de uma coalizão. Assim, esses são exemplos de processos ora simultâneos e ora sucessivos, que podem (ou não) se sobrepor enquanto compõem o mundo do crime e atravessam os grupos direta e indiretamente.
Alguns coletivos, todavia, conseguem articular diferentes linhas temporais e espaciais, o que os leva a ocupar um patamar diferenciado. Sua relevância deriva não só da capacidade de territorializar prisões e vilas contínuas e descontínuas ao redor do estado – ou seja, de se firmarem em galerias prisionais e em bocas para além de suas áreas de origem –, mas especialmente da influência local que passam a exercer nesses lugares, dando o tom das dinâmicas criminais mesmo onde são estrangeiros e imbricando grupos nativos a si, às suas demandas e modos de funcionamento.
Isso só é possível porque, além da capilaridade no varejo e no sistema prisional, se tratam de coletivos com certo controle do atacado, alguma relevância nas rotas da droga e relações comerciais estabelecidas com coletivos nacionais, como o Primeiro Comando da Capital - PCC e o Comando Vermelho - CV. No Rio Grande do Sul, esses grupos são basicamente os Manos e os Bala na Cara - BNC – que, hoje, atuam como espécies de hubs, conectando uma série de gangues, quadrilhas e agrupamentos como um todo em uma mesma rede multiescalar, composta por alianças que podem ser tanto frágeis quanto sólidas, meramente instrumentais ou profundamente afetivas.
IHU - Quais são e quais as origens dos maiores coletivos criminais do Rio Grande do Sul?
Marcelli Cipriani - Atualmente, Manos e Bala na Cara distinguem-se dos demais e possuem tamanho, poder de fogo, capacidade de articulação e capital equiparáveis. Entretanto, se tratam de grupos com histórias bem diferentes e cujas origens remetem a períodos igualmente distintos do crime.
Os Manos surgiram na década de 1990, dentro das prisões do estado, especialmente como fruto da aliança entre grandes assaltantes de bancos, cargas e carros fortes. Naquele momento, o grupo estava mais voltado à organização das dinâmicas internas ao cárcere e tinha relações pouco duráveis com o lado de fora – se tratando, essencialmente, de um grupo prisional. Havia, portanto, uma relativa separação entre a reprodução do grupo (em sua condição de grupo) e a atividade criminal de seus integrantes.
Seria apenas nos anos 2000, principalmente após o assassinato do criador e líder Dilonei Melara, que os Manos viriam a se estruturar de vez em torno do tráfico de drogas. No período em que o grupo entrou na corrida por esse mercado, já possuía considerável influência prisional, laços de identidade bem estabelecidos entre membros, estrutura estável e respeito no mundo do crime. Essas vantagens seriam convertidas na progressiva relevância assumida pelos Manos nas redes do tráfico, operada através do espelhamento estabelecido entre a expansão de seu controle em galerias prisionais e em periferias de vários municípios.
Foi nessa mesma época que os Bala na Cara, então uma pequena gangue, se constituiu na Zona Leste de Porto Alegre. O grupo foi criado em um bairro onde conflitos entre outras gangues – inicialmente motivados por rixas familiares e, mais tarde, convertidos em disputas do crime – já ocorriam há gerações. Emergindo de um caldo de violências, os BNC igualmente tornaram-se conhecidos pela brutalidade de suas ações, cuja marca era o tiro no rosto. No início, os Bala se tornaram uma espécie de braço armado dos Manos, executando desafetos para o grupo que, desde então, já adotava o discurso de um crime pacificado, teoricamente defendendo táticas negociais e menos calcadas na disputa armada.
Todavia, diferentemente dos Manos, os Bala na Cara ainda não estavam suficientemente consolidados no mundo do crime para disputar, na base da negociação entre semelhantes, os rumos da droga. Assim é que, percebendo que os maiores coletivos da capital vinham mais ou menos dividindo o mercado entre si, partiram para uma ofensiva expansionista buscando a hegemonia em seu bairro e, após o sucesso na empreitada, espalharam-se por outras vilas. Poucos anos depois, o domínio de uma galeria prisional na principal prisão do estado, o Presídio Central de Porto Alegre (hoje, Cadeia Pública de Porto Alegre), acelerou a autonomia do grupo em relação aos Manos, possibilitou a ampliação de seus contatos comerciais e contribuiu com a sua expansão para vilas mais distantes e para a região metropolitana.
Pode-se dizer que, enquanto os Manos surgiram na prisão, como um grupo prisional e ocupado com o domínio do espaço carcerário, os Bala já se constituíram como uma gangue de assaltos, execuções e, logo mais, de tráfico de drogas. Os BNC, portanto, fizeram o movimento inverso aos Manos e se afirmaram como uma facção no momento em que foram capazes de adquirir sua primeira galeria no Central, tornando-se realmente competitivos no mundo do crime e subindo ao status de outros coletivos importantes, como os Abertos e a Conceição. Afora isso, as táticas de expansão privilegiadas por cada grupo também foram diferentes: os Manos, bem mais antigos, aproveitaram a estrutura já estabelecida no cárcere e a ausência de competição equiparável para, em uma conjuntura favorável, ocupar áreas urbanas que ainda não haviam sido territorializadas, potenciando alianças e estabelecendo acordos. O uso da violência, embora sempre presente, era mais acessório que protagonista.
Surgindo mais tarde e observando um mercado relativamente saturado, controlado por meio de acordos entre alguns coletivos maiores e mais tradicionais, os Bala se mobilizaram para tomar bocas de agrupamentos médios e pequenas gangues sistematicamente, seja expulsando antigos comerciantes de suas áreas e assumindo esses pontos de venda para si, seja obrigando-os a se aliarem ao grupo, a comprarem sua droga e, algumas vezes, a aplicarem suas regras operacionais e códigos morais. É por causa dessa espécie de aliança coagida com empresários de outras bocas, que seguem existindo sem necessariamente serem incorporadas aos Bala (ou, como venho chamando, desse “embolamento forçado”), que se costuma classificar os BNC como um grupo de franquias.
IHU - Quais são as diferenças e semelhanças desses coletivos com outros, especialmente do Rio de Janeiro e São Paulo?
Marcelli Cipriani - É importante destacar que o PCC e o CV são facções com ampla penetração nacional e já internacionalizadas, enquanto os grupos do Rio Grande do Sul são locais – ou, no caso dos Manos e dos Bala na Cara, cada qual com seus embolamentos, regionais. Assim, há uma diferença considerável no status que cada grupo ocupa, no impacto exercido em diferentes etapas da cadeia produtiva do tráfico de drogas e em suas tantas escalas. De qualquer forma, deixando em suspenso essa expressiva ressalva, é possível apontar algumas semelhanças e diferenças entre a conjuntura do crime nesses estados ou entre características pontuais de seus grupos.
Por exemplo, o Rio Grande do Sul é marcado pela coexistência de vários coletivos, cujas alianças ou rivalidades formam equilíbrios e desequilíbrios precários. Nesse sentido, se assemelha muito mais ao contexto do Rio de Janeiro do que ao de São Paulo, onde o PCC tem hegemonia e, como consequência, mais facilidade para tabelar preços e colocar em prática um sistema de pertencimento que, em certa medida, dissocia laços coletivos de atividades comerciais privadas. Diferentemente do PCC, os grupos do estado agregam a dimensão normativa à econômica, o que faz com que seus integrantes estejam necessariamente incorporados a um modelo de negócios maior e sejam inseridos em uma hierarquia financeira mais marcada, devendo contribuições, porcentagens ou compromissos de compra e venda para a facção à qual estão normativamente vinculados.
Esse traço hierárquico também se manifesta quando na gestão da violência física, seja em cobranças pelos treinamentos (deslizes) de seus membros ou na gestão da ordem local nas periferias. Pesquisadores como Camila Dias, Daniel Hirata, Gabriel Feltran, Karina Biondi e Vera Telles, dentre outros, analisaram um procedimento de resolução de conflitos que, em São Paulo, foi apropriado pelo PCC e resultou em uma espécie de “mediação” da violência em prisões e periferias. Os debates, como são chamados, representam a transferência da prerrogativa de uso da violência física dos atores privados para o coletivo, que passa a representar o justo e o certo mesmo quando as situações dizem respeito a conflitos pessoais ou envolvem as bocas, funcionários e débitos de um indivíduo que corre com o PCC (mas não propriamente do grupo).
Em sentido oposto, nos grupos do Rio Grande do Sul há uma tendência à personalização do direito de punir por parte do patrão (o que envolve cometer uma violência, ordená-la ou autorizá-la), ainda que não se trate de algo absoluto e que possa ser relativizado de acordo com o tipo de violência em jogo e do contexto em que ela ocorre. Em tese, por exemplo, qualquer um pode se vingar de um talarico ou matar um contra, mas será punido pelo patrão caso haja exagero ou, por engano, mate errado. Embora suponha-se que o patrão deva respeitar parâmetros genéricos, é ele quem decide se alguém será morto, expulso ou ferido em situações que competem ao crime – como um roubo cometido na vila, a perda de uma arma, um homicídio cujo alvo foi equivocado, a importunação de um vizinho que reclamou à boca etc.
A falta de rivais expressivos do PCC, ao menos no estado de São Paulo, também reforça a histórica oposição existente entre o grupo e os agentes da segurança pública. Embora o antagonismo entre os envolvidos no crime e os policiais exista em Porto Alegre, produz bem menos instabilidades do que os conflitos entre grupos rivais, que tendem a ser os principais responsáveis pelas oscilações rápidas verificadas na violência letal. Porém, esse cenário de confrontos tampouco pode ser igualado ao do Rio de Janeiro, que carrega particularidades decorrentes de sua polícia, cujo protagonismo no extermínio de civis é substancialmente maior, onde os “arregos” têm papel ainda mais pronunciado e a existência das milícias complexifica as relações de colaboração entre atores criminais e estatais.
Pensando os grupos isoladamente, pode-se dizer que o modelo de negócios dos Bala na Cara, algumas de suas sensibilidades morais e práticas de uso da violência, têm paralelos com o Comando Vermelho, enquanto o caminho traçado pelos Manos desde a prisão até o transbordamento e expansão nas periferias, sua defesa de um crime pacificado e o formato comparativamente mais horizontal de organização, se assemelha, em algum nível, ao PCC. Entretanto, e assim como o próprio grupo paulista, os Manos assumem uma face mais guerreira em lugares nos quais seu domínio está sob disputa aberta. Dessa forma, enquanto o coletivo adotou o discurso do crime pacificado durante a guerra das facções de 2016-2018, evitando participar diretamente e apenas manifestando apoios laterais, se engajou em uma corrida pelo controle de rotas e municípios estratégicos quando o conflito da capital foi deslocado para o interior.
IHU - Há algum tempo falava-se que a violência da capital migrou para municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre e, depois, para o interior gaúcho. Essa movimentação do crime se deu realmente assim? Como você analisa esse quadro e o atualiza para os dias de hoje?
Marcelli Cipriani - Em geral, a movimentação da violência na Região Metropolitana vem acompanhando as dinâmicas de algumas das regiões da capital. É importante destacar que, embora falemos de uma mesma cidade, Porto Alegre foi palco de processos distintos e coexistentes no âmbito da estruturação do crime. A Restinga, por exemplo, sempre foi marcada por uma multiplicidade de pequenas gangues – fossem elas ocupadas com o tráfico ou compostas por jovens disputando controle territorial – e demorou muito mais tempo do que outras regiões para substituir a pulverização de grupos criminais pelos conglomerados que caracterizam os embolamentos. Até hoje, no bairro do extremo Sul da capital, há uma série de agrupamentos que, embora aliados com grupos maiores – como os Bala na Cara, Manos ou Antibala – seguem mantendo expressiva autonomia e operando de maneira mais restrita, micro local.
Portanto, existem tendências que podem ser observadas nas escalas da capital e do estado, mas com a permanência de particularidades referentes à história social do crime de cada bairro. Nesse sentido, pode-se dizer que muitos dos rearranjos no crime de Porto Alegre foram rapidamente identificados em lugares como Canoas, Alvorada, Cachoeirinha e Gravataí, inclusive pela proximidade que esses municípios possuem com as Zonas Leste e Norte da capital, onde se encontram muitas vilas estratégicas. Mais do que isso, a centralização do sistema prisional no Central, misturando presos de várias dessas localidades, também acelerou configurações do crime entre municípios vizinhos.
Quanto aos municípios do interior que até há pouco registravam baixíssimos índices de violência letal e não figuravam no mapeamento de coletivos criminais, a transferência começou a ocorrer faz alguns anos e se acelerou consideravelmente a partir de 2018 – marco da trégua entre os Antibala e os BNC na guerra das facções. Até esse momento, o crime da capital estava praticamente polarizado entre essas duas frentes, quer envolvendo-se em enfrentamentos recíprocos ou manifestando seu apoio por meio de redes para o empréstimo de armas e o envio de pessoal aos confrontos.
Ao longo da guerra popularizou-se a tática dos atentados, que não se tratavam de homicídios de um alvo específico (fruto de uma vingança pessoal, por exemplo), mas de uma violência genérica, cuja pretensão era atingir quaisquer indivíduos enquadrados como contras. Nessas situações, incursões rápidas eram feitas até as bocas inimigas e, passando por elas em veículos, seus rivais atiravam em todos que estivessem pelas cercanias. O objetivo dos atentados não era tomar as bocas, o que exigiria uma logística bem mais robusta e a permanência nesses locais, mas desafiar a autoridade dos contras em suas próprias áreas.
A partir de certo momento, o principal foco da disputa entre os embolamentos deixou de ser a conquista territorial e passou à provocação recíproca para tocar o terror um no outro, desqualificando sua moral e desfalcando seus integrantes. Essa dinâmica levou a um “toma lá, dá cá” de violência letal incessante e cada vez mais expressiva – que, em grande parte, foi responsável pelo aumento crítico dos homicídios registrado na capital e na Região Metropolitana durante o período da guerra. Com o tempo e já após alguns sucessos, desfalques, traições e transformações nas alianças e rivalidades, esse conflito começou a se tornar altamente oneroso para ambos os embolamentos. Com isso, embora a disputa discursiva e os confrontos pontuais entre eles se mantenham até hoje, foi firmado um relativo cessar fogo, principalmente quanto ao tipo de reciprocidade negativa imbuída na lógica dos atentados.
Desobrigando-se da insistente retribuição da violência contra os Antibala na capital, os Bala na Cara intensificaram seus esforços em direção ao interior, onde o mercado não estava saturado, a conquista de novos territórios era menos delicada e havia espaço para investimentos no varejo e no atentado. Em Porto Alegre, grupos de todas as dimensões já estavam acompanhados de uma série de aliados – ou seja, incorporados a um embolamento – o que implicava amplo reforço em qualquer contenda territorial e, por consequência, dificultava-as e lhes agregava maior dimensão do que um conflito pontual.
Já os grupos do interior, nas circunstâncias em que existiam, costumavam ser pouco expressivos e organizados. Na medida em que também podiam estar imbricados em conflitos, possuíam interesse em embolar-se com os coletivos da capital, com quem passariam a contar de inúmeras formas. Os grupos maiores poderiam lhes garantir fontes regulares, constantes e melhores de droga, impulsionando o comércio local. Também passariam a disponibilizar armamento e expertise, além de enviar alguns de seus integrantes para organizar as bocas no interior. Em troca, os agrupamentos menores fidelizavam a compra de drogas e engajavam-se diretamente nos conflitos, contribuindo para poupar a integridade dos coletivos que vinham de fora.
Esse processo de expansão e interiorização foi protagonizado especialmente pelos Bala na Cara e Manos, coletivos com condições de aventurar-se em um empreendimento desse tamanho, transitando pelo estado e incorporando novas dinâmicas de mercado e conflito às suas próprias. Assim é que, atualmente, ambas as facções operam como investidoras e mentoras logísticas de disputas locais – recebendo, em retorno, a ampliação de sua esfera de compradores, a proximidade com rotas da droga e o espraiamento por novas bocas e regiões.
Enquanto, em Porto Alegre, ambos os coletivos mantêm uma convivência relativamente respeitosa e evitam confrontos (embora façam afrontas), no interior, eles têm alimentado enfrentamentos por meio do reforço às disputas de seus novos embolados – que, com isso, são redimensionadas. Portanto, se os Manos estão pelo crime pacificado na capital, onde não têm grandes intenções de expandir-se, em outros municípios o grupo muda seus cursos de conduta sensivelmente.
IHU - Tomado como lugar comum, mas ainda muito presente em diversas análises, está a perspectiva de que onde o poder e a mão do Estado não entram, as organizações criminosas avançam. Como compreender esse cenário no âmbito das prisões?
Marcelli Cipriani - Creio que seja preciso recolocar a noção de que o Estado não está presente nos espaços em que os grupos criminais tendem a prosperar. Os primeiros grupos brasileiros foram constituídos e se consolidaram dentro das prisões, imbuídos de um teor fortemente reivindicatório e na esteira de toda sorte de violências institucionais – de punições disciplinares arbitrárias e torturas psicológicas a agressões físicas, intervenções policiais e massacres. A essas ocorrências somava-se a necessidade de organizar as relações entre presos, já que a “lei do mais forte” prevalecia no cárcere e era acompanhada da vista grossa dos agentes penitenciários diante de abusos. Também havia um amplo silenciamento dos detentos e de suas demandas, que não eram ouvidos ou tomados em consideração na rotina carcerária. Com isso, uma série de requisições razoáveis, quanto a incômodos legítimos, eram reiteradamente ignoradas e a frustração decorrente ia acumulando-se com o tempo, eventualmente explodindo como algo muito mais grave.
Ou seja, na base do surgimento desses grupos imbricam-se inúmeras camadas de insatisfação com injustiças das mais críticas às prosaicas, que decorriam de uma combinação entre ações e omissões estatais e cujo resultado era a gestão prisional em si mesma. Foi uma forma específica de o Estado fazer-se presente, também permeada por ausências, que incitou e assentou a mobilização coletiva de presos nos distintos contextos no país – tornando-os, basicamente, um produto do próprio sistema. Dali em diante, e cada qual de um jeito, esses grupos iriam associar as formas de resistir e reagir às situações vividas na prisão a pretensões de controle da “economia delinquente”, à criação de uma caixinha comum, aos planos conjuntos para fugas etc. Com o passar do tempo, a coexistência entre o poder estatal e os grupos criminais mudou de formato, mas seguiu invariável: ainda que permaneçam operando em espaços que são deixados pelo Estado, esses espaços não significam ausência, pois fazem sentido dentro de uma política de administração penitenciária da qual os grupos são partes integrantes.
Por exemplo, a maior unidade prisional do Rio Grande do Sul, a Cadeia Pública de Porto Alegre, funciona há décadas sem celas fechadas. Nessa prisão, que sempre está superlotada, centenas de presos são dispostos em cada uma das galerias, nas quais ficam soltos. Em tais lugares, os policiais não entram e a gestão estatal conta com a colaboração de representantes dos presos, os prefeitos, que estabelecem pontes entre a população da galeria e os policiais que administram o presídio. Devido a esse formato de distribuição de pessoas, muitas tarefas precisam ser transferidas para os presos, que gerem suas demandas quanto a atendimentos médicos e judiciais, encaminham outros presos para audiências, efetuam reparos na estrutura do prédio, distribuem a alimentação, estabelecem regras quanto ao comércio de produtos interno, as visitas íntimas e o consumo de drogas, autorizam ou vetam a entrada de novatos nas galerias, fornecem bens não concedidos pelo Estado e, muito importante, asseguram um ambiente sem homicídios e rebeliões.
À primeira vista, pode-se pensar que se trata, de fato, da apropriação pelo crime de espaços deixados pelo Estado. Todavia, a transferência de responsabilidades, a considerável autonomia cedida aos presos e a cogestão entre grupos criminais e agentes estatais compõem as condições de viabilidade de uma política criminal em que a presença marcante do Estado se dá pelo aprisionamento desmedido. A escolha pela prisão como a principal medida de segurança pública, a banalização das prisões provisórias, o baixo efetivo administrativo, o irrisório investimento na manutenção da estrutura prisional e do preso enquanto pessoa, tornam a administração prisional inviável. Para, na prática, gerir o que não pode ser gerido e, ao mesmo tempo, permanecer recebendo e acolhendo um ritmo galopante de presos, os agentes estatais precisa contar com outros atores – especialmente as famílias dos presos, que contribuem financeiramente e com a sacola, e os coletivos criminais.
A importância dos grupos criminais para a reprodução da prisão recai não só no investimento que é revertido em melhorias nas instalações e no consumo de bens e produtos, mas especialmente no estabelecimento da “ordem” em um contexto que tende, pela profunda precariedade, à desordem – e que, em última instância, é central para viabilizar o funcionamento cotidiano da instituição. Essa colaboração, porém, não é ingênua, e é porque os agrupamentos adquirem variados benefícios, monetários e não monetários, que se esforçam para manter a prisão tranquila e silenciosa.
IHU - Como você analisa a relação entre o sistema carcerário e os coletivos criminais gaúchos?
Marcelli Cipriani - Houve, no estado, um duplo processo de constituição de coletivos criminais, que partiram tanto de dentro para fora quanto de fora para dentro das prisões. E, em ambos os sentidos, o domínio de galerias prisionais tornou-se cada vez mais uma condição necessária para o controle do mercado de drogas. Quando, nos anos 2000, os grupos prisionais se estruturaram pelo tráfico, as relações de irmandade e a organização coletiva criadas no cárcere se acoplaram a territorialidades urbanas – pois, diferentemente dos assaltos, o tráfico de varejo é uma atividade territorial, que opera por meio das bocas. Em paralelo, alguns grupos de traficantes que surgiram nos bairros adquiriram grande visibilidade, o que levou a sucessivos aprisionamentos de seus integrantes. Com o tempo, a espacialidade desses aprisionamentos refletiu, no cárcere, as localidades em que os pontos de venda já estavam fixados.
Conjuntamente, tais processos foram aprofundando a distribuição dos presos pelo critério da aliança e pertencimento a um grupo, ou de sua vivência em uma vila por ele controlada. Disso advieram muitas consequências: primeiro, os espaços prisionais tornaram-se nichos comercias, conectando patrões de vilas, patrões de bocas, gerentes gerais e empresários individuais a uma mesma rede. No Central, em que não há celas e a lotação é crítica, essa junção tem consequências ainda mais pronunciadas. Ademais, o Central sempre serviu como o primeiro contato de presos, preventivos e condenados, com o sistema prisional – para que passassem por triagem antes de serem distribuídos a outros estabelecimentos, quando e se efetivamente o fossem. Por isso, há intensa circulação de pessoas, oriundas de diferentes lugares.
Para evitar brigas entre presos por incompatibilidades, comuns durante a década de 1980 e 1990, a Brigada Militar não só conversa com cada novo preso sobre onde quer ficar, mas também consulta o prefeito da galeria sobre a possibilidade de acomodar aquele indivíduo. Com isso, os conflitos internos são efetivamente reduzidos, mas os grupos criminais que têm galerias também adquirem um recurso importante: pautam, desde dentro, novas alianças que serão projetadas do lado de fora. Isso ocorre porque não são todos os coletivos criminais que têm seu espaço, sendo preciso que os integrantes de gangues, grupos médios e demais empresários no mercado da droga sejam, quando presos, enviados para uma galeria já gerida por outro coletivo. Como consequência, a prisão foi condensando agrupamentos e acelerou a passagem de uma cena criminal fragmentada, com inúmeras gangues microlocais, até a recente construção de coletivos densos e blocos de aliança cada vez mais sólidos.
Muitas vezes, ao sentirem-se enfraquecidas, gangues se dissolviam e eram englobadas por grupos mais expressivos, enquanto seus rivais faziam o mesmo junto a um coletivo também rival àquele que havia englobado seus inimigos. Assim, essa configuração foi reproduzindo e redimensionando pequenos conflitos locais, ao passo em que reforçava as fileiras dos grupos maiores. Por sua vez, quando o acolhimento na prisão não levou à dissipação do agrupamento menor, mas a uma aliança entre dois grupos que seguiram existindo, o resultado foi traduzido em projeção de controle territorial e imbricação na rede de venda de drogas do coletivo predominante. Por exemplo, com a entrada de um grupo do extremo Sul em uma galeria de um coletivo da Zona Leste da capital, esse último começou a vender para o primeiro, apoiá-lo com armas e, enfim, se afirmar presencialmente suas áreas. Tal dinâmica também ocorre de fora para dentro, como se vê pelo movimento dos Manos e dos BNC no interior, que vão agregando alianças por onde passam. Quando presos, os aderentes pedirão para ficar nas galerias de seus respectivos aliados – que, eventualmente, passarão a usar da crescente superlotação como argumento, diante da administração prisional, para adquirir ainda mais espaço.
Para os coletivos, as galerias também têm outras utilidades, como vários tipos de comércio cotidiano, legal e ilegal, e uma série de relações de apoio que ocorrem entre presos e entre os presos e a facção – implicando o acesso à alimentação, a produtos de higiene, a celulares, a drogas, a bens para o conforto, a festas periódicas, ao usufruto de investimentos na galeria e à melhoria de sua estrutura. Esses atos produzem reiteradas demandas de reciprocidade moral que são fundamentais para sustentar os laços internos e fortalecem o grupo por meio da produção de reconhecimento e legitimidade. Combinando a gratidão genuína com a coação para retribuir, tais apoios levam à demanda por ações diversas, criminais e não criminais, como retorno legítimo.
Devido a tudo isso, o controle de galerias é altamente almejado pelos grupos. Em 2017, para se ter uma ideia, cerca de cem presos da V7 acamparam em um pátio do Central – com acesso a duas torneiras, sem lugar para tomar banho e improvisando tendas com cobertores – como protesto para demandar seu próprio espaço. Seis meses mais tarde, após muitas declarações de autoridades públicas de que não cederiam às pressões de nenhuma quadrilha, duas galerias prisionais foram concedidas ao grupo. Ou seja, ainda que de modos distintos, a prisão sempre foi e permanece sendo central ao crime e, cada vez mais, o Estado tem perdido o monopólio da gestão prisional, compartilhando-a com os coletivos.
IHU - O que está por trás da pacificação nas prisões e guerra das ruas?
Marcelli Cipriani - Atualmente, muito do que se decide na prisão precisa ser conversado entre policiais e prefeitos de galerias, que dialogam para que a coisa funcione bem para todos. Por exemplo, antes de finalmente conceder duas galerias à V7, foi importante esclarecer a situação para os demais prefeitos, a fim de evitar insatisfações e, no limite, turbulências. Houve, principalmente no Central, mas no sistema prisional do estado como um todo, uma passagem generalizada da gramática da violência física para a do diálogo. Presos não podem mais matar outros presos, tampouco ser violentos com a polícia e vice-versa. Mas nem sempre foi assim: até antes da morte de Dilonei Melara, o mítico líder dos Manos que foi assassinado em 2005, o grupo se negava a ter qualquer contato com promotores, policiais e outros funcionários da segurança pública. Semelhantes, nesse aspecto, ao PCC, eles entendiam que o crime e o Estado estavam em pontos opostos e que a ponte entre eles era inimaginável. Desde aquele momento, entretanto, o grupo fez uma declaração pública à imprensa afirmando que não provocaria mais os seus rivais e que estava disposto a contribuir com o bom convívio na prisão.
Não por coincidência, essa transformação radical conjuminou com a reordenação dos Manos em torno de um modelo menos centralizado no líder e mais focado na descentralização de patrões do tráfico de drogas. Como consequência e no lugar de produzir instabilidades visando a reivindicações e à expansão interna, os Manos, assim como outros grupos, começaram a incorporar o controle das galerias na própria prática criminal, consolidando-se dentro das prisões e projetando suas alianças e redes comerciais para o lado de fora. Com a apropriação do espaço prisional para a expansão no crime, manter o ambiente calmo e tranquilo passou a fazer muito mais sentido. Atualmente, cada prefeito é responsável pela gestão de sua galeria, o que significa tanto a manutenção da ordem, muito cara à administração prisional, quanto a gestão da autonomia interna e de certas prerrogativas, fundamentais para a facção.
Em suma, a “pacificação” reflete um período em que, muito embora por diferentes razões, a “paz” se tornou um objetivo amplamente partilhado. Com isso, os antagonismos antes existentes entre presos e policiais foram relativamente equilibrados, resultando na economia do uso da violência por ambos, na queda de rebeliões e motins, nos homicídios cometidos por presos e nos ataques feitos a grupos rivais. Afora momentos realmente críticos, que são sempre uma possibilidade nesse equilíbrio precário, não há ganhos e há muitas perdas advindas do rompimento desse acordo implícito, que é uma espécie de “segredo de polichinelo” do sistema prisional. Por essa razão, os presos foram mudando suas táticas reivindicatórias com o tempo e, atualmente, preferem usar recursos silenciosos, como o “não fazer” (não encaminhar os presos para audiências, iniciar uma greve de fome etc.).
Porém, o acordo de “paz” firmado entre presos e policiais, que abrange a suspensão de confrontos entre facções rivais, só tem validade na prisão. Do lado de fora, os conflitos ocorrem sem essa mediação e a própria guerra decorreu de antagonismos em torno de outro eixo: não da polícia e dos presos, mas dos grupos e embolamentos com seus contras. A guerra foi forjada em negociações feitas nos trânsitos de prisões e periferias, teve grandes atos decididos por patrões presos (protagonizados por meninos muito jovens) e produziu consequências que também alimentaram a circularidade do binômio dentro e fora. A saída dos presos da V7 da galeria de antigos aliados e sua permanência em um pátio do Central, por exemplo, foi motivada por um homicídio ocorrido nas ruas – e que, embora tenha envolvido uma traição gravíssima, não levou a qualquer enfrentamento na prisão, apenas do lado de fora. Já a expansão do embolamento Antibala para municípios diferentes se deu desde as galerias prisionais, com o acolhimento de presos de outros lugares e sua incorporação ao conflito da capital – o que, por sua vez, viria a trazer novos desdobramentos às ruas.
IHU - Que respostas você dá para aqueles que ainda apostam no encarceramento como estratégia de política de segurança pública?
Marcelli Cipriani - Eu diria que, especialmente tratando-se do grosso dos aprisionamentos, composto por crimes patrimoniais e pelo tráfico de drogas, a aposta no cárcere não só é um fracasso retumbante, mas contribui diretamente com o aumento da criminalidade. Assim, e como já foi constatado repetidamente por inúmeras pesquisas e pesquisadores nas últimas décadas, a prisão não pode ser usada como solução, pois é parte considerável do problema. Devido a muitas razões, tenho convicção de que não existe qualquer possibilidade de reduzir a violência no Brasil sem que se leve a sério o desencarceramento. Uma delas, aqui debatida, é que os grupos que atualmente dão o tom do crime no dia a dia das grandes prisões já se apropriaram desses lugares e converteram-no em recursos para o fortalecimento do crime há muito tempo.
Tomando como exemplo o Rio Grande do Sul, não há dúvidas de que a mais importante dentre todas as funcionalidades aproveitadas pelos grupos no cárcere é a concentração espacial de comerciantes e a ampliação de relações, de oportunidades para o fornecimento e a compra de drogas e de apoios logísticos. É provável que a grande maioria do crack, cocaína e maconha que circula pelas ruas da capital passe, ao menos em termos de negociações, operações financeiras e controle, por alguma galeria prisional. Daí é que grandes aprisionamentos podem efetivamente trazer mudanças à gestão territorial de uma vila ou outra, mas a região seguirá, como regra, sendo dominada pela mesma facção. É comum que grandes patrões, enquanto presos, designem atribuições para gerentes e vendedores, encomendem ataques e atentados e acompanhem o cotidiano de suas vilas através de informantes.
Mesmo quando esses líderes são encaminhados a presídios federais, onde em tese ficam isolados e sem acesso a telefones celulares, uma série de relações viabilizam a continuidade das atividades criminais, seja pela substituição do patrão, seja pelo prosseguimento de suas orientações. Diferentemente das antigas gangues, pequenas e centralizadas em um número restrito de indivíduos, as facções já atingiram um patamar em que pouco dependem de pessoas específicas para seguir operando. Por isso, até as prisões comemoradas pelos gestores do Estado como muito relevantes tendem a produzir impacto singelo na capacidade de renovação e reprodução dos coletivos, conquanto possam levar a instabilidades importantes, como reorganizações de lideranças, surgimento de focos de conflito e aumento de violência.
Quanto às prisões dos operadores baixos dos mercados criminais, que são a maioria, produzem o efeito inverso no controle do crime: de um lado, as relações entre eles e os coletivos tendem a se acirrar na prisão (pelas relações de apoio, a recorrente demanda por reciprocidade e o reforço do papel dos coletivos na prisão) e, de outro, o espaço recém esvaziado no encadeamento das atividades será ocupado rapidamente. Apesar dos aprisionamentos ou de táticas repressivas, o crime permanece uma alternativa disponível para uma ampla gama de jovens, não só permitindo o acesso à renda diante da pobreza e da precariedade do mundo do trabalho – e, com isso, a realização do consumo e o auxílio no sustento da família –, mas também participando da construção de sua identidade. A participação nos grupos criminais abre espaço para “viver a revolta” acumulada pela falta de oportunidades, pelas experiências com a violência policial e pela percepção quanto à desigualdade e as injustiças vividas pela juventude moradora de periferias.
Atualmente, no estado, os esforços feitos para manter muitas das prisões funcionando servem, acima de tudo, não para reprimir a criminalidade ou realizar alguma ilusão ressocializadora, mas para viabilizar e legitimar a própria existência das prisões. O que importa, no fundo, é que as unidades não causem problemas, sigam tranquilas, em ordem e em “paz” – mesmo que ao custo de uma relação simbiótica entre o crime e o Estado. Por mais contra intuitivo que possa parecer, hoje é necessário esconder o impacto que as prisões exercem no crime e que os grupos criminais exercem na reprodução do sistema prisional, para então afirmar que o sucesso desse duplo ocultamento é, na verdade, um sucesso da própria gestão. Como consequência, o aprisionamento pode ser exaltado publicamente e criticado por supostamente ser pouco e branco – quando, na verdade, se trata do oposto. O etnógrafo Gabriel Feltran, em seu trabalho sobre o PCC, apontou que a expansão do grupo nos presídios paulistas se deu por meio da produção do crime pelo governo e, simultaneamente, do auxílio do crime na produção do governo e da administração prisional. Ao meu ver, essa é uma ótima síntese.
IHU - Qual deve ser a pauta prioritária dos candidatos à presidência no que diz respeito a políticas de segurança pública?
Marcelli Cipriani - O foco deve recair no controle e na prevenção da violência letal e, para isso, é necessário amplo investimento na elucidação de todos os homicídios que ocorrem no Brasil. Atualmente, uma mínima parcela dessas ocorrências são explicadas pelas instituições estatais, havendo pífio esclarecimento das mortes em geral – desde as protagonizadas por agentes das forças de ordem até, e especialmente, as que vitimam atores que circundam o mundo do crime.
De diferentes maneiras, os trabalhos de pesquisadores como Daniel Hirata e Gabriel Feltran têm atentado para os dispositivos de gestão ou governo das mortes no Brasil, que envolvem imbricadas e profundas relações entre policiais e atores criminais, bem como entre diferentes atores criminais. Quando o Estado, ao optar pelas políticas de genocídio e valorar a vida dos indivíduos de forma distinta, abre mão de chegar a informações de autoria (seja quais forem), os desdobramentos desses homicídios passam a ser apropriados por aqueles que conhecem sua procedência, o que pode engatilhar uma série de relações de corrupção, cadeias de conflito, retribuições em efeito dominó e outras consequências para o aumento da violência letal – que, como se sabe, está especialmente concentrada em homens jovens moradores de periferias, na sua maioria operadores do crime.